segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Reich em "O Anti-Édipo", por Luiz Orlandi

O objetivo desta comunicação é tão-somente salientar as explícitas referências feitas a Wilhelm Reich (1897-1957) encontradas em O Anti-Édipo [1], obra publicada em 1972. Embora não seja o caso de explicitar cuidadosamente os conceitos envolvidos nessas referências, procurarei destacá-las tendo em vista o papel que elas desempenham em certas linhas da problemática própria desse livro.
Que problemática é essa? O título resumido desse livro – O Anti-Édipo – tem o inconveniente de sombrear uma coisa importante: ele obscurece a inserção do livro numa alongada e complexa série de textos, série dita Capitalismo e esquizofrenia, da qual participam também Mil platôs, de 1980, e O que é a filosofia?, de 1991. Além disso, esse resumido título – O Anti-Édipo -- facilita a redução do sentido da obra a uma simples oposição a certo modelo gerado na psicanálise. Para afastar essa primeira impressão de sombreado e de reducionismo, é preciso ir ao encontro daquilo que é positivamente afirmado nessa obra, é preciso pensar a expressão anti-Édipo como se estivéssemos viajando ao longo de um criativo rompimento com a tradição que maltratou o desejo, que o manteve prisioneiro da falta, por exemplo. A atmosfera do livro é a de uma nova problemática que se impõe ao pensamento mais acordado do século XX, pensamento que é, paradoxalmente, aquele que mais desconfia de si próprio, pensamento que se sabe infestado por um impensável que o fustiga, mas que também pode deixá-lo apenas abobalhado. A audácia do livro, portanto sua contribuição para essa problemática, consiste em libertar o desejo daquelas representações, concepções, modelos etc. que atrapalham pensar o próprio desejo como sendo o impensável do pensamento representativo, o impensável a ser pensado, mas por uma nova maneira de pensar, o que implica, portanto, o advento de uma nova imagem do pensamento. É a essa ousadia que O Anti-Édipo se dedica. Ele o faz, postulando a necessidade de praticar o aprendizado do desejo, isto é, no caso desse livro, a necessidade da atenção imanente a um funcionamento desejoso libertado de Édipo.
Mas que significa esse libertar-se de Édipo? Esta pergunta remete aos grandes “temas” que os autores valorizam quando, tempos depois, resumem o que pensam do seu livro[2]. Esses temas configuram dimensões da problemática antiedipiana. Com a ajuda delas talvez possamos organizar as referências do livro às instigações que os autores encontram em Reich. Cada uma dessas dimensões, cada um desses temas corresponde a um dos quatro capítulos do livro. Seguirei esse fluxo, mesmo com o risco de algumas repetições.

A. Primeiramente, é preciso levar em conta que libertar-se de Édipo é uma árdua tarefa. Essa tarefa vai desde uma fúria destruidora até a necessária pergunta pelo funcionamento concreto do “inconsciente”, de modo que este não seja submetido a representações ou interpretações: “o inconsciente”, dizem os autores, “funciona como uma fábrica e não como um teatro (questão de produção, e não de representação)”. Os modelos representativos, assim como as interpretações, precisam levar, em cada caso, o choque da pergunta pelo funcionamento da coisa. Trata-se de um choque de realidade. Mas é preciso não interpretar a própria realidade como falta, não apenas porque isso é expressamente criticado [375; 398], mas porque, como ensina certo bergsonismo, ao real nada falta; mesmo o inesperado, o novo, as surpresas, as criações, os possíveis são diferenciações numa complexa realterabilidade. E é dessa realterabilidade que participam produtivamente os fluxos desejosos, razão pela qual a tese que vigora na obra toda é a do desejo como produção, e não como carência ou falta.
A. A respeito desse tema, o capítulo I (“As máquinas desejantes”), em seu item 4 (intitulado “psiquiatria materialista”) inclui uma referência a Reich.
Nesse momento, o livro está defendendo a tese segundo a qual “a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”. Isso quer dizer que há imanência entre o campo social e o desejo, quer dizer que o “campo social é imediatamente percorrido pelo desejo”, ou seja, que o desejo é coextensivo ao social, que “a libido não tem necessidade de mediação ou sublimação alguma, de operação psíquica alguma, de transformação alguma para investir as forças produtivas e as relações de produção”, de modo que o desejo participa da “produção” até mesmo das “mais repressivas e mortíferas formas da reprodução social”.
É neste ponto que os autores, além de estarem dialogando de outro modo com a tradição marxista, se aliam a Espinosa e a Reich para exprimir o que chamam de “problema fundamental da filosofia política”, aquele que Espinosa “soube levantar”, e que Reich “redescobriu”. Eis a pergunta que exprime esse problema: “por que os homens combatem pela sua servidão como se se tratasse da sua salvação?”
Na seqüência do texto, os autores enaltecem Reich e concordam com ele, mas criticam-no por ainda manter um “dualismo” entre o “racionalmente produzido” e a “produção fantasmática irracional”. Convém transcrever integralmente a passagem:
“Nunca Reich mostrou ser um tão grande pensador como quando se recusa a invocar o desconhecimento ou a ilusão das massas ao explicar o fascismo, e exige uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isto que é necessário explicar, essa perversão do desejo gregário. (Psicologia de massa do fascismo). Todavia, Reich não chega a dar uma resposta capaz, porque restaura o que pretendia demolir, ao distinguir a racionalidade tal como existe, ou deveria existir no processo da produção social, do irracional do desejo, sendo apenas este que está sujeito à psicanálise. Reserva então para a psicanálise a única explicação do ‘negativo’, do ‘subjetivo’ e do ‘inibido’ no campo social. Retoma necessariamente o dualismo entre o objeto real racionalmente produzido e a produção fantasmática irracional. Renuncia, pois, a descobrir a medida comum ou a coextensão do campo social e do desejo. E que, para fundar uma psiquiatria realmente materialista, faltava‑lhe a categoria de produção desejante, à qual o real foi submetido tanto sob formas ditas racionais como irracionais”.
A crítica dos autores ocorre porque eles mantêm, mesmo quando há maciça “repressão social agindo sobre a produção desejante”, o “princípio” segundo o qual “o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra coisa senão a produção social” [36-37; 46-47].

