segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

ao maquinista menor, teimosa homenagem


A partir de janeiro, postaremos no blog uma série de textos de Valter que se encontram dispersos pelo mundo (em revistas, livros, jornais, sites etc.). A postagem cumpre uma curiosa missão: como ele nunca os postou diretamente no blog, indicando apenas links de alguns deles, um tanto tardiamente o faremos por teimosia; não apenas uma homenagem, mas uma celebração das amizades que ele arranjou no pensamento, na vida. Reencontrar Valter em sua escrita, em seu estilo, texto-pulsante, força maior. Nossa graça – dádiva e tesão – para manter o USINA funcionando, produzindo aquilo que o maquinista menor sempre favoreceu com maestria: bons encontros.

Antecipando, segue um poema daquela "vida bonita", entre os papéis...

Oi me diga quem és
Acho que sou saudades
Vim de não sei onde
Talvez de cartas e dizeres
Ruas e olhares
Distâncias próximas
Vida breve muito longa

Um estar-se perto e não tocar
Um estar-se longe e não falar
Mas agora moro aqui
Dentro do coração
Às vezes dormente
Ou como um furacão

É quando a lua me acorda

Lua, de céu e estrelas
Às vezes acordo com palavras
Outras vezes na falta de dizeres
Ainda não sei quem sou
Em que céu estou
Para que estrela olhar
Mas alguém me chamou e me saudou de
Saudades


Valter Rodrigues

***

usineir@s e usinad@s, até janeiro!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Valter A. Rodrigues


São os organismos que morrem, não a vida. (Deleuze)

Ao nosso querido e amigo mestre, uma imensa gratidão por convivermos com sua generosidade, afetividade e honestidade.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Ressentimento, por Amauri Ferreira

