sábado, 1 de janeiro de 2011

[escritos_valter 1]: À plena luz, o susto do cavalo do Dragão (2003)

Este texto, escrito na ocasião da posse do presidente Lula, no seu primeiro mandato, é uma carta a Espinosa, filósofo que inspirou em Valter muito do que pudemos aprender com ele. Coincidência ou não, (pelo menos) um dos cavalos dos Dragões da Independência se mostrava afoito, agoniado na cerimônia de posse da presidente Dilma Rousseff, horas atrás.

Boa Leitura!




À plena luz, o susto do cavalo do Dragão (2003)

Valter A. Rodrigues

Querido Espinosa

Escrevo-lhe do Brasil, país que se construiu como fruto da expansão colonial européia do século XVI e que foi sonhado pelos iluministas do século XVIII como exótico, sítio privilegiado do homem natural, como desejava Rousseau, e cantado, desde o início, como o paraíso terrestre, habitado por estranhos e receptivos seres sem pudor nem pecado.

Este país ainda ressoa, nas suas relações, essa primeira percepção dos estrangeiros em seu encontro com os nativos.. Explico-me. Quando aquilo que se desenha em nosso espírito no encontro com o outro nos afeta profundamente e soa dissonante, a imaginação se acelera e se constrói sobre o pior. É na dissonância, maior quanto mais intensa a afetação, que aquilo que nos encanta e perturba nos demanda uma força mais e mais destrutiva. Claro, pode ocorrer de outro modo, mas como se deixar afetar não raro soa demasiado perigoso para aquilo que nos constitui, é sempre mais seguro o gesto destrutivo. Aqui, foi assim que aconteceu. “Em nome da civilização”, tudo o que parecia bárbaro, belo, sedutor, natural e grandioso foi sistematicamente dizimado, contido e reapropriado pelos conquistadores. Restou um traço, imagem pálida do que poderia ter sido este então admirável mundo novo: a idéia de um povo cordial e alegre, exuberante em sua sensualidade e, malgrado as revoltas que a história oficial sempre se encarregou de negar e encobrir, facilmente governável, posto que ingênuo e passível de ser satisfeito com umas poucas e inúteis bugigangas.

Apesar dessa versão “oficial”, somos efetivamente um povo alegre, embora dificilmente governável. Há aqui uma alegria que, se não chega a ser um pleno contentamento de si, sustenta uma expressividade resistente às opressões cotidianas e que sobrevive até mesmo aos esforços de sua apropriação em continentes mais administráveis, como a que cria de nós a imagem-exportação de país do carnaval, do futebol e do sexo fácil. A nossa é uma alegria que resiste e que, por isso, não cessa de ser rebatida sobre um cenário barroco belo em suas volutas e cruel em suas dobras.

Desnecessário dizer que o Estado que se desenhou aqui, desde os movimentos da colonização, não chegou sequer a se constituir plenamente sob a forma, ainda que indesejável, de Estado-nação. Não chegamos a essa condição de, anônimos, podermos nos designar cidadãos. Expropriação de riquezas, escravagismo, descarados populismos, persistentes autoritarismos e uma democracia de conveniência escreveram nossa história. Uma história, aliás, vivida aos trancos, em sua estrita dependência da escrita em outros lugares. Sustentando-a, nosso Estado tem produzido governos cujo maior desejo parece sempre ter sido, sem sucesso, o de ignorar a multiplicidade que somos e formatar-nos como um povo que melhor serviria à sua vontade. Frustrados nesse projeto, e sem lhe reconhecer a impossibilidade, esses governos oprimiram, construíram estratégias de docilização e ludibrio, perseguiram os desobedientes, formularam vãs promessas e, assim, se sustentaram em berço esplêndido, enquanto mantinham a população no sonho de dias melhores.

À maneira da França monárquica e sua Versailles, este país também definiu sua condição de governabilidade, constituindo um “espaço do poder”, uma cidade Potemkin que, localizada num pólo central de irradiação territorial, foi sonhada como um lócus do qual o poder, idealmente, se exerceria mais eficaz e protegido, distante de manifestações desejantes que viessem atrapalhá-lo em sua porta. Uma cidade imponente, bela e estranha, fria e barroca, generosa em seus espaços abertos e homogênea em suas formas, não idealizada para ser ocupada pela multidão, mas para ser tão-somente a própria representação e espaço do poder num país tão grande e múltiplo. Foi nessa cidade que ocorreu o que vou lhe contar.