B. O segundo grande tema desse livro, a segunda dimensão do seu libertar-se de Édipo, consiste em pensar o “delírio” como “histórico-mundial”, e não reduzi-lo ao jogo “familiar”: “o delírio, ou o romance”, dizem os autores, “é histórico-mundial, e não familiar (deliram-se as raças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais...)”.
B.1. Em função desse tema, encontramos quatro referências no capítulo II (“Psicanálise e familismo”).
A primeira delas está no item 5 (intitulado “a síntese conjuntiva de consumo”).
Está em pauta nessa referência a caracterização da esquizofrenia, do “processo esquizo” em sua “viagem” em meio a “relações de intensidade através das quais o sujeito passa sobre o corpo sem órgãos, e opera devires, quedas e altas, migrações e deslocamentos” [100; 112]. Está em pauta o “consumo de quantidades intensivas” nesse nomadismo, quantidades que “formam o material das alucinações e delírios subseqüentes” diferenciados por “emoções intensivas” [101; 113]. Ora, se o processo esquizo implica uma tal agitação intensiva, então, dizem os autores, “longe de ter perdido não se sabe qual contato com a vida, o esquizofrênico é o mais próximo do coração palpitante da realidade, até um ponto intensivo que se confunde com a produção do real”. E é essa pulsação intensiva, segundo os autores, que leva Reich a esta frase do seu livro A função do orgasmo: “’o que caracteriza a esquizofrenia é a experiência desse elemento vital (...) no que concerne a seu sentimento da vida; o neurótico e o perverso estão para o esquizofrênico como o comerciante sórdido para o grande aventureiro’”.
Então perguntam os autores, como explicar a redução do esquizofrênico “à sua figura autista, hospitalizada, cortada da realidade? É o processo, ou, ao contrário, a interrupção do processo, sua exasperação, sua continuação no vazio?” Por que o processo se encolhe num “corpo sem órgãos tornado novamente surdo, cego, morto?” Mas aí já estamos fora da referência [104-105; 116-117].
B.2. Ainda no cap. II, a segunda referência aparece no item 6 (“Recapitulação das três sínteses”).
Nesta passagem, os autores ficam a favor de Reich e Marcuse e não dos que os acusam de “rousseauismo”, de “naturalismo”, de terem uma “concepção demasiado idílica do inconsciente”. Os detratores estariam perdendo de vista que os “horrores” atribuídos ao “inconsciente” são precisamente “os da consciência”. Numa perspectiva vizinha a de Reich e Marcuse, os autores dizem que o inconsciente é, “necessariamente”, ocupado por “menos crueldade e terror” (e que crueldade e terror nele seriam ainda “um outro tipo”) do que a “consciência de um herdeiro, de um militar e de um chefe de Estado”. Os horrores do inconsciente “não são antropomórficos”, e quem “engendra os monstros” é a “racionalidade vigilante e insone”. Trata-se, a rigor, concluem Deleuze e Guattari, de “desedipianizar”, de “desfazer a teia de aranha do pai-mãe”, de “desfazer as crenças para atingir”, na imanência, “a produção das máquinas desejantes, e os investimentos econômicos e sociais onde se joga a análise militante” [133; 146-147].
B.3. Ainda no cap. II, temos uma terceira incidência do nome Reich no item 7 (“Repressão e recalcamento”).
Essa passagem trata da relação entre “repressão” e “recalcamento”. O livro diz que a psicanálise põe Édipo como “objeto do recalcamento, e mesmo seu sujeito por intermédio do superego”. Com isso, ela pretenderia uma “justificação cultural do recalcamento”, passando-o para o “primeiro plano” e colocando o “problema da repressão como secundário do ponto de vista do inconsciente”. Pois bem, Reich (em A função do orgasmo) e também Marcuse (em Eros e civilização) propiciam, segundo os autores, de maneira “rigorosa e nuançada”, expressões do modo como a psicanálise se embrenhou cada vez mais em uma “visão familista e ideológica”, assim como em “compromissos reacionários”.
Nesse quadro, “a força de Reich”, dizem Deleuze e Guattari, “foi ter mostrado como o recalcamento dependia da repressão”. Para não confundir os conceitos, deve-se levar em conta o seguinte: “a repressão tem justamente necessidade do recalcamento para formar súditos dóceis e assegurar a reprodução da formação social, inclusive em suas estruturas repressivas”. Entretanto, isso não autoriza compreender a “repressão social” com base num recalcamento familiar coextensivo. Ao contrário – e é esta a maneira dos autores concordarem com Reich – o recalcamento é que “deve ser compreendido em função de uma repressão inerente a uma forma de produção social dada”. E essa repressão, além de atingir “necessidades e interesses” (pré-conscientes ou conscientes), incide “sobre o desejo (...) pelo recalcamento sexual”, o que acaba atualizando Édipo.
Para os autores, Reich, esse “verdadeiro fundador de uma psiquiatria materialista”, foi o “primeiro a levantar o problema da relação do desejo com o campo social”. E, ao fazer isso, “colocando o problema em termos de desejo”, Reich “foi o primeiro a recusar as explicações de um marxismo sumário”, um marxismo apressado em “dizer que as massas foram enganadas, mistificadas”.
Por outro lado, nessa mesma passagem do livro, Deleuze e Guattari deixam claro um certo desacordo em relação a Reich. Eis como eles dizem isso: por não ter “formado suficientemente o conceito de uma produção desejante”, Reich “não conseguiu determinar a inserção do desejo na infra-estrutura econômica, a inserção das pulsões na produção social. A partir disso, o investimento revolucionário lhe parecia tal, que o desejo coincidia aí, simplesmente, com uma racionalidade econômica; quanto aos investimentos reacionários de massa, eles lhe pareciam ainda remeter à ideologia, tanto que a psicanálise tinha por papel único explicar o subjetivo, o negativo e o inibido, sem participar diretamente como tal na positividade do movimento revolucionário ou na criatividade desejante”. Essa observação se repete no cap. IV [412-413; 438].
Apesar dessa crítica, os autores reconhecem que Reich, “em nome do desejo, fez passar um canto de vida na psicanálise”. Reich “denunciava, na resignação final do freudismo, um medo da vida, um ressurgimento do ideal ascético, um caldo de cultura da má-consciência”. Em vez de continuar psicanalista, achou melhor partir em busca “(...) do elemento vital e cósmico do desejo”. E eis o final melancólico da passagem: Reich tinha sido o primeiro a tentar entrosar o funcionamento conjunto da “máquina analítica” e da “máquina revolucionária”; e acabou contando apenas com “suas próprias máquinas desejantes, suas caixas paranóicas, miraculosas, celibatárias, de paredes metálicas guarnecidas de lã e de algodão” [139-142; 152-155].
B.4. A quarta e última referência a Reich presente no cap. II (“Psicanálise e familismo”) aparece no item 8 (intitulado “neurose e psicose”).
Está em pauta nesse referência uma crítica à posição de Reich com respeito ao problema do papel dos chamados “fatores atuais” nas neuroses. Embora preocupado em relacionar o desejo às “formas de produção social e, por isso mesmo, em mostrar que não há psiconeurose que não seja também neurose atual”, Reich, apesar disso, dizem os autores, “continua a apresentar os fatores atuais como se eles agissem por privação repressiva (a ‘estase sexual’) e surgindo após”. Ora, isso, segundo os autores, leva Reich a “manter uma espécie de edipianismo difuso, já que a estase ou o fator atual privativo definem somente a energia da neurose, mas não o conteúdo, que remete por seu lado ao conflito infantil edipiano, este conflito antigo que se encontra ativado pela estase atual”. O trecho de A função do orgasmo, citada pelos autores em apoio a essa crítica, é este: ‘”Todas as fantasias neuróticas mergulham suas raízes no apego sexual infantil aos pais. Mas o conflito criança-pai não poderia produzir uma perturbação durável do equilíbrio psíquico se não fosse alimentado continuamente pela estase atual que esse conflito criou na origem (...)’” [150-151; 164-165].
Os autores apresentam seu próprio encaminhamento do problema nas páginas subseqüentes, mas não é o caso de retomá-las aqui.