O ressentido volta-se para o seu passado e, ao mergulhar nele, mais objeções encontra contra si e contra o devir do mundo. Se fosse possível, ele desejaria teria feito outras escolhas, talvez não ter se calado, talvez ter enfrentado alguns riscos e incertezas, talvez não ter feito isso e aquilo. Desejaria, até, ter sido outra pessoa – mas como imagina que o seu passado é impossível de ser alterado, resta-lhe olhar para o seu futuro, para o futuro do mundo, e a resposta para a pergunta “Para aonde vai a existência?” parece-lhe teimosamente escapar. “Haverá um futuro melhor do que o triste e injusto presente?”, insiste ele. A dor por não viver de acordo com o seu desejo é, de fato, a sua maior objeção contra o mundo. Seu cansaço crescente, a obrigação de cumprir os desejos dos outros, a vida que não pára de passar, a sucessão dos acontecimentos que são desfavoráveis ao seu desejo, as ruminações das impressões que servem para alimentar o seu ódio à vida, o ódio às supostas causas dos seus males, tudo isso lhe faz imaginar que o mundo, sua realidade inalterável, nada mais é do que repressão. Cansado também de si mesmo, da inutilidade do seu ódio, o ressentido imagina que sua luta pela vida, isto é, sua busca pela felicidade permanente, é algo que parece ser impossível de ser alcançado. Afinal, ele se dá conta de que as forças da vida excedem o seu desejo – como isso o atormenta, percebe que a vitória sobre o acaso é apenas uma quimera, uma ficção, um engodo. Resta resignar-se com o sentido imposto do exterior, tornando-se cúmplice da ordem moral que se alimenta do seu sangue, que, através dos entorpecentes, faz livrá-lo momentaneamente do terrível sentimento do nada, mas que também o ameaça, castiga, produz medo. Portanto, as relações de poder não se explicam pela famigerada noção de luta de classes. Elas se constituem por indivíduos que não agem, que padecem, que sofrem com o que lhes acontece, e que por isso são movidos por vingança, por vontade de corrigir os homens, de corrigir o mundo. Em razão do ressentimento, é estabelecida uma dependência mútua entre o senhor e os seus servos, de modo que os servos dizem para si mesmos: “Não conseguiríamos viver sem o rei!”; e o rei, da mesma forma, diz para si: “Não conseguiria viver sem os meus súditos!”. Impotente, o ressentido quer uma pequena felicidade, uma pequena ocasião para ser invejado, algum elogio, algum reconhecimento, algum sucesso, alguma fama – e isso tudo ele recebe, sem dúvida, desde que seja submisso ao poder. Mas o homem de poder, por ser ressentido, também é servo daqueles que o servem: como também quer ser invejado, bajulado, reconhecido, é inevitável que dependa de quem se submete para satisfazê-lo. Então, todos servem, os impotentes e ressentidos lutam por sua própria servidão, antes a servidão, antes uma migalha de prazer, do que viver de outro modo, onde haja algum risco, alguma imprevisibilidade, alguma criação. Eles querem, ou melhor, necessitam do poder econômico, da acumulação de bens materiais, de bens culturais (de uma suposta "sabedoria"), para que a sua miséria existencial seja disfarçada. Querem dinheiro, muito dinheiro, para serem admirados, invejados, para se sentirem distintos, superiores, senhores de alguma coisa. Portanto, o capitalismo não é nada misterioso, pois ele é apenas sintoma da necessidade dos ressentidos esconderem, até de si mesmos, o seu sofrimento. É possível perceber que não há, de fato, oposição entre “ricos” e “pobres” : enquanto os indivíduos são ressentidos, permanecem de mãos dadas para a reprodução de tudo aquilo que envenena a vida humana... Ah, e como eles olham com ódio quando se sentem “incultos” e “medíocres” diante de alguém forte, exuberante, alegre e livre do ressentimento! Mas é inevitável que a mediocridade do ressentido – que faz até ele se sentir incomodado – leva-o a tentar algum destaque numa atividade que não seja a do “trabalho-pelo-lucro”: essa é a razão que o leva a tentar desesperadamente algum sucesso (leia-se: alguma admiração, alguma inveja...) na música, na literatura, nas artes plásticas. Mas como ele luta contra o tempo, a superficialidade da sua “atividade artística” apenas denuncia a sua esterilidade, fruto de sua péssima alimentação das sensações e do tempo. E a política dos ressentidos modernos é para rir: sua democracia representativa é pura distração, circo, passatempo, ferramenta de poder – o próprio ressentido percebe cada vez mais que ela não pode ser levada a sério. A democracia serve para desviar o olhar de si mesmo e, dessa forma, reforçar os afetos de rancor que multiplicam as exigências de que alguém (o que habitualmente se chama de “político”) deve resolver os problemas do mundo. E quais são os problemas do “mundo”? Certamente são os que ameaçam a sua tranqüilidade, a sua pequena felicidade, em suma, o seu mundo privatizado... “Um mundo sem dor, por favor!”. Mas tudo se decide aqui: a dor, para o ressentido, é sempre o começo do seu fim, enquanto para quem é sadio, é apenas o começo da sua liberdade de agir. Mas isso é dizer que, enquanto o ressentido nega a vida, odeia a vida, o outro, o criador, afirma a vida, ama a vida. Mas isso é também dizer que, enquanto o ressentido olha para o seu passado com um olhar de reprovação, o homem afirmador não apenas olha para o seu passado, mas também se diverte, brinca, se alegra com ele, faz alguma coisa realmente grande com ele. Mas isso tudo é, enfim, dizer que, enquanto o ressentido entrega o seu destino nas mãos de um parasita, que promete livrá-lo do “mal”, o homem sadio recusa essa submissão e assume a responsabilidade pelo seu próprio destino – ele não foge, não precisa fugir da vida, porque sabe que não há nada fora da vida.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Clínica, indeterminação e biopoder, por Auterives Maciel