Depois de muitas lutas e fracassos, e pela primeira vez na história deste país, chegou à presidência um representante que emergiu do anonimato dessa multidão que somos. Conhecido por seu apelido de fábrica e de líder sindical, foi durante anos ridicularizado e sabotado em seus esforços de chegar à presidência, tão frágil e ameaçadora sua pertinência e formação. Em torno dele organizou-se um partido que, em sua origem, foi pólo de convergência e aglutinação de um sem-número de minorias, o que fez dele um poderoso catalisador dos “inconscientes que protestam”, como identificou Guattari em 1982. Esse acontecimento de que lhe falo se deu no dia de sua consagração: o da solenidade da posse.

Vindos de todos os lugares e por todos os meios disponíveis, criando uma colorida, alegre, irreverente e esperançosa massa humana em movimento, os múltiplos fizeram uma grande festa nas ruas não projetadas para eles. Uma festa-presente, em primeiro lugar para si mesmos, mas também para o emocionado novo presidente que, longe de bastar-se da solene distância para agradecer-lhes a alegria, a todo momento tentava, para pânico de seus agitados seguranças, misturar-se com eles, como se resistindo a desligar-se da própria origem. Foi um dia belo, no qual os jornalistas encarregados de registrá-lo repetiram muitas vezes um mesmo bordão: “quebra de protocolo”, da qual o principal agente foi, quase sempre, o próprio novo presidente.

A imagem que lhe envio é exemplar do que ocorreu nesse dia. Esse cavalo que se empina assustado, narinas dilatadas e dentes à mostra e derruba seu cavaleiro todo engalanado pertence, indissociável do cavaleiro, à guarda da presidência. Essa guarda tem uma função simbólica: ela marca a distância entre representante e representados nos atos solenes, estabelecendo a linha de separação e indicando os limites da relação de proximidade entre um e outros. Imponente, majestosa, porta em seu nome o momento em que este país rejeitou, ainda que só formalmente, sua condição de dependência e se declarou autônomo: Dragões da Independência.

Por essa posição simbólica, quando ela passa, encabeçando o desfile solene, a multidão recua, respeitosa, quando não assustada, pois sabe que, por maior seu entusiasmo, ela e aquele que a representa não pertencem ao mesmo campo. Nesse dia de que lhe falo, entretanto, algo se deu: a multidão não se afastou respeitosa e assustada, obediente à designação de seu lugar. Por permanecer, em plena alegria, identificada com seu representante, foi a própria ordem que se assustou, foi ela que se desarticulou, por instantes, no susto do cavalo do Dragão.

Nesse momento, o que se expôs, ainda que brevemente, foi uma fissura nessa relação de forças que faz da alegria e do poder que lhe dá continente esse algo muitas vezes inócuo, no máximo um triste subproduto vendável em seu exotismo: o aparentemente forte é muito frágil quando depende somente do medo e da obediência daqueles que ele sujeita. A força de uma representação pouco pode perante o grito da multidão, seja ele de dor ou de alegria.

O acontecimento que lhe relato não teve maiores conseqüências. A mídia, que reina soberana na produção dos enunciados que consumimos à exaustão, tratou-o como mais um entre os tantos fait divers identificados como “quebra de protocolo” de um dia relativamente tranqüilo e festivo. Não houve, que eu saiba, quaisquer ações agressivas em relação à incansável multidão em festa.

Passados mais de seis meses desse acontecimento, para alguns dos esperançosos festeiros o entusiasmo já arrefece; aos aduladores do novo poder, face às previsíveis dificuldades do presidente na gestão do país, resta, após uma trégua vigilante, o odioso retorno aos ataques, agora como oposição. O presidente, tão feliz naquele dia, surge às vezes com o rosto cansado, a expressão inquieta, embora mantendo sua esperançosa emotividade. Talvez esteja descobrindo que “tomar” o poder não implica maior potência para alterar as coisas do mundo. Há algo, entretanto, que permanece vivo em nós e se reaviva perante essa foto que eterniza o susto do cavalo do Dragão: a força e a alegria da multidão, plena de esperança, ocupando aquelas ruas não imaginadas para ela. Uma esperança sem medo e uma alegria manifestando-se como pura expressão de uma potência que é, como você nos ensina, a única capaz de mudar o mundo.

Com afeto

***

[Este texto, formulado como uma carta ao filósofo Espinosa, foi publicado em versão reduzida, com o título A esquerda e o susto do cavalo do Dragão, na revista Glob[al] no. 1, 2003. Rede Universidade Nômade. (ver revistaglobal.multiply.com)]

[A foto que registra o momento da queda do cavalo do dragão é de
Brígida Rodrigues. Jornalista e fotógrafa, editora de imagens da revista Líbero no período de 2002-2003, do programa de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero (SP), atualmente editora de conteúdo do site www.brimagens.com.br]



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