C. Um terceiro tema, uma terceira vertente, pela qual o livro continua a libertar-se de Édipo, consiste em enfrentar o problema da suposta universalidade de Édipo. Os autores são obrigados, então, a traçar o quadro de uma “história universal”. Sabemos o quanto pode ser abusiva uma tal expressão: história universal; quem já leu Paul Veyne está mais do que vacinado contra isso. Os autores sabem disso e tomam certo cuidado, pois dizem que uma tal história não se compõe de generalidades; a história que eles visam “é a da contingência”. Por que eles podem dizer isso? De um lado, porque a história que interessa a eles é a dos fluxos desejosos agenciados pelas grandes máquinas que se distribuem entre selvagens, bárbaros e civilizados. Por outro lado, eles podem afirmar o caráter contingente dessa história porque, nela, há cruzamento, há “conjugação de fluxos independentes”, fluxos que “passam por códigos primitivos” entre selvagens, por “sobrecodificações despóticas” entre bárbaros, e por “descodificações capitalistas” entre civilizados. É possível tomar essa afirmação de uma história da contingência dos cruzamentos de fluxos como afirmação deleuze-nietzscheana da necessidade do acaso, assim como uma forma de repensar a tese de Cournot sobre o acaso como cruzamento de linhas causais.
C.1. Essa dimensão inclui duas referências presentes no cap. III (“Selvagens, bárbaros, civilizados”). A primeira delas aparece no item 4 (“Psicanálise e etnologia”).
Nesta incidência, o que está em pauta é o objeto de uma discussão havida entre culturalistas (como Malinowski, Kardiner e Fromm) e psicanalistas ditos ortodoxos (como Jones e Roheim), mas também lacanianos. Discute-se a universalidade ou não de Édipo. Neste caso, a pergunta é se Édipo aparece entre selvagens, nas sociedades ditas primitivas: seria ele o “grande símbolo paterno, católico, a reunião de todas as igrejas?”
Pois bem, as observações etnográficas apontam uma “ausência patente” do nosso suposto Édipo nas relações entre familiares e seus aliados vizinhos na “máquina territorial selvagem”. Porém, essa ausência patente é interpretada como “presença latente de Édipo”, de modo que a própria ausência antes constatada por etnólogos é psicanaliticamente compreendida como “efeito do recalcamento”.
Estar-se-ia recalcando a representação edipiana implicada na proibição do incesto, incesto justamente desejado, porque proibido. Neste momento, os autores sustentam dois pontos: 1. a representação edipiana supõe a proibição do incesto; 2. não se pode dizer que essa representação nasça ou resulte do incesto. Como entender isso? É neste ponto que os autores se apropriam do modo como Reich acrescenta uma “observação profunda”, dizem eles, às teses de Malinowski: ”o desejo é tanto mais edipiano quanto mais as proibições incidam, não simplesmente sobre o incesto, mas ‘sobre as relações sexuais de qualquer outro tipo’, tapando as outras vias” (texto de Reich: Der Einbruch der Sexualmoral, Verlag fur Sexualpolitik, 1932).
Deleuze e Guattari, consoante o objetivo principal do livro, desenvolvem esse ponto no sentido de afirmar que “o recalcado não é inicialmente a representação edipiana”, mas a “produção desejante”, ou melhor, aquilo que, “dessa produção” desejante, “não passa na produção ou na reprodução sociais”. Recalca-se o que “introduziria desordem ou revolução”; neste caso da sociedade dita primitiva, são recalcados “os fluxos não codificados do desejo”, os fluxos que não operam como “investimento sexual direto dessa produção social” [203-204; 219-220].
C.2. Uma segunda e última incidência no cap. III aparece no item 10 (“A representação capitalista”).
Trata-se aqui do delineamento nocional de um problema que se mantém em nossos dias, o problema da significação da “conquista do aparelho de Estado”. Com apoio em Sartre (Crítica da razão dialética), os autores salientam a distinção entre a “espontaneidade” desejosa de “’grupos em fusão’” e o caráter ‘”serial’ da classe, representada pelo partido ou pelo Estado. Enquanto o “interesse de classe” é da “ordem dos grandes conjuntos molares”, o “desejo de grupo põe em jogo a ordem molecular das máquinas desejantes”, firmando-se, assim, o “problema” da distinção “entre os desejos inconscientes de grupo e os interesses pré-conscientes de classe”.
Do ponto de vista da incidência do nome de Reich nessa passagem, o que importa é distinguir interesse e desejo. Deleuze e Guattari escrevem o seguinte: “o desejo nunca é enganado; o interesse pode ser enganado, não reconhecido ou traído”. É então que eles anotam o “grito de Reich: não, as massas não foram enganadas; elas desejaram o fascismo, e é isso que é preciso explicar... Acontece de desejarmos contra nosso interesse: o capitalismo se aproveita disso, mas também o socialismo, o partido e a direção do partido. Como explicar que o desejo se dedique a operações que não são desconhecimentos, mas investimentos inconscientes perfeitamente reacionários?” E na mesma seqüência eles perguntam: “e que Reich quer dizer quando fala de ‘fixações tradicionais’? Elas também fazem parte do processo histórico, e nos trazem de volta às funções modernas do Estado. As sociedades modernas civilizadas se definem por procedimentos de descodificação e de desterritorialização. Mas, o que elas desterritorializam de um lado, elas reterritorializam do outro. Essas neo-territorialidades são freqüentemente artificiais, residuais, arcaicas; só que são arcaísmos com uma função perfeitamente atual”. Etc. [304-306; 324-327].

D. Finalmente, podemos acrescentar uma quarta dimensão a essas três anotadas pelos autores. Trata-se da retomada de pontos anteriores, acrescida da introdução a uma pragmática (dita esquizo-análise) compatível com o novo campo de problemas trazidos pelo livro. Em outras palavras, as tarefas do libertar-se de Édipo são reexaminadas de um duplo ponto de vista: o ponto de vista de uma tarefa negativa aponta para a destruição desse cortejo edipiano que são “a ilusão do ego, o fantoche do superego, a culpabilidade, a lei, a castração...”; porém, ao mesmo tempo em que se faz essa “limpeza”, essa “raspagem do inconsciente” [371; 394], as “tarefas positivas” são explicitadas. Saliento a tarefa que “consiste em descobrir num sujeito a natureza, a formação ou o funcionamento de suas máquinas desejantes, independente de qualquer interpretação” [385; 408-409]; saliento também a idéia prática que, postulando o envolvimento mútuo das “máquinas desejantes” e das “máquinas sociais” [406; 431], afirma a necessidade de distinguir o “investimento libidinal inconsciente de grupo ou de desejo” e o “investimento pré-consciente de classe ou de interesse” [411; 436].
D.1. Essa dimensão, que se espalha pelo cap. IV (“Introdução à esquizo-análise”) inclui três referências a Reich. A primeira incidência aparece no item 2 (“O inconsciente molecular”).
Nessa passagem, os autores apontam o interesse de Reich por uma “biogênese”, à sua idéia de uma “energia cósmica intra-atômica” etc., procurando entender isso como tentativa reichiana de “ultrapassar a alternativa do mecanicismo e do vitalismo”. Deleuze e Guattari não se sentem incomodados pelo “caráter ao mesmo tempo esquizofrênico e paranóico” da teoria final de Reich. Eis o que escrevem: “confessamos que toda aproximação da sexualidade com fenômenos cósmicos do tipo ‘tempestade elétrica’, ‘bruma azulada e céu azul’ (...) ‘fogo-de-santelmo e manchas solares’, fluídos e fluxos, matérias e partículas, nos parece, afinal, mais adequada que a redução da sexualidade ao lamentável pequeno segredo familista. (...) Não é o neurótico deitado no seu divã que nos fala do amor, de sua potência e de seus desesperos, mas o passeio mudo do esquizo (...) a viagem móvel em intensidades sobre o corpo sem órgãos. Quanto ao conjunto da teoria reichiana, ela tem a incomparável vantagem de mostrar o pólo da libido, como formação molecular na escala sub-microscópica, como investimento das formações molares na escala dos conjuntos orgânicos e sociais”. Segundo os autores, estariam faltando apenas “as confirmações do bom senso: por que, em que é isso a sexualidade?” [346-347]
D.2. A segunda incidência do nome de Reich no cap. IV (“Introdução à esquizo-análise”) aparece no item 3 (“Psicanálise e capitalismo”).
Há uma dupla referência nessa passagem. Ambas valorizam determinada posição de Reich, mas assinalam que ele não teria sido suficientemente radical. De acordo com a primeira, Reich “denuncia a maneira como a psicanálise se põe a serviço da repressão social”. Mas, em que sentido ele não teria ido suficientemente longe nessa denúncia? Por não ter visto que “o liame da psicanálise com o capitalismo não é apenas ideológico”, mas “infinitamente mais estreito” por uma série de razões, uma das quais, não menos importante, é ela manter-se referida tão-só a si própria.
Na segunda referência desse mesmo bloco, lemos que Reich “pressente um princípio fundamental da esquizo-análise”, o que ocorre quando ele diz que “a destruição das resistências não deve esperar a descoberta do material” (A função do orgasmo). Os autores concordam com isso, mas acham que Reich deveria ter ido mais longe. É que, para Deleuze e Guattari, não é preciso esperar a descoberta do material para destruir resistências. Por que? Pela simples razão de que “não há material inconsciente”, a tal ponto que a esquizo-análise, dizem eles, “não tem nada para interpretar” [372-375; 396-399].
D.3. A terceira e última incidência do nome de Reich no cap. IV (“Introdução à esquizo-análise”) aparece no item 4 (“A primeira tarefa positiva da esquizo-análise”).
Nesta referência, Deleuze e Guattari criticam o “culto da morte na psicanálise”. Em vez de ser um “canto à vida”, em vez de nos “ensinar a cantar a vida”, a psicanálise “emana o mais triste canto de morte”. Para os autores, Reich não cede à tentação de jogar o “instinto de morte contra Eros”, não cede à “liquidação da libido”. Dizem os autores: “Reich não se enganou, ele que foi talvez o único a manter que o produto da análise deveria ser um homem livre e alegre, portador de fluxos de vida, capaz de levá-los até o deserto e descodificá-los -- mesmo que essa idéia tomasse a aparência de uma idéia louca”.