No mundo atual, vivemos, de maneira cada vez mais acentuada, a impossibilidade de fazer agenciamentos desejantes. O tempo indispensável para que um desejo se efetue, tempo esse inseparável das experimentações e dos agenciamentos, encontra-se cada vez mais anulado, ou melhor, controlado pelos mecanismos de poder que se exercem não apenas sobre a nossa subjetividade, mas também sobre a nossa própria condição vivente. É bem verdade que o controle do tempo sempre foi uma das preocupações do poder. Segundo Foucault (1979), nas sociedades disciplinares o poder não só ordenava, como também compunha com o tempo a ação do indivíduo. Porém controlar o tempo, impingir um ritmo à subjetividade, eliminar o intervalo temporal existente entre o momento de perceber e o momento de agir, subtraindo do indivíduo a indeterminação indispensável para que ele possa agir criativamente, é um traço acentuado da nossa sociedade. Seguindo Foucault, podemos dizer que o poder que se exerce com tal intuito tem como objeto a vida, o controle do tempo da vida, da indeterminação que acompanha o viver. Ao desenvolver a tese foucaultiana, Gilles Deleuze (1990) denominou sociedade de controle o tipo de ordenamento político-social em que o poder toma a forma de um biopoder, incidindo diretamente sobre as potencialidades da vida – como a sexualidade, a geração de filhos, a saúde etc. Exatamente as dimensões que até então eram consideradas íntimas, aquelas que se referiam à decisão privada dos indivíduos, têm agora o seu campo de possíveis explicitado e controlado, desaparecendo a distinção entre vida pública e vida privada, e mesmo entre a vida subjetiva e o simples viver.
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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Ressentimento: veneno do espírito, por Spartaco Vizzoto

Imaginemos um indivíduo de poucos recursos quanto à força física, que seja agredido por um outro incomparavelmente mais forte. Sua reação imediata, instantânea, consistirá em um impulso de contra-ataque, que no entanto será refreado e recalcado em virtude de uma emoção – o medo que superou a ira inicial. Esta, porém, não desaparece. A contra-reação é adiada para um momento e situação mais favoráveis, nascendo assim um novo sentimento, o de vingança, caracterizado pelo deslocamento no tempo e no espaço da satisfação de um impulso agressivo. Essa energia psíquica em estado de latência pode libertar-se de várias maneiras: pela realização da vingança, através da agressão física e moral (insulto, calúnia, maledicência) ou pelo desprezo (se o agredido se considera de categoria individual ou social muito superior à de agressor). Na impossibilidade de tomar qualquer dessas atitudes, por debilidade física ou moral ou por imperativos circunstanciais insuperáveis, surge um angustioso sentimento de impotência, que imprime à personalidade características especiais – ela está envenenada pelo ressentimento, que a corrói nas suas funções mais nobres, degradando-a aos níveis morais mais inferiores. A intensidade desse fenômeno é particularmente grande quando ligado a um sentimento místico de direito e de dever. É o caso de um selvagem a quem se negou o “direito” a uma vingança de sangue e que se consumiu até morrer.
O ressentido sente e ressente milhares de vezes a mesma sensação de fraqueza, de frustração de seus desejos de represália. Traduz em todos seus atos e atitudes a ação maléfica dessa paixão: torna-se azedo, amargurado, seus juízes são pérfidos. É um detrator sistemático de todos os valores individuais ou sociais, numa tentativa ilusória de aliviar a sua tensão emotiva. É incapaz de um gesto de gratidão, pois transforma os favores que lhe fazem em material para seu ressentimento. “Senti desde muito cedo a penosa escravidão de agradecimento”, escreveu Robespierre, um grande ressentido.
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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Alegria de Segundo Plano ou Alegria Acontecimento, por Bruno Vasconcelos

Resumo:
O presente trabalho é uma versão modificada do texto base utilizado para apresentação da dissertação de mestrado intitulada Cartografias da Alegria na Clínica e na Literatura, defendida em maio de 2005, na PUC de São Paulo. Nele percorro alguns dos problemas que desembocaram na escrita da dissertação. Casos clínicos e contos literários deram ensejo a uma problematização da clínica enquanto espaço de metamorfose das sensações em vibrações intensivas, enquanto espaço aberto ao tempo, enquanto espaço expressivo – tomando a alegria como potência, e por fim, enquanto espaço e duração de dor e sofrimento. No plano teórico, os pensamentos de Nietzsche, Espinosa, Deleuze e Blanchot, alimentaram a escrita e forçaram o autor a buscar pontos de conexões e transversalidades, linhas de fuga e devires, no esforço de construir um texto que desse conta da alegria. Tomar a clínica como produção de subjetividades em meio ao encontro com o intolerável e o trágico, levando o pensamento a paragens antes desconhecidas. Este trabalho sinaliza a existência de um modo subterrâneo percorrendo a produção da escrita, no encontro intensivo com aquilo que não sabemos nomear.

