domingo, 30 de novembro de 2008




Aqui não adianta latir, tem que morder!

domingo, 9 de novembro de 2008

"Onde havia sublimação, que advenha angústia..."[*], por Valter A. Rodrigues

Tomo como ponto de parti-da uma frase algo enigmática enunciada por Freud ao finalizar sua Conferência XXXI (Novas conferências introdutórias) que, em suas múltiplas possibilidades de tradução, me convida a pensar direções para os impasses que o trabalho com a subjetividade tem colocado neste presente tomado por um furor higienista, classificador, objetivante e tipicamente novecentista que, penso, deveria estar já superado pelas lutas e questionamentos que marcaram o século XX: Wo Es war, soll Ich werden.
Os que têm uma mínima familiaridade com a obra de Jacques Lacan conhecem seu gesto disruptivo em relação à ortodoxia freudiana de caráter normativo/adaptativo ao propor, em vez da tradução consagrada por James Strachey, "Where the id was, there the ego shall be" ["Onde estava o id, ali estará o ego"], esta outra, preciosística em sua atenção às possibilidades significantes do texto freudiano: "Là où c’était, [peut-on dire], là où s’était, [voudrions-nous faire qu’on entendit], c’est mon devoir que je vienne à être"[1]. Costumamos encontrar à guisa de tradução brasileira esta forma simplificada: "Lá onde isso era, eu devo advir" (ou mais extensa e próxima ao francês, como a proposta por Garcia-Roza: "Ali onde se estava, ali como sujeito devo vir a ser"[2]; ou, ainda, sinteticamente, afirmando plenamente a psicanálise como talking cure, “Ali onde Isso fala, devo advir”). Temos, nesta perspectiva posta por Lacan, o passe de uma psicanálise adaptativa, na qual "o ego deve ocupar o lugar do id" (aclimatada ao espírito anglo-saxão, poderíamos dizer), para outra que aspira operar, em seu curso, uma subversão do sujeito em sua tomada de posição quanto ao desejo [onde Isso fala, devo advir].
Não pretendo aqui, com estas observações, entrar nos desdobramentos que podem ser pensados a partir dessas traduções/traições/subversões do texto freudiano, nem dedicar-me a mais um ensaio sobre a problemática do eu tal como pensada por Freud ou Lacan, mas tão somente tomá-la como leitmotiv para trazer à cena inquietações que penso ser mais do que legítimas em um momento em que, graças a uma certa neurociência em aliança com a indústria [farmacêutica, mas não só] e a mídia, a normatização médico-psiquiátrica recupera seu esplendor dos escombros iluministas do século XIX, arrastando consigo uma multiplicidade de saberes psi que até recentemente persistiam - ou aparentavam persistir - em uma ainda que tênue afirmação de autonomia e resistência.
A referência a Freud e sua enigmática afirmação é mais do que um artifício entre outros possíveis. Após ter deslocado a hegemonia novecentista/iluminista do saber psiquiátrico com a invenção do inconsciente, levando os psiquiatras a uma busca dos saberes psicanalíticos como suporte para uma apreensão fenomenológica da doença, hoje é a psicanálise que, muitas vezes capturada numa ilusão objetivista e redutiva que acaba por negar a própria teoria freudiana e seus matizes, não cessa de ser seqüestrada pelo saber psiquiátrico de base biológica (e sua nosografia – representada pelo CID-10 e pelo DSM-IV –, que expressa um saber que chega a se afirmar a-teorético,[3] posto que fundado em "resultados", em "tratamentos", e, por conseqüência, na "verdade" do organismo e em uma concepção reducionista de sua "saúde" como "ausência de mal-estar"), reduzindo-se a uma máquina - ainda que um tanto emperrada, buscando afirmar-se ainda eficaz - de identificação e interpretação de sintomas. Uma ferramenta teórica que, ao reduzir-se a codificadora (ou decodificadora, via interpretação) dos quadros sintomáticos descritos pela nosografia psiquiátrica, em relação de exterioridade ao que se propõe conhecer, corre o risco de tornar-se ciência aplicada, em lugar de implicada[4].