Fim provisório
Eu gostaria de colocar um fim provisório nestas anotações dizendo o seguinte: apesar dos momentos de distanciamento crítico, a relação de Deleuze e Guattari com a obra de Reich é a de sempre manter a alegre pulsação do polifônico canto à vida. Tudo fazer para que esse canto seja a permanente referência dos conceitos e das questões inevitáveis.
Vimos relances do modo como os autores se aliam a Espinosa e a Reich no âmago daquela difícil pergunta: por que se luta pela servidão de si, como se se tratasse da sua própria salvação. Deleuze e Guattari retomam essa questão num sentido que deixaria felizes esses dois aliados. Eis a pergunta: “como se chega a desejar a potência, mas também sua própria impotência?” Para os autores, a resposta depende de uma “teoria generalizada dos fluxos” [284; 303-304].
É quase certo que, nessa teoria, será sempre decisivo o papel dos cantos à vida. E que sentido esses cantos emitem? Eles emitem o sentido de um desejar sem falta, esse desejar a potência e não os poderes que nos submetem aos valores dominantes. A esse respeito, é sempre bom repetir, principalmente numa homenagem a Reich, o convite que nos fizeram Deleuze (1925-1995) e Guattari (1930-1992) a sempre retomarmos a guerrilha contra nós mesmos, ou melhor, a guerrilha contra as Potências maiúsculas – sejam Partidos, Religiões ou quaisquer proeminências transcendentes – que nos invadem, que nos habitam ou que nos habilitam na sacanagem muito contemporânea de certo servilismo.

Luiz B. L. Orlandi
Dep. de Filosofia e Cemodecon (IFCH-Unicamp)
CemodeconNúcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP)
Outubro de 2005.

Texto originalmente publicado na Revista Reichiana, no. 15, 2006, p. 56-66. Publicação do Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae (SP)



[1] Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalisme et schizophrénie - L’Anti-Oedipe, Paris: Ed. Minuit, 1972. Há uma trad. br. de Georges Lamazière, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976. Nas referências, anotarei entre colchetes a paginação do original seguida da paginação dessa tradução.
[2] Destacarei os três primeiros temas com base no que disseram os autores no Prefácio à edição italiana de Mil platôs (Milão: Enciclopédia Italiana, 1988. Há uma trad. br. desse Prefácio, feita por Ana Lúcia de Oliveira, publicada em G. Deleuze e F. Guattari, Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, pp. 7-9.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O Homem-Árvore, por Antonin Artaud

"O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função [...] voltará. Existiu, e voltará. Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo"

O HOMEM-ÁRVORE*

(Carta a Pierre Loeb)

Antonin Artaud

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam
ao domínio da vontade decisora,
a vontade que em cada instante decide de si;
porque assim era a árvore humana que anda,
uma vontade que decide a cada instante de si,
sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta,
um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?
Um organismo de engolir, pesado na sua carne,
e que defeca e em cujo campo,
como um irisado distante,
um arco-íris de reconciliação com deus,
sobrenadam,
nadam os átomos perdidos,
as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.
Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeições,
40 mil sonos, 40 mil roncos,
40 mil bocas acres e azedas ao despertar,
tem cada qual de apresentar 50 poemas,
o que realmente não é de mais,
e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática
está muito longe de ser mantido,
está todo ele desfeito,
mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos os 50 poemas,
o resto não somos nós,
mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.
Um organismo de engolir vive de nós a seguir.
Ora, este nada nada é,
não é qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio,
ou seja, sem dor própria,
que em si não aceitam vontade de uma dor própria
e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,
fizeram este alambique de merda,
esta barrica de destilação fecal,
causa de peste e de todas as doenças
e deste lado de híbrida fraqueza,
de tara congênita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento,
só era nervos elétricos,
chamas de um fósforo perpetuamente aceso,
mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,
os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,
essa cova de oco entre dois foles de força
que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,
e a vida mágica do homem caiu,
caiu do seu rochedo com ímã
e a inspiração que era o fundo
passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,
talvez excelência
mas à frente de um tal acervo de horrores,
que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso,
era o estado-manobra, - operário,
o trabalho sem rebarbas, sem perdas,
numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?
Pelas razões que levam o organismo de animal,
que foi feito para e por animais
e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.
Exatamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras.
Mais fatal a explosão do organismo dos animais
que a do trabalho único
no esforço dessa vontade única
e muito impossível de encontrar.
Porque realmente o homem-árvore,
o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,
esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,
a capa ilusória do outro,
prosseguiu na sua vontade mas oculta,
sem compromissos nem contacto com o outro.
E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo
mas logo depois com muita força,
estilo bomba,
irá revelar a sua inanidade.
Porque devia criar-se um crivo
entre o primeiro dos homens-árvores
e os outros,
mas aos outros foi preciso o tempo,
séculos de tempo
para os homens que tinham começado
ganharem o seu corpo
como aquele que não começou
e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,
e não havia lá ninguém,
e lá não havia começo.
E então?
Então.
Então as deficiências nasceram
entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.
Em breve esse trabalho será concluído.
E a carapaça terá de ceder.
A carapaça do mundo presente.
Levantada sobre as mutilações digestivas
de um corpo esquartelado em dez mil guerras
e pela dor, e a doença, e a miséria,
e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro
das instituições sociais e burguesas,
que nunca trabalharam
mas grão a grão amealharam o bem roubado
desde há bilhões de anos
e conservado em certas cavernas de forças
defendidas pela humanidade inteira,
com algumas tantas exceções
vão ver-se obrigados a gastar as energias
nessa coisa que é combater,
vão lá poder deixar de combater,
pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica,
que há-de vir,
está a sua cremação eterna.
Por isto mesmo eu julgo
que o conflito entre a América e a Rússia,
reforçado ele seja a bombas atômicas,
pouco vai ser
ao lado e em face do outro conflito
que vai repentinamente estalar
entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,
e por outro o homem de vontade pura
e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.

*ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena Editora, 1988, p. 105-110.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

JORNALISMO OU PUBLICIDADE?