Palavras-chave: alegria; clínica; literatura.

Se, antes de tratar nosso tema detidamente, disséssemos, gracejando, que todos os seres desejam contemplar e voltam-se a esse fim, tanto os racionais quanto os irracionais, e ainda as plantas e a terra que as engendra, e que todos estes seres chegam a esse fim enquanto são capazes, de acordo com sua natureza, mas que eles contemplam cada um a seu modo e alcançam algumas vezes a realidade e outras vezes uma imitação e uma imagem da realidade, poderia alguém suportar tal paradoxo de nosso discurso? Porém, estamos em família e não corremos perigo de adular-nos a nós mesmos. É verdade que, de pronto, nós contemplamos no momento presente, enquanto nos entretemos? E certo que nós contemplamos, como todos aqueles que se divertem; divertimo-nos porque desejamos contemplar; e tanto as crianças quanto os adultos, brinquem ou estejam sérios, parecem não ter outro fim que a contemplação. Todas as ações tendem à contemplação: sejam as ações necessárias, que dirigem principalmente nossa contemplação em direção às coisas exteriores, sejam as ações voluntárias (livres), que as dirigem menos em direção ao exterior, não tendo outro móvel que a contemplação.
Porém, de tudo isto trataremos depois. Falemos agora da terra, das árvores e das plantas. Digamos qual seja sua contemplação e como podemos reduzir as coisas produzidas pela terra e saídas dela à sua atividade contemplativa; como a natureza, que se diz carecer de fantasia e de razão, possui em si contemplação e o que faz o produz pela contemplação que (segundo alguns dizem) ela não possui. (
Plotino, citado por Quiles, 1981, pp. 65-66)


A produção de uma dissertação de mestrado constitui um percurso árduo e curioso. No início da escrita de meu trabalho não tinha a menor idéia de como ele terminaria, suas idas e vindas, os modos e maneiras como o texto se fazia, seus excessos, os momentos de secura, o intenso desejo de escrever, e também sua ausência. Há uma alegria de segundo plano que corre pela dissertação. Uma alegria estranha, um puro sofrimento a convocar distintas maneiras de expressão.
Em um mesmo plano de composição, tornou-se possível produzir aproximações de campos distintos, através de uma abordagem paratática, no circuito clínica/literatura/pensamento. Distante ficou a imagem idealizada de uma dissertação de mestrado nos moldes de um academicismo restrito, improdutivo, pouco alegre. Ao fim da viagem, o trabalho apresentado à banca em maio de 2005, intitulado Cartografias da Alegria na Clínica e na Literatura, fez-se de uma maneira insólita e inédita. Fez-se como um exercício de criação, uma linha de fuga, um exercício de aprendizagem em devir.
Um segundo plano salta dos fragmentos clínicos e dos contos literários narrados ao longo do texto, um segundo plano que aos poucos foi se apagando, para ficar o registro escrito, capítulos, páginas, parágrafos, linhas. De memória evoco um verso do poeta Murilo Mendes a dizer: Como são fundamentais / Estes sofrimentos de segundo plano! (Mendes, 1994, p. 543). Penso que poderia brincar com o poeta, dizer de outra maneira, como são fundamentais estas alegrias de segundo plano!