CONTINUA! texto em construção.
[*] Este título foi roubado imaginária e literalmente de um artigo que não li: "Arte: onde havia sublimação, que advenha angústia", de M. Meiches e E. Alperowith, publicado, conforme referência, em Percurso, n. 15, 1995, pp. 82-88. O artigo consta das referências bibliográficas de FRAYZE-PEREIRA, João A. Arte, dor; inquietudes entre Estética e Psicanálise. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2005. Esse título remeteu-me imediatamente - por obviedade - à frase de Freud e ativou em mim o desejo de escrever sobre as inquietações a respeito dos impasses da clínica contemporânea que tenho manifestado persistente e insistentemente em palestras e em salas de aula. Espero que o desenvolvimento do texto justifique o roubo. Como o texto está sendo produzido "ao vivo", são bem-vindas as participações por meio de comentários.

[1] Que podemos traduzir, conservando a literalidade do texto: “Lá onde Isso estava, pode-se dizer, lá onde S’estava, deveremos fazer com que se entenda, é meu dever que eu venha a ser”.
[2] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1984. p. 209.
[3] Ver, a respeito, os artigos publicados em MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (org.) Psicofarmacologia e psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. Ver também Joel BIRMAN, Diagnósticos da contemporaneidade, in MACIEL JR., Auterives; KUPERMANN, Daniel; TEDESCO, Silvia (org.) Polifonias: clínica, política e criação. Rio de Janeiro: Contracapa/Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, 2005. p. 101-108.
[4] Esse é um cenário comum nos cursos de Psicologia, particularmente naqueles que se inscrevem como "Ciência da Saúde", afastando-se de seus pares das Ciências Humanas (a sociologia, a investigação etnográfica, a filosofia, as artes...). A Psicologia "alimenta-se" a bel prazer de conceitos freudianos (e, em menor grau, junguianos e reichianos e winnicotianos e... e...), particularmente quando se trata de instrumentar-se - para dar um exemplo dos mais gritantes - para a leitura de testes projetivos os mais diversos, sem que necessariamente implique-se com o fazer teórico da psicanálise (ou de qualquer outro campo de produção de conhecimento) e sua pragmática. Mas não só. Essa implicação, como veremos, é bem mais exigente e mais ampla.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

ARTIFÍCIOS PERROS. CARTOGRAFIA DE UM DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO, por Cynthia Farina


Saltando ou de quatro, eram as maneiras como se podiam cruzar as insólitas aberturas que conduziam à sala da instalação. Toda vermelha, a sala continha risos nervosos estirados sobre um colchão com almofadas no centro. Risos que não se desgrudavam de um vídeo caseiro projetado numa grande tela de TV, a um metro do colchão. Risos atentos a anatomias inverossímeis, a fotografias desconcertantes, expostas nas paredes da sala. A mesma pessoa havia fotografado, desenhado, filmado e projetado as imagens. A mesma pessoa que era também imagem, motivo, tema e personagem das cenas e do cenário: o artista. Ele compartilhava o protagonismo das imagens com dois mais, um deles que sobre as duas patas traseiras media mais ou menos a sua altura, e um filhote, talvez da mesma raça que o animal adulto. Os risos voyeurs acomodados no colchão apreciavam incômodos o despojamento e a sedução das aproximações corporais até o ato em si, até a relação sexual entre os dois machos adultos das duas espécies. O homem, de quatro, acolhia o cachorro que se sustentava em duas patas. Este, toda uma virilidade protagonista.
Para ler o texto na íntegra, clique aqui.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Agenciamento, por Luiz Fuganti

O conceito de agenciamento opera um duplo ultrapassamento em relação ao modo de pensar da tradição inaugurada pelo humanismo moderno. Por um lado, destitui a idéia dominante de uma natureza humana a priori - cuja forma legitimaria o senso comum do sujeito do conhecimento, a partir da constituição de um modo superior de desejar, neutro e desinteressado; por outro, desqualifica a verdade dos valores universais extraídos ou descobertos a partir de um plano de objetos ideais em si, constitutivo do bom senso - plano pretensamente superior ao plano de natureza e das forças de produção das formações sociais (ainda banhado de paixões humanas interessadas e parciais por natureza), - como fundamento que torna possível o conhecimento verdadeiro, imparcial e universal.