A era da passividade

Cada vez mais associada à propaganda, a mídia mostra a vida social como uma sucessão de "grandes fatos", que o cidadão deve limitar-se a assistir. Consumo, logo existo! Esta é a máxima que parece resumir o nosso tempo

François Brune


Vez por outra ouvem-se recriminações "à inércia das pessoas". Como não se rebelam contra essa publicidade que os envenena, contra essas empresas que os pressionam, contra o desemprego que os afeta ou ameaça, contra essa mídia que falsifica as realidades do mundo? Por que tantos problemas privados não desembocam mais freqüentemente em protestos coletivos?
É que a educação para a passividade desarma os indivíduos continuamente, em todos os níveis. Da criança pequena ao empresário em vias de se aposentar, os modelos de adaptação e de submissão ao mundo tal como ele é asseguram a perenidade do "sistema", penetrando profundamente na interioridade do cidadão.
O lingüista Alain Bentolila relata uma experiência surpreendente. Uma publicidade contra o cigarro é apresentada a quarenta crianças, de quatro a cinco anos. A mensagem não poderia ser mais clara. Um adolescente oferece um cigarro a uma garota e ela o destrói dizendo: "um pouco de liberdade conquistada". Porém, à pergunta feita: "o que quer dizer esse filme, por que ele é passado na televisão?" trinta e oito crianças responderam: "isso quer dizer que cigarro é bom, é preciso fumar". O que expressa tal contra-senso? Demonstra simplesmente que a ideologia já está moldada no espírito da criança de cinco anos. Para ela não há dúvida: 1. É um filme curto, é transmitido entre os programas, logo é uma publicidade; 2. Nessa publicidade se fala de cigarros: logo, trata-se de um produto; 3. Se falamos de um produto em uma publicidade, só pode ser para falar bem dele. Logo, é bom fumar...
Se esse esquema é suficiente para modelar a percepção de um criança de cinco anos, o que dizer da imensa impregnação ideológica nos comerciais e nos filmes publicitários? É contínua a valorização de tudo o que é veiculado pela televisão, a ponto de os hipermercados colocarem a tarja "Como visto na tevê", tanto nos produtos, quanto nos seres humanos que aí se vendem. O mundo do consumo eufórico, onipresente, impõe-se a cada um como lugar natural da vida social e meio essencial para dar rédeas soltas à personalidade. Existir é consumir, eis tudo. Escolher uma marca é conferir-se uma identidade, como indica esta pequena antologia: "Meu creme, sou eu", "Meu Corsa, sou eu", "Em Duvernoy, eu sou mais eu", "Ser Kick, ou nada", "Ser Dim até o fim", "Se você não é Gémo, você se tornará ", sem esquecer o "clássico" do pensamento pessoal oferecido a todos "Seja diferente: pense Pepsi "... E eis que jornalistas fazem esta espantosa descoberta, em reportagem: "Para se ’vestir bem’ os jovens dos subúrbios adoram as marcas". Isso não passa de mais um exemplo banal da interiorização pelos dominados do modelo dominante.



Quero comprar como sou

Mas, escapam os adultos do mito do produto que confere identidade? Vejamos: em setembro de 1999, o grupo Camif lançou uma grande campanha nacional com slogans reveladores "Eu quero comprar como vivo", "Eu quero comprar como sou", "Eu quero comprar como penso"... Como é deliciosamente ambíguo esse "como" — que liga a vida, o ser e o pensamento ao consumo! Como esse "eu quero", afirmação da identidade através do produto comprado, é poderoso em termos de "comunicação"! Identifiquem-se, camaradas educadores! Cada um pode fazer esta simples experiência: observar por quinze minutos os títulos e slogans que pululam a cada semana na mais insignificante banca de jornais ou ponto de ônibus. Não é necessário critério para decifrar: a tirania do consumo explode a olhos vistos. Veja esta simples frase, enunciada por uma grande revista, em junho de 1999: "A felicidade é uma soma de pequenas felicidades." Essas pequenas felicidades são, precisamente, as pequenas compras. A felicidade reside, assim, numa soma. Problema: a felicidade está numa quantidade ou num sentido? Pergunta embaraçosa...
Mas, pode-se perguntar, esse modo de vida submisso não é violado pela invasão, nos microcosmos domésticos, de imagens de um mundo que se move, que nos interpela, e que as mídias nos reenviam em face através da TV? Não, absolutamente. Ao fazer com que se apreenda a época como um espetáculo de consumo, o modelo consumista — tornado reflexo — nos imuniza contra qualquer mudança. Aquilo que poderia nos perturbar, vamos experimentar. A ideologia do consumo, a prima-dona, rege a "sociedade de comunicação". E já que se ensinou ao espectador que o mundo é consumível — e não transformável —, as grandes representações que dele são oferecidas serão selecionadas, condicionadas e dimensionadas como produtos.
Quer se trate de astros ou de políticos, de ficções ou de realidades, as mídias satisfazem nos ouvintes/espectadores essa mesma pulsão consumista gerada pela publicidade. A regra foi enunciada assim, desde 1990, por um slogan da emissora radiofônica RTL: "O noticiário é como o café: bom quando é quente e forte". Publicidade ou notícias, tudo é o mesmo estilo, o mesmo efeito de comunicação que visa às vezes a Época, às vezes a Mercadoria, com o propósito de subjugar a atenção coletiva. Ao acontecimento-produto corresponde, sem cessar, o produto-acontecimento. Em outubro de 1999, o Carrefour lançava o slogan que dizia: para "celebrar o fim do século, um período de desconto histórico". Na mesma época, aparecia no metrô esse anúncio "revolucionário": "Terça-feira, 12 de outubro de 1999, a loja "Le Printemps" legaliza o shopping para os homens." A bulimia de informações deve ser saciada, pensam os "jornalistas" que criaram essa necessidade. Sem dúvida, eles deploram, episodicamente, que "informações em demasia matem a informação". Porém, "o público gosta disso". Ele precisa de sua dose, já que foi viciado nisso.
A pulsão consumista exige, em primeiro lugar, quantidade de informações, renovação a todos os dias e horas, numa cadeia ininterrupta de seqüências fragmentadas e ritmadas. O ritmo é, aqui, fundamental, uma vez que dá a ilusão de estar ligado a um mundo em movimento. É também perigoso, porque subjuga o consumidor fascinado, sempre temeroso, em maior ou menor grau, de perder o elo da cadeia que o desconectaria da época. Ficar desatualizado seria deixar de ser real. Um longo dia no qual "nada acontece" é tão triste quanto uma geladeira vazia...


A lógica dos "grandes acontecimentos"


Ainda que sustentada pelo ritmo trepidante e recorrendo-se ao controle remoto, a quantidade de informação corre o risco de engendrar a monotonia. O grande medo das mídias é, como se sabe, que os consumidores "se desconectem". Aí está o papel dos grandes "acontecimentos" que, propícios a desdobramentos, mantêm-nos em suspense durante muitas semanas. Lembremo-nos ao acaso: o Papa em Longchamp, Diana no seu último túnel, o processo do colaborador nazista Papon, o lançamento arrebatador do filme "Titanic", a Copa do Mundo, os abismos eróticos (?) de Clinton, o triunfo (?) do euro, algumas fomes ou massacres aqui e acolá, uma palavra do direitista Le Pen que ainda escandaliza, um choque financeiro que não surpreende mais ninguém, a saudação ao Viagra, uma boa guerra limpa e punitiva no Kosovo, o estouro da bolsa que só tem como parceiro uma explosão aérea, o doping no esporte, a França que consome (enfim!), tremores de terra, tufões e secas, a novela do prefeito de Paris, Jean Tibéri, uma criança torturada. Porém, deixem espaço para o quarto episódio de "Guerra nas estrelas"... Compaixão e diversão são as duas tetas da França midiática.
O que é, pois, um acontecimento? Nesse inventário feito à moda do jornalista Prévert, no qual as realidades cruciais são tratadas como pequenas notícias policiais e vice-versa, só a encenação conta: tudo serve para comover, tudo é banalizado para neutralizar a análise crítica. É o "pronto-para-o-consumo" com o qual o publico não avança de modo algum na compreensão do mundo. Reduzido a uma participação afetiva, habituado, pelo modelo factual, a uma leitura puramente consumidora do mundo, ele espera apenas o drama seguinte nos palcos da época. Porém, espera coletivamente. Esse é o papel do acontecimento: ele faz dos cidadãos um público; porém público que assiste, e não assembléia que decide. A fascinação infindável exercida pela seqüência dos acontecimentos impede, então, não apenas a ação, mas o simples recuo necessário à reflexão. Ainda mais grave é que o fato veiculado pela mídia, tornando-se constitutivo do sentimento de fazer parte da coletividade, obriga insidiosamente cada cidadão a se submeter a ele, sob pena de falta de civismo (viu-se bem isso por ocasião da Copa do Mundo). Ora, submeter-se ao acontecimento é submeter-se à ideologia daqueles que o escolhem e o dramatizam enquanto tal.
É bem verdade que o público é às vezes interrogado: depois de tê-lo feito salivar como um cachorro diante de uma carne, pede-se a sua opinião. Assim lhe é dada a ilusão democrática de que existe enquanto "Opinião Pública". Mas ele é apenas sondado sobre o que lhe foi mostrado, não sobre o que lhe foi escondido. Não há nada melhor para dominar a opinião do que dominar o "real" sobre o qual se faz com que ela reaja, esse real da época, falsificado, dramatizado, inventado de maneira tão catastrófica, dissuadindo a ação dos cidadãos: o sentimento de impotência que lhes causa o panorama de tantos fatos inevitáveis lhes faz crer que, decididamente, nada podem fazer, mesmo nos espaços mais próximos, nos quais poderiam agir ou resistir.