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Bruno Vasconcelos de Almeida é Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Professor da PUC Minas, Instituto de Psicologia da PUC Minas. E-mail: brunovasconcelos@pucminas.br

História, Memória e Esquecimento, por Bruno Vasconcelos

Em dois mil e oito, o ministro da justiça da época – Tarso Genro, e o então presidente do Superior Tribunal Federal – Gilmar Mendes, entraram em polêmica acerca da punição das pessoas envolvidas com a tortura durante a ditadura militar. Eis que das sombras, em jornal televisivo do maior grupo de comunicação do país, surgiu a figura de Jarbas Passarinho, ministro de três dos governos do referido ciclo. Indagado sobre a polêmica, Passarinho recordou seu último chefe. Ele, João Batista Figueiredo, ‘não queria justiça, queria o esquecimento’. Frase dita, segundo o ex-ministro, no apagar das luzes do regime.
Não querer justiça, mas o esquecimento, supondo que tal frase tenha sido dita desta maneira, nos empurra para uma bela confusão. Misto de truculência com ignorância, o general que adorava cavalos também afirmou, e cito de memória, que o brasileiro não sabe, ou não sabia usar o mictório. Curiosamente o pedido tem sido atendido. Apesar de inúmeras teses, dissertações, livros e relatos, a lembrança ou o conhecimento da história recente do país não são generalizados na população e permanecem restritos aos envolvidos e à uma pequena parcela de brasileiros.
Atrelados até o pescoço à lógica de um capitalismo que renova o consumo a cada instante, temos uma juventude que desconhece a história de seus pais. Entre historiadores encontramos a constatação de uma memória seletiva oriunda das dinâmicas das relações de poder na cena social do contemporâneo. Alguns grupos que chegaram ao comando, compostos majoritariamente daqueles que estiveram no exílio, predominaram sobre outros de quê pouco se fala, e apenas o silêncio a recobrir a dor de seus próximos. [cont.]
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Bruno Vasconcelos de Almeida é Doutor em Psicologia Clínica (PUC/SP), Psicólogo, Acompanhante Terapêutico e Professor da PUC Minas

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Isso que me olha, por Valter A. Rodrigues

[...] a gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação (Manoel de Barros)

Um

Um homem procura uma mulher pelas estepes siberianas, recusando todas as recomendações de seu amigo quanto ao risco de sua empreitada. Sim, a mulher é casada, sim, tem uma filha, sim, sim, o marido é ciumento, esse encontro que ele busca, que o obceca, pode matá-lo. Mas não há apelo à razão que possa deslocá-lo de seu movimento e sua fissura. É preciso, é urgente falar com ela. Sua aflição o arrasta, carrega o que quer que encontre em seu caminho, as dores, as ânsias, os olhos, ah, sim, todos os olhos que buscam capturá-lo, pará-lo por um instante que seja, reconhecê-lo no que o move.
Seu movimento, que ignora qualquer barreira, encontra outros movimentos, outras ânsias, outras perambulações. Movimentos que entretanto não lhe dão continência. A mulher, um ponto vermelho na paisagem dourada, um ponto que o ignora e que ele busca, está lá, não exatamente à espera, mas visível sob a luz intensa que a faz emergir única, singular, como pólo irresistível de atração. O que os separa, uma brecha, uma fissura no terreno, marcando o lugar de onde ele fala, interpela, demanda, e o da mulher e a filha que ela chama, sustentando-se numa quase indiferença que o incita, que o provoca. Um corpo que existe à sua revelia, embora só tenha existência porque, de seu lugar, de seu desejo, ele o olha e o interpela. E esta é a questão que ele lança, insistente: estivemos juntos numa festa, lembra-se?, e você me olhou. E agora, o que fazer com isso? O que fazer disso, desse acontecimento singular, desse encontro de olhares? O que fazer dessa captura? A pergunta ansiosa do homem encontra a plácida resposta da mulher que ao mesmo tempo o evita e o atrai: não sei...
Dois

A escola descobre o cinema. Essa descoberta assume várias formas. A mais comum e prosaica é o uso do cinema como dispositivo temático. Exibe-se um filme como suporte para algo que se pretende apresentar aos alunos. São abundantes hoje as indicações de filmes para se trabalhar isto ou aquilo a partir de seu conteúdo. Trabalha-se, assim, saúde, história, geografia, ecologia, ética, relações humanas com o recurso aos exemplos. Este é um uso moral do cinema, pois ele supõe sempre a existência de um modelo, de uma referência pré-dada em relação ao qual algum ajuste se propõe, tendo como resultado esperado e final uma compreensão do tema proposto. O filme como narrativa, como texto, está em segundo plano ou nem sequer é considerado.