Essa dupla ilusão, a de um fundamento neutro formal da subjetividade e a do fundamento ideal como valor em si constituinte da universalidade dos valores humanos, engendra a insípida idéia de autonomia moral e racional como liberdade e conhecimento possíveis do homem. Operar sua desconstrução ao mesmo tempo em que se destitui a idéia de uma interioridade como instância unitária e primeira da vontade ou do desejo, mesmo e sobretudo de caráter natural, suposta como separada e como primeira natureza do homem, juntamente com a destituição da idéia de intencionalidade ou finalidade do desejo, mesmo e sobretudo quando seu objeto se interioriza na pura forma do Dever, é uma tarefa de primeira ordem para quem quer realmente criar um novo conceito e uma prática de educação que invistam na potencialização das capacidades criativas do homem.

Para Deleuze e Guattari, criadores do conceito de agenciamento, a Natureza é Fábrica. Como em Spinoza, fábrica de si mesma e de tudo que dela decorre. E o que produz essa fábrica? Real, nada mais, nada menos do que o próprio real como produto de sua Potência absoluta de Acontecer. Ora, se a natureza não é algo dado, mas uma realidade que não pára de produzir-se a si mesma, também as partes que a compõem e dela participam não param de ser produzidas e de participar da produção de si mesmas. E se nós somos partes efetivas dela, não há sujeito ou natureza humana natural já pronta, nem mesmo em progresso ou processo de melhoramento ou reforma de uma essência original, como querem moralistas, racionalistas e humanistas. Também não podem haver objetos ideais ou valores universais que permaneceriam imutáveis num plano que a transcenderia. A natureza humana, seu meio específico e seus objetos estão em processo ininterrupto de modificação e produção de si nos devires, tempos e movimentos reais que atravessam a existência desse animal que se autodenomina homem.

A idéia de uma forma humana espiritual e superior à natureza emerge como uma ilusão de consciência, a qual pressupõe um plano de realidade separado como origem da representação do real e que legitimaria o corte homem/natureza, cultura/natureza, industria/natureza. A virtude dessa forma se manifestaria ao longo de sua história, no desenvolvimento de suas relações internas, desdobrando-se em uma prática moral cada vez mais desinteressada e em um conhecimento racional e científico cada vez mais universal, apesar de cada vez mais especializado. Essa forma racional de conhecer e modo moral de se conduzir tornam-se suportes de uma suposta autonomia formal, constitutiva do lugar da autoridade, autorizada e autorizante, que fariam das forças mais nobres da vida função de valores de progresso, desenvolvimento e aperfeiçoamento da Forma-homem, cujo sentido é em última instância determinado pelas forças constitutivas do tipo de poder que ela integra: nesse sentido, a organização de um corpo eficiente e a formação para uma capacitação de um sujeito competente tornam-se o horizonte comum das práticas do homem sobre si mesmo. Ora, se a educação é a porta de entrada para a inserção da vida humana nesse processo de formação, já adivinhamos sob quais pressupostos ela opera.

Na verdade, todo esse plano de organização de uma formação social pressupõe um diagrama virtual e não formal de relações de forças que trabalha de modo microfísico e micrológico, atualizando-se ou concretizando-se através de agenciamentos de poder, que constituem-se como dispositivos ou máquinas concretas sociais de produção de subjetividade e de produção de individualidade. Uma verdadeira fabrica de modos de subjetivação, de individuação e de objetivação. Esses a priori formais em verdade são resultados de compostos de forças, produzidos a posteriori. Em outras palavras, foi preciso antes que essa Forma ou Estrutura humana fosse produzida ou inventada (não por Deus ou por uma Natureza natural ou Humana em evolução espontânea ou inteligente) e constituída como condição de produção de pessoas ou sujeitos (morais e de conhecimento). E conforme a natureza ou qualidade das relações de forças que a compõem e que ela integra, ou conforme a natureza ou qualidade do conjunto afetivo (ações e paixões) que tece uma formação de um corpo social que a sustenta e que ela unifica, essa Forma regula o grau de captura ou de soltura do desejo. Por aqui se pode avaliar a qualidade dos modos de viver que essa formação de poder necessita produzir e/ou é capaz de suportar, que se constitui nela e que ela constitui como legítimos modos de desejar e pensar normais.

