segunda-feira, 8 de junho de 2009

Corpo orgânico e corpo histérico, aula de Claudio Ulpiano

Curso de Verão

Aula de 4/01/1995

Quando eu falo pensamento, corpo e tempo - e faço uma associação do pensamento com o corpo - aparece uma idéia aparentemente confusa, porque a tradição da filosofia marcou que o corpo seria o grande obstáculo do pensamento. Inclusive, quando a filosofia emerge na cidade grega - com Platão - essa relação entre o corpo e o pensamento é inteiramente impossível: o corpo seria exatamente aquilo que barraria a passagem do pensamento. Ainda assim, é essa associação “pensamento e corpo” um dos pontos principais desse curso que eu vou dar pra vocês.

E a terceira questão - o tempo - que irá surgindo ao longo da minha exposição.

Neste momento, eu começo a entrar na aula - e tudo o que eu vou dizer terá uma importância enorme para a compreensão de vocês. Nesta primeira aula, eu vou fazer a exposição - e uma pequena experimentação de como vocês estão ouvindo: de como vocês estão recebendo essa maneira de pensar. Por exemplo:

Um músico do nosso tempo - chamado Olivier Messiaen - vai fazer uma distinção entre quatro tipos de canto de pássaros. Diz ele, que na primavera, os pássaros, praticamente todos eles, fazem o canto do amor - que é um canto de sedução, geralmente feito pelos machos. Esse canto de amor - evidentemente - tem uma função específica: serve à espécie - porque o amor permite a reprodução; e serve aos prazeres do indivíduo. Seria esse canto - que eu chamei de canto de amor - que ocorre em todas as primaveras.

O outro tipo de canto, diz ele, que é entendido por todo e qualquer pássaro - é o grito de alarme. Os pássaros - através do gorjeio - fazem o canto de amor e o grito do alarme: dois cantos que estão a serviço do que eu passarei a chamar, nesta aula, de CORPO ORGÂNICO. Ambos os cantos estão a serviço do organismo - das funções dos órgãos; no sentido de que um canto - o canto de amor - tem como único objetivo prestar um enorme serviço à espécie; ou seja - à evolução da espécie; e assim por diante.

Mas, de outro lado, Messiaen vai falar num terceiro canto (por enquanto, eu vou deixar o [quarto] entre aspas). Esse terceiro canto, de que Messiaen nos fala, é o canto que alguns pássaros fazem para o pôr do sol - ou [melhor]: para o crepúsculo e para a aurora. Esse canto não tem nenhum objetivo orgânico e não presta nenhum serviço à espécie ou ao indivíduo: é o canto gratuito - que o pássaro produz, não importa os perigos que ele corra. Segundo Olivier Messiaen, [o canto gratuito] é de uma extraordinária beleza! E quanto mais forte for o crepúsculo; quanto mais se espalhar a cor violeta; e quanto mais bonita for a aurora - mais esplendorosos os temas e motivos que o pássaro canta.

A partir dessa colocação, é evidente que há uma diferença do canto da primavera e do grito de alarme para o canto gratuito - porque esse canto é gratuito [exatamente] porque não presta nenhum serviço ao organismo ou à espécie.

Se, de algum modo, eu me fiz entender; se alguma coisa do que eu falei atravessou... (caso contrário, mais adiante eu farei com que vocês entendam!) - eu marquei claramente a existência - pelo menos nos pássaros - de dois tipos de corpo: um corpo orgânico, que está sempre a serviço da espécie e do indivíduo; e um corpo que, por enquanto, eu só posso chamar de um corpo estético. No caso dos pássaros, é um corpo que fica de tal forma tocado diante das luzes, da claridade e das cores que o crepúsculo e a aurora produzem, que começa a [emitir] - Atenção! - ondas rítmicas: ele gera ondas rítmicas, que se encontram com as forças da natureza. E quando o ritmo se encontra com as forças da natureza - isso se chama SENSAÇÃO.

- O que é a sensação?

A sensação é a potência de um corpo vivo, que produz uma onda de intensidade - que no caso dos pássaros são os ritmos; e no caso das forças caóticas da natureza, as misturas das cores, dos calores e das luzes... E quando essas duas linhas se encontram, emerge o que Olivier Messiaen vai chamar de personagem rítmico. O personagem rítmico não é um sujeito, não é um pássaro. O personagem rítmico é uma onda, que se serve do corpo do pássaro.

Então, através do encontro das ondas estéticas e da composição do personagem rítmico - que é exatamente o pássaro ao fazer esse canto; com as forças do sol, as forças da natureza - que eu passarei a chamar de paisagem melódica - alguma coisa em termos de corpo, em termos de pensamento e em termos de tempo se produz.