Três

Todos os filmes são histórias de amor, diz Wim Wenders em O estado das coisas. E a relação primeira com o cinema é de paixão. O encontro com a tela e suas imagens dificilmente é significável senão como encantamento. Não responde às necessidades básicas da vida, não é essencial à sobrevivência, pode ser considerado dispensável ao cotidiano dos homens... Entretanto, encontrá-la, ser tocado por suas imagens, por esse tempo que dura, pelo movimento em transformação que apresenta nos coloca na condição do homem que busca a mulher nas estepes siberianas: você me olhou, e agora, o que fazer com isso? O que fazer com essa perturbação do corpo, com essa desordem sensório-motora, com essa abundância de perceptos e de afectos que o afetam? E não se trata, nessa pergunta, de compreender nem de explicar, mas sim de saber como dispor-se ao encontro com seus ritmos, suas velocidades, suas variedades, seus fluxos, pois é na afetação que se produz nesse encontro que o corpo, tomado por essas forças que lhe chegam sem que delas tenha controle, é forçado a pensar. Um pensar que só é possível no próprio afetar-se, no habitar a diferença que se produz nesse encontro corpo-imagens. Pois a força de um filme não está na tela nem no olho de quem o vê; está no entre.

Zero
No encontro, a educação é do olhar; no encontro, o que pulsa é a possibilidade de pensar; no encontro, o que o sustenta é uma ética. Não se trata de “qual cinema” colocar na escola, mas “como” colocar o cinema na escola.
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A referência, aqui, é ao filme Euphoria, de Ivan Vyrypayev. Produção russa de 2006, o filme é um poema audiovisual que tem como protagonista as estepes siberianas. Um homem e uma mulher saem em louca corrida pelas estepes, movidos por uma urgência que não podem nomear.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Trecho do aforismo 354 de A gaia ciência, de Nietzsche

Do "gênio da espécie". — O problema da consciência (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem ela: e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste começo de entendimento (...). Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar, poderíamos igualmente "agir" em todo sentido da palavra e, não obstante, nada disso precisaria nos "entrar na consciência" (como se diz figuradamente). A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento — também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais ofensivo que isto soe para um filósofo mais velho. Para que então consciência, quando no essencial é supérflua? Bem, se querem dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar compreensíveis suas necessidades, também seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros. Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (— os chamados artistas são esses herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no final de uma longa cadeia, "frutos tardios“, na melhor acepção do termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores). Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação — de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas — apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência — ao menos parte deles —, é conseqüência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível — e para isso tudo ele necessitava antes de "consciência" isto é, "saber" o que lhe faltava, "saber" como se sentia, "saber" o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos: — pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado. Acrescentese que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos. O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si — ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais.

Adaptado de NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Curso de Extensão 2010 - Os Sentidos da Clínica


VAGAS PARA O PERÍODO DA MANHÃ JÁ PREENCHIDAS. INSCRIÇÕES ABERTAS PARA NOVA TURMA, AOS SÁBADOS, DAS 14 ÀS 17H. INÍCIO EM 29.05

OS SENTIDOS DA CLÍNICA


Fazer a clínica - Valter A. Rodrigues

1. Teoria da multiplicidade e filosofia da diferença x monolitismo da redução cientificista

2. Criação x interpretação

3. Ética e estética na clínica

4. Fazer com o outro

- o entre no lugar do ente

- a dimensão ético-afetiva no fazer a clínica

- a dimensão ético-política da clínica que se faz


Questões psicopatológicas - Antonio Moura

1. Conceito de psicopatologia

- destaque para século XIX até os nossos dias

2. Psiquiatria e psicopatologia

- operação de “descolar” uma da outra

3. Semióticas da clínica

- criação de regimes de signos

4. O que é uma terapêutica?

- impasses atuais: o que “fazer” com o paciente?