Durante demasiado tempo a modernidade permaneceu prisioneira da idéia de uma consciência em si como entidade fundante do conhecimento, da verdade científica, e também da noção de uma consciência universal do homem capaz de ultrapassar e se sobrepor aos modos ideológicos de saber e aos seus interesses sempre parciais de poder, com suas armadilhas e modos de ocultar, manipular e usurpar.

Deixamos nos aprisionar por esquecimento do que nos torna cúmplices, cegueira, ilusão ou covardia? Porque insistimos em não perceber que a verdade objetiva tanto quanto o sujeito do conhecimento, seu lugar e forma de emissão de verdade, autorizado e autorizante, são produtos de um agenciamento maquínico que serve de função a algo que captura a vida de fora? Será que nosso modo de viver não está ligado a um agenciamento de poder que ao mesmo tempo nos captura e separa de nossas potências próprias de criar realidade, mas também nos sustenta e liga nossa impotência ao poder de reproduzir e transmitir ordens? Qual vantagem recebemos como recompensa pela concessão que fazemos?

Quando Foucault, inspirado em Nietzsche, veio nos mostrar que formas de discursos e formas de sensibilidade constituíam-se como verdadeiros dispositivos de produção de corpos submetidos e mentes assujeitadas, que operavam fabricando subjetividades e corporeidades, nas famílias, escolas, quartéis, fábricas, hospitais, prisões, universidades etc., logo quis-se reduzir o alcance dessa desconstrução e do papel desses dispositivos a modos econômicos de produção ou a aparelhos ideológicos de Estado, sequer supondo que ao contrário, eram os modos econômicos e regimes políticos que em certo sentido dependiam de regimes de sensibilidade e regimes de linguagem.

O conceito de agenciamento torna-se então um operador de primeira ordem, uma vez que remete ao modo concreto de produção de realidade, em qualquer dimensão, material ou imaterial, e não à uma verdade que representaria o real. O agenciamento é antes de tudo um ACONTECIMENTO multidimensional. Todo agenciamento incide sobre uma dupla dimensão: 1) uma dimensão relativa às modificações corporais (ações e paixões) ou estados de coisas que efetuam um acontecimento, remetendo-os a uma formação de potências; 2) uma outra dimensão relativa às transformações incorporais ou enunciados de linguagem (atos) que efetuam o acontecimento na sua face incorporal e que remetem a um regime coletivo de enunciação. Estas duas dimensões são necessariamente atravessadas por um duplo processo e um duplo movimento: processo de descodificação das formas (forma própria do regime corpóreo e da forma própria do regime de signos ou da linguagem); e um movimento de desterritorialização ou de dessubstancialização das substâncias (das substâncias corporais ou coisas - estados do movimento - e das substâncias incorporais ou palavras - estados do sentido ou do tempo). A forma dos corpos e seus estados remete a lição das coisas. A forma do discurso remete à lição das palavras. As duas dimensões estão em pressuposição recíprocas e se atravessam e se conjugam, apesar de suas formas próprias heterogêneas manterem-se irredutíveis e autônomas. Esse atravessamento é provocado pela variação dos movimentos de desterritorialização e processos de descodificação do desejo, e faz mudar ora o estado das coisas e a condição de sensibilidade, ora o sentido de mundo e a condição de dizibilidade. Nessa medida, compreendemos que uma linha de fuga (ou de acontecimento) absoluta e virtual atravessa toda experiência real, pondo em variação permanente suas condições, e portando condicionando todo o processo de apreenção e produção do real. Assim também coloca-se em variação as condições de ensino e aprendizado: essa linha de variação virtual acaba por constituir, conforme o agenciamento que a efetua, os limites do que pode ser sentido, movido, dito ou pensado.

Se um agenciamento liga, conecta, conjuga, compõe, combina, produz, fabrica, reveza, distribui e consome corpos e mentes, movimentos e pensamentos, então podemos colocar assim o problema da educação: a qual tipo de agenciamento acoplamos a vida que queremos ensinar e criar e a nossa que pretende ensinar? Se as ligamos a um agenciamento negativo de poder, nossa educação será uma EDUCAÇÃO PARA A OBEDIÊNCIA. Se as ligamos a um agenciamento afirmativo de potência, a educação que teremos será uma EDUCAÇÃO PARA A POTÊNCIA.

Fonte: www.escolanomade.org