Os fatos produzidos


Nesse grande engodo ideológico, verdadeira lei do sistema interiorizada por todos, os próprios jornalistas são às vezes tolos, imaginam-se "constatando" acontecimentos de que eles foram os promotores ou cenógrafos. Eis, por exemplo, como foi anunciado um filme transmitido pela televisão, em 21 de setembro de 1998, e que todos tiveram que esquecer mais adiante: "Quatro horas de um filme um pouco estático, sem dúvida, porém muito esperado pela performance de seu ator principal (...) E agora, vamos ver em todas as cadeias a cabo (...) Espetáculo irresistível (...) Programa excepcional (...) Versão em vídeo, melhor que o "Titanic" (...) Nesta tarde, às 15 horas, hora de Paris, o mundo inteiro descobrirá (...) É o maior evento de mídia dos Estados Unidos (...) Será a transmissão mais assistida (...) o índice de audiência mais elevado". Essas foram as expressões emitidas pela Rádio France-Inter pela manhã. Tratava-se da transmissão do interrogatório de Bill Clinton sobre suas relações com a senhorita Monica Lewinsky.
Como escapar de tal publicidade? Os ouvintes ávidos, conectando-se ao "acontecimento" farão dele um acontecimento, uma vez que ele será assistido... E os jornalistas concluirão que tiveram razão em anunciá-lo como tal! Eis como esta cadeia de acontecimentos torna-se a única abordagem do mundo, como as mídias suscitam no público a expectativa daquilo que ele não esperava, assim como a publicidade lhe cria a necessidade daquilo de que ele não tinha necessidade. A expectativa do espetáculo é profundamente interiorizada. À pergunta: "Os jornais televisivos são vistos como se vê um espetáculo?", inúmeros candidatos ao vestibular responderam inocentemente: "Não, eles são muito aborrecidos". Como se vê, eles não questionam o espetáculo, mas a informação que não é ainda suficientemente espetacular!
O público percebe muito bem que não é, verdadeiramente, "o povo soberano". Como contrapartida os discursos oficiais puseram-se a exaltar a dimensão cidadã de qualquer coisa. Como é doce sentir-se tratado como concidadão quando não se é mais do que consumidor! No entanto, a lei de absorção dos produtos, dos acontecimentos e de outros espetáculos, aplica-se às novas imagens da cidadania, que nada mais pregam do que condutas de adaptação à época: à "democracia" tal como ela é, à Europa tal como ela funciona, à economia tal ela como se globaliza.

Neocidadania midiática


Longe estão de evocar a liberdade, a resistência, a dimensão crítica do ser-cidadão. O consumidor deve aderir a esquemas consensuais ou se unir a causas (a espetáculos) que não suscitem mais conflitos. A cidadania midiática adora particularmente comemorar — a Grande Revolução de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem —, fazer o processo do passado — a França de Vichy — ou festejar o futuro liberado: o terceiro milênio verá triunfar a democracia... porém virtual!. A neocidadania, segundo o modelo da mídia, não passa de uma moda entre outras, um estilo, um prêt-à-porter do político apolítico e visa apenas produzir/consumir acontencimentos-espetáculos de cidadania. As empresas, lembremos, adotaram essa moda para se dizerem "cidadãs" (não desempregando hoje, apenas para não empregar amanhã). Já os eleitos da República só têm como preocupação maior saber qual das estrelas atuais possui "o jeito do tempo" (Patricia Kaas? Estelle Halliday? Laeticia Casta?) e será a melhor "Marianne" do ano 2000. Os prefeitos da França elegeram efetivamente uma top model, em outubro de 1999, como símbolo da República Francesa. Por seu lado, os nostálgicos da Revolução colam nas paredes cartazes de Karl Marx, com a cara cuidadosamente aviltada por rodelas de pepino, para ilustrar a "nova cara" do L’Humanité. Lançados em março de 1999, estes cartazes foram considerados por não poucos militantes como a segunda morte do autor do Manifesto Comunista. É assim que se esvazia o significante do seu significado, para depois se glorificar de ter "comunicado".
Retrucar-se-á que a verdadeira cidadania é, de agora em diante, européia. Eis, com efeito, o tipo de slogan que pretende nos provar isso, lançado no final de 1998/início de 1999: "Eu estou na Europa, logo penso em euro". Esse "logo", eminentemente cartesiano, vale mesmo seu peso em submissão à ordem financeira. Eis um outro (maio 1999): "Na Europa, hoje, votar é existir". Sem dúvida, existir na Europa não passa disso. Tal afirmativa tem todo um ar de lapso! De fato há apelos à existência que só confirmam que você não existe mais. Este, que encerra a existência cidadã na pequenez de um voto sem poder, tem muito com o que desmoralizar um militante desejoso de agir na Europa.
Curiosamente, as classes dirigentes também são abrangidas por essa ampla pedagogia da submissão. É preciso aprender corretamente como servir o sistema que os serve. Assim, elas aplicam a si mesmas, principalmente nas grandes escolas que as formam, processos de auto-condicionamento próprios para aumentar consideravelmente seu desempenho profissional. Por exemplo, um "Forum sobre Carreiras", dirigido a quadros em torno de cinqüenta anos, tinha como tema "Empresa de si mesmo". Judicioso conceito destinado a fazer aprender a viver como uma empresa a serviço da Empresa. Os participantes eram convidados a meditar sobre sua existência segundo o seguinte catecismo: Qual é o meu valor agregado? Fomento suficientemente minha rede de relações? O que pode me trazer o treinamento? Posso fazer-me "caçar"? Atenção ao duplo sentido: "fazer-se caçar " não significa aqui "fazer-se expulsar de sua empresa" — isso seria muito simples — mas fazer-se caçar por um caçador de cérebros! Na selva capitalista, os tigres do management devem mostrar pata branca para entrar em um sistema onde poderão depois exibir suas garras. Atinge-se aí um raro grau de interiorização dos modelos a serviço, naturalmente, de um novo humanismo... um humanismo às avessas.


Traduzido por Teresa Van Acker.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Privatização familiar

Favela de Paraisópolis faz divisa com prédio de luxo no bairro do Morumbi, em São Paulo. Foto de Tuca Vieira.

Uma das questões mais essenciais da nossa época refere-se à crescente degradação ambiental e social que caracteriza as sociedades modernas. Vemos uma enorme valorização de tudo que é privado, em detrimento do espaço público. O filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari, através da contundente obra “Capitalismo e Esquizofrenia”, nos dizem que a família moderna tornou-se um microcosmo, virando as costas para a produção social. O homem moderno passa a caracterizar-se por um desenfreado consumo de imagens de dois tipos: imagens de pessoa social e imagens de pessoa privada. O que ele conhece através das transmissões televisivas, das capas de revistas ou dos anúncios publicitários é sempre uma imagem idealizada de um sujeito bem-sucedido profissionalmente e pessoalmente. Interessante captura do desejo: o homem moderno deseja uma vida bem-sucedida que é restrita às imagens oferecidas no conforto do seu lar.