O encontro como possibilidade de acesso ao mundo do outro e de compreensão de si, do outro e da realidade – Daniel Marinho Drummond

1. O encontro significativo e a subjetividade como possibilidades de compreensão do outro, de si e da realidade

2. Atitudes que facilitam um encontro significativo

3. Prática: utilização do método fenomenológico na identificação de eixos de significado e de conexões de sentido presentes no mundo do outro

4. O movimento diante do encontro: afetar e afetar-se


A filosofia da diferença na clínica - Leonardo Maia

1. Freud e Nietzsche

2. A recepção de Freud na filosofia

3. A psicanálise e a filosofia da diferença

4. O sentido da clínica e as alternativas à clínica psicanalítica

5. Clínica e crítica: arte, literatura e pensamento em Deleuze e Guattari

Antonio Moura é psiquiatra, mestre em Educação pela UFF/RJ. Atua na clínica psicodramática e na prática do sociodrama com grupos institucionais. / Daniel Marinho Drummond é psicólogo, mestre em Psicologia pela UFMG. Atualmente é professor substituto na UFBA e na UESB, professor da FJT e psicólogo clínico, atuando em consultório particular. / Leonardo Maia é doutor em filosofia pela PUC-Rio e professor adjunto da área de Filosofia da UESB, onde leciona desde 1999. É editor responsável do APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. As áreas de atuação concentram-se atualmente em Filosofia francesa moderna e contemporânea e Filosofia da Educação. / Valter A. Rodrigues é psicólogo pela PUC-SP, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, professor da FJT; atua como psicólogo clínico em consultório particular e como psicólogo concursado na Rede de Atenção e Defesa da Criança e do Adolescente, da PMVC. Coordenador do coletivo Usina - estudos e praticas micropolíticas.



Carga horária total: 90 h - 30 encontros de 3 h, aos sábados.

Custo: 1 (inscrição) + 5 de R$ 150,00

Início: 22 de maio

Desconto de 10% no pagamento a vista.

Local de inscrição: Rua Leonidio Oliveira, 450 A - Recreio

45020-341 – Vitória da Conquista (BA)


Das 9 às 12 h e das 14 às 18 h, com Tamires.

(para inscrição pela internet, veja instruções na Ficha de Inscrição, disponível para download abaixo)

Informações: [077] 3421-9550 / [077]8817-5456 / [077]9136-6808



Clique aqui para download da Ficha de Inscrição

segunda-feira, 29 de março de 2010

Pequena nota sobre o ensino e outras práticas relacionais

Uma história de Jha

Jha, personagem bem conhecido das histórias marroquinas, foi, numa sexta-feira, à mesquita. Nesse dia, os fiéis pressionaram-no a tomar a palavra e dirigir-se a eles. Depois de haver tentado longamente subtrair-se à expectativa deles, Jha acabou por perguntar-lhes: “Vocês sabem o que vou lhes contar?” A platéia respondeu negativamente, e ele lhes disse: “Como posso falar-lhes daquilo que ignoram?”

Na sexta-feira seguinte, os fiéis haviam combinado o que responderiam se Jha tentasse novamente evitar dirigir-se a eles. Depois que ele lhes perguntou novamente: “Vocês sabem o que vou lhes dizer?”, eles retrucaram em coro: “Sim, nós o sabemos”. Jha replicou: “Mas então, de que lhes serve dizê-lo?”, e foi sentar-se tranqüilamente na platéia.

Na terceira sexta-feira, a assembléia acreditou ter enfim encontrado a réplica que forçaria Jha a falar. À questão reiterada: “Vocês sabem o que vou lhes dizer?”, metade da audiência respondeu “Não” e a outra metade respondeu “Sim”. Jha lhes disse então: “Que aqueles que sabem digam àqueles que não sabem...”

[in: Mony Elkaim, Se você me ama, não me ame; abordagem sistêmica em psicoterapia familiar e conjugal. Campinas: Papirus, 1990.]