Essa mesma exposição (que provavelmente, por enquanto, nem todos puderam entender...) poderemos encontrar no cinema de um diretor de Nova York - que é o John Cassavetes. Todo o cinema do John Cassavetes é um cinema do CORPO - mas de modo nenhum do corpo orgânico. Usando [o que eu falei sobre] os pássaros... - o cinema do Cassavetes é um cinema do personagem rítmico e da paisagem melódica. Repetindo: Cassavetes introduz no cinema o corpo - mas de modo nenhum o corpo orgânico. [cont.]

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Leia [na íntegra] este e outros textos de Claudio Ulpiano acessando o site Centro de Estudos Claudio Ulpiano.

sábado, 6 de junho de 2009

Respiro, por Amauri Ferreira

Nos momentos de respiro estamos acompanhados da nossa própria experiência porque ousamos nos entregar, mesmo que temporariamente, ao aspecto inútil da existência. Somente assim podemos perceber que, de fato, não paramos de mudar um só instante, que nos diferenciamos ininterruptamente – nesse processo sentimos emergir uma grande alegria por participarmos de uma realidade que se alimenta de si mesma. Passamos a amar e a desejar a potencialização da nossa capacidade de sermos profundamente afetados pelo tempo. Como aprendemos a amar as experiências dessa natureza, somos pressionados a comunicar aos outros essa grande emoção da mente – e é inevitável que os pensamentos nunca antes imaginados tornem-se presentes para nós. Essa grande sensação nos coage a vivermos cada vez mais assim: o inútil, o maravilhosamente inútil, expressa a interrupção temporária da agitação, do barulho que provém das quinquilharias eletrônicas, da insana correria de pessoas que precisam atender telefones, ir para o trabalho, consumir distrações, enfim, tudo o que caracteriza o cotidiano do homem utilitário. Com uma virtude encarnada, quem é grande esforça-se, sempre naquilo que pode, para varrer para longe de si a maior parte das obrigações sociais estabelecidas, e trava um combate contínuo contra o automatismo crescente das pessoas, que reproduz uma humanidade embotada, escrava do seu fanatismo utilitário, da sua repugnância contra tudo que é estranho, do seu ódio contra o tempo. Mas a criação e toda grande sensação apenas podem ser filhas do inútil!... Somente assim podemos redimir o útil... Nada nos falta quando entendemos que, para que haja a geração do novo, basta nos aprofundarmos no nosso próprio tempo – um tempo que maquina silenciosamente cada modificação em nós.  É através dele que encontramos o nosso ritmo para tudo que fazemos.


Leia outros aforismos em amauriferreira.blogspot.com

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O QUE É SER CONTEMPORÂNEO? A visão de Giorgio Agamben

O que é ser contemporâneo? Essa foi a pergunta que guiou o curso de filosofia que Giorgio Agamben apresentou no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza. É também o título deste ensaio, até hoje inédito em espanhol [e português], publicado pelo jornal Clarín em 21-03-09. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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1.

A pergunta que eu gostaria de inscrever no início deste seminário é: "De quem e de que somos contemporâneos? E, sobretudo, o que significa ser contemporâneos?". (...) De Nietzsche vem-nos uma indicação inicial, provisória, para orientar nossa busca por uma resposta. (...) Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que havia trabalhado até então em textos gregos e, dois anos antes, havia alcançado uma celebridade imprevista com "A origem da tragédia", publica as "Considerações Intempestivas", com as quais quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição com relação ao presente. "Intempestiva é essa consideração", lê-se no começo da segunda Consideração, "porque tenta entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se sente orgulhosa, ou seja, sua cultura histórica, porque penso que todos somos devorados pela febre da história e deveríamos, pelo menos, nos dar conta disso".

Nietzsche situa, portanto, sua pretensão de "atualidade", sua "contemporaneidade" com relação ao presente, em uma desconexão e em uma defasagem. Pertence realmente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com aquele, nem se adequa a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de perceber e de apreender o seu tempo.

Essa não-coincidência não significa, naturalmente, que seja contemporâneo quem vive em outra era, um nostálgico que se sente mais cômodo na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe coube viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe que irrevogavelmente lhe pertence, sabe que não pode fugir de seu tempo.

A contemporaneidade é, pois, uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, toma distância dele. Mais exatamente, é "essa relação com o tempo que adere a este, por meio de uma defasagem e de um anacronismo". Os que coincidem de um modo excessivamente absoluto com a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque, justamente por essa razão, não conseguem vê-la, não podem manter seu olhar fixo nela.

[cont.]

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Leia o texto na íntegra em IHU - Instituto Humanitas Unisinos