Portanto, tudo passa a ser privatizado, na medida em que as vantagens que são oferecidas apenas podem ser adquiridas de acordo com o poder de compra de quem recebe essas imagens. Resta à família, fechada em si mesma, consumir as imagens que são preenchidas pelo campo de imanência do capitalismo – o que reforça a fissura entre ela e o campo social. Tudo passa a ser privatizado: o carro, a casa, os seguranças, o cachorro. Como dizem os anúncios publicitários com imagens de famílias sorridentes: “Você e sua família terão segurança e vantagens!”. Miséria, desespero e violência tornam-se apenas imagens televisivas – já não nos assustamos mais com isso. Porém, quando os efeitos sociais produzidos por uma privatização do sujeito explodem ao nosso lado, constatamos que a realidade do que se vê na televisão é bem diferente daquela que se vê com um olhar já sem adornos.

Entendemos que os problemas sociais e ambientais não são distintos da privatização da família. E na medida em que isso cresce, o cinismo surge à tona: dizem que ainda se espera amenizar esses problemas, mas desde que não coloque em risco a permanência dos interesses econômicos em que tudo segue privatizado. Na esteira de Deleuze e Guattari, nos parece ser de absoluta importância um despertar da prática micropolítica, onde o desejo deixa de investir em um sujeito privado e passa a abrir-se aos agenciamentos coletivos, criando novos espaços territoriais afetivos. Isso faz romper com uma divisão estabelecida socialmente, ou seja, a rigidez nos horários, a rotina, os compromissos (já que tal divisão torna não somente a família, mas também o sujeito num microcosmo), e restabelece o investimento do desejo naquilo que faz com que o novo, o inédito, o diferente, tornem-se aliados em uma transformação social.
Amauri Ferreira, Dezembro de 2007

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Post scriptum sobre as sociedades de controle, por Gilles Deleuze

(Publicado em Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.)



I. HISTÓRICO

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, “pensei estar vendo condenados...”. Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior“, em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

II. LÓGICA

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.
Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em “pastor” laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes.
É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma” da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.

III. PROGRAMA

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.
O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas “substitutivas”, ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina “sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem “motivados”, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.

sábado, 24 de novembro de 2007

A ideologia social do carro a motor, por André Gorz

25 de setembro de 2007


O que tem de pior nos carros é serem como castelos ou mansões à beira do mar: bens luxuosos inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito rica, os quais em concepção e natureza nunca foram direcionados para o povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio, ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à beira do mar, é somente desejável e útil a partir do momento que as massas não têm um. Por isso, tanto em concepção quanto na sua finalidade original o carro é um bem de luxo. E a essência do luxo é a de que ele não pode ser democratizado. Se todos puderem ter o luxo, ninguém obtém as vantagens dele. Do contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e é logrado, enganado e frustrado por sua vez.
Isto é de muitíssimo conhecimento comum no caso das mansões à beira mar. Nenhum político ousou ainda reivindicar que democratizar o direito às férias significasse uma mansão com praia particular para cada família. Todos compreendem que se cada uma entre 13 ou 14 milhões de famílias devessem usar somente 10 metros da costa, tomaria-se 140.000km de praia para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte teria-se que cortar as praias em tiras pequenas - ou espremer tão fortemente as mansões - que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria. De fato, a democratização do acesso às praias aponta a somente uma solução: a solução coletivista. E esta solução está necessariamente em guerra com o luxo da praia particular, que é um privilégio que uma minoria pequena toma como seu direito às custas de todos.
Agora, por que aquilo que é perfeitamente óbvio no caso das praias não é geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Como a casa de praia, um carro também não ocupa espaço escasso? Não priva os outros que usam as estradas (pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus, etal.)? Não perde seu valor de uso quando todos usam os seus próprios? No entanto há uma abundância de políticos que insistem que cada família tem o direito ao menos a um carro e que é até encargo do "governo" tornar possível que todos possam estacionar convenientemente, dirijam facilmente na cidade, e possam viajar no feriado ao mesmo tempo que todos outros, indo a 70 mph nas estradas, às estações de férias.A monstruosidade deste absurdo demagógico é imediatamente aparente, no entanto, mesmo a esquerda não desdém de recorrer a ela. Por que o carro é tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens "privados", ele não é reconhecido como um luxo anti- social? A resposta deve ser procurada nos dois aspectos seguintes da atividade de dirigir:
A massificação do automóvel efetua um triunfo absoluto do ideologia burguesa no nível da vida diária. Dá e sustenta em todos a ilusão de que cada indivíduo pode procurar o seu próprio benefício às custas de todos os demais. Leva ao egoísmo cruel e agressivo do motorista que em todos os momentos está figurativamente matando os "outros", que aparecem meramente como obstáculos físicos à sua velocidade. Este egoísmo competidor e agressivo marca a chegada do comportamento universal burguês, e tem existido desde que dirigir tornou-se lugar comum. ("você nunca terá o socialismo com aquele tipo de pessoas", um amigo alemão ocidental me disse, triste ao ver o espetáculo do tráfego de Paris).
O automóvel é o exemplo paradoxal de um objeto luxuoso que tem sido desvalorizado por sua própria propagação. Mas esta desvalorização prática não foi seguida ainda por uma desvalorização ideológica. O mito do prazer e benefício do carro persiste, embora se o transporte de massa fosse difundido, sua dominação seria golpeada. A persistência deste mito é explicado facilmente. A propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação tornou necessárias. Uma revolução ideológica ("cultural ") seria necessária para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe dirigente (direita ou esquerda).
Permita-nos olhar mais de perto agora estes dois pontos.
Quando o carro foi inventado, ele o foi para prover poucos dos muito ricos com um privilégio completamente sem precedentes: viajar muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sonhado com isso. A velocidade de todas as carroças era essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre. As carruagens dos ricos não eram mais velozes do que as carroças dos camponeses, e trens carregavam todos na mesma velocidade (não possuíam velocidades diferentes até eles começarem a competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava em uma velocidade diferente do povo. O carro a motor iria mudar tudo isto. Pela primeira vez as diferenças de classe foram estendidas à velocidade e aos meios de transporte.
Este meio de transporte no início parecia inacessível às massas - ele era muito diferente dos meios de transporte comuns. Não havia nenhuma comparação entre o carro a motor e os outros: o bonde, o trem, a bicicleta, ou a carroça. Seres excepcionais saíam em veículos com auto- propulsão que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos extremamente complicados eram tão misteriosos quanto escondidos das vistas. Um aspecto importante do mito do automóvel é que pela primeira vez as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de funcionamento eram completamente desconhecidos deles, e cuja manutenção e alimentação tiveram que confiar a especialistas. Aqui está o paradoxo do automóvel: parece conferir aos seus proprietários liberdade ilimitada, permitindo que viajem quando e a onde quiserem em uma velocidade igual ou maior que a do trem. Mas de fato, esta aparência de independência tem por debaixo uma dependência radical. Ao contrário do cavaleiro, do carroceiro, ou do ciclista, o motorista iria depender para suprir combustível, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e dos especialistas em motores, lubrificação e ignição, e da possibilidade de troca das peças. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios de locomoção, o relacionamento do motorista com seu veículo viria a ser aquele do usuário e consumidor - e não do proprietário e do mestre. Este veículo, em outras palavras, obrigaria o proprietário a consumir e usar uma gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente poderiam ser fornecidos por um terceiro. A independência aparente do proprietário do automóvel apenas escondia a dependência radical real.
Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia ser extraído da distribuição em escala do carro a motor. Se as pessoas pudessem ser induzidas a viajar em carros, eles poderiam vender o combustível necessário para movê-los. Pela primeira vez na história, as pessoas tornar-se-iam dependentes de uma fonte comercial de energia para sua locomoção. Haveriam tantos clientes para a indústria de petróleo quanto houvessem motoristas - e uma vez que haveriam tantos motoristas quanto houvessem famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos comerciantes de petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se realizar. Todos iriam depender para suas necessidades diárias de um produto que uma única indústria possuía em monopólio.
Tudo que se deveria fazer era deixar a população dirigir carros. Pouca persuasão seria necessária. Seria suficiente baixar o preço do carro usando a produção em massa e a linha de montagem. As pessoas atropelariam umas as outras para comprá-lo. Correriam sem perceber que estavam sendo conduzidas pelo nariz. O que, de fato, a indústria do automóvel lhes ofereceu? Apenas isto: "de agora em diante, como a nobreza e a burguesia, você também terá o privilégio de dirigir tão rápido quanto qualquer um. Em uma sociedade de carro a motor o privilégio da elite é tornado disponível a você".
As pessoas se apressaram para comprar carros até que, quando a classe trabalhadora começou a os comprar também, os motoristas perceberam que haviam sido enganados. Tinha sido prometido a eles um privilégio de burgueses, tinham entrado em débito para adquiri-lo, e agora viam que qualquer um poderia também obter um. Qual é o gosto de um privilégio se todos puderem o ter? É um jogo de tolo. Pior, ele coloca todos em posição antagônica contra todos. A paralisação geral é criada por um engarrafamento geral. Quando todos reivindicam o direito de dirigir na velocidade privilegiada da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego da cidade cai vertiginosamente - em Boston como em Paris, Roma, ou Londres - abaixo daquele da carroça; no horário do rush a velocidade média nas estradas abertas cai abaixo da velocidade de uma bicicleta.
Nada ajuda. Todas as soluções foram tentadas. Todas elas terminam piorando as coisas. Não importa se elas aumentam o número de vias expressas, túneis, elevados, estradas de 16 pistas e estradas com pedágio na cidade, o resultado é sempre o mesmo. Quanto mais estradas a serviço, mais os carros as obstruem, e o tráfego da cidade torna-se mais paralisantemente congestionado. Enquanto houverem cidades, o problema permanecerá sem solução. Não importa quão larga e rápida uma superhighway seja, a velocidade na qual os veículos podem sair dela para entrar na cidade não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da cidade. Enquanto a velocidade média em Paris é 10 a 20 kmh, dependendo da hora, ninguém poderá sair delas em torno e na capital a mais do que 10 a 20 kmh.
O mesmo é verdadeiro para todas as cidades. É impossível dirigir a mais do que uma média de 20kmh na embaraçada rede de ruas, de avenidas, e de bulevares que caracterizam as cidades tradicionais. A introdução de veículos mais rápidos inevitavelmente atrapalha o tráfego da cidade, causando gargalos - e por fim uma paralisação completa.
Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: livre-se das cidades. Isto é, enfileire-os por centenas de milhas ao longo de enormes estradas, fazendo delas subúrbios de estradas. Isto é o que está sendo feito nos Estados Unidos. Ivan Illich mostra a conseqüência deste modo: "O americano típico devota mais de 1500 horas no ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro. Isto inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho para pagar por ele e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro, bilhetes e taxas. Deste modo ele toma deste americano 1500 horas para andar 6000 milhas (no curso de um ano). Três milhas e meia custam-lhe uma hora. Nos países que não têm uma indústria do transporte, as pessoas viajam exatamente nesta velocidade a pé, com a vantagem que podem ir onde quiserem e de não estarem restritas às estradas de asfalto".
É verdade, Illich aponta, que em países não-industrializados a viagem usa somente 3 a 8% do tempo livre da pessoa (que é aproximadamente duas a seis horas na semana). Assim uma pessoa a pé anda tantas milhas em uma hora gasta em viagem quanto uma pessoa em um carro, mas devota 5 a 10 vezes menos tempo na viagem. Moral: Quanto mais difundidos veículos rápidos estão dentro de uma sociedade, mais tempo - a partir de um determinado ponto - as pessoas gastarão e perderão viajando. Isto é um fato matemático.
A razão? Nós acabamos de vê-la: As cidades foram divididas em infinitos subúrbios de estrada, porque esta era a única maneira de evitar o congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto desta solução é óbvio: finalmente as pessoas não podem se deslocar convenientemente porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as distâncias foram aumentadas. As pessoas vivem longe de seu trabalho, longe da escola, longe do supermercado - que requer então um segundo carro para que as compras possam ser feitas e para as crianças irem à escola. Passeios? Fora da questão. Amigos? Há os vizinhos... e só. Na análise final, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 60 mph, mas isto porque você vive a 30 milhas de seu trabalho e está disposto a dar meia hora às últimas 6 milhas. Somando tudo: "uma boa parte do trabalho diário é gasto para pagar pela viagem necessária para ir ao trabalho". (Ivan Illich).
Talvez você esteja dizendo, "mas ao menos desta maneira você pode escapar do inferno da cidade após o fim do dia de trabalho". Lá nós estamos, agora nós sabemos: "a cidade", a grande cidade que por gerações foi considerada uma maravilha, o único lugar que vale a pena viver, é considerada agora um "inferno". Todos querem escapar dela para viver no campo. Por que esta reversão? Por uma única razão. O carro fez a cidade grande inabitável. A fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha. Assim, uma vez que os carros mataram a cidade, nós necessitamos carros mais rápidos para fugir em superestradas para os subúrbios que estão ainda mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de modo que nós possamos escapar da destruição causada pelos carros.
De um artigo luxuoso e uma marca de privilégio, o carro transformou-se assim numa necessidade vital. Você tem que ter um para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário. Não há mais a necessidade de persuadir as pessoas de quererem um carro; sua necessidade é um fato da vida. É verdadeiro que alguém possa ter suas dúvidas ao prestar atenção à fuga motorizada ao longo das estradas do êxodo. Entre 8 e 9:30 da manhã., entre 5:30 e 7 da tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas as rotas de fuga se prolongam nas procissões de para-choque-à-para-choque que vão (no máximo) à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações da gasolina. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando, inevitavelmente, a velocidade superior nas estradas é limitada exatamente pela velocidade do carro mais lento?
Nítido suficiente. Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro. Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar tão lentamente quanto o mais lento, em uma velocidade determinada pelas leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: sendo inventado para permitir que seu proprietário vá a onde deseja, na velocidade e tempo que deseja, o carro transforma-se, de todos os veículos, no mais servil, perigoso, não dependente e incômodo. Mesmo se você deixa uma extravagante quantidade de tempo, você nunca sabe quando os gargalos o deixarão chegar lá. Você está limitado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a seus trilhos. Não mais do que o viajante de trem, pode você parar em um impulso, e como o trem você deve ir em uma velocidade decidida por outra pessoa. Concluindo, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e possui todas as suas desvantagens, mais algumas próprias: vibração, espaço apertado, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo.
No entanto, você pode dizer, as pessoas não tomam trem. Claro! Como poderiam? Você já tentou alguma vez ir de Boston a New York de trem? Ou de Ivry a Treport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a l'Isle-Adam? Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou em tudo. Tão logo o carro matou o carro, ele fez com que as alternativas desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim, primeiramente o estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre as cidades e o campo circunvizinho se deteriorassem, e então acabou com elas. As únicas que foram poupadas foram as conexões inter-municipais de alta velocidade que competem com as linhas aéreas para uma clientela de burgueses. Há um progresso para você!
A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre para ter um carro ou não porque o mundo dos bairros é projetado em função do carro - e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta, do ônibus, e do bonde, não é sequer mais aplicável nas cidades grandes como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são formadas por alinhadas ruas vazias possuindo desenvolvimentos idênticos; e sua paisagem urbana (um deserto) diz, "estas ruas são feitas para se dirigir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de 'fazer o mal'". Em algumas cidades americanas o ato de dar uma volta nas ruas à noite é vista como suspeita de crime.
Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável. Terão que poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta. Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a vexação de viver em uma cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar sozinho e dormir.
"As pessoas", escreve Illich, "quebrarão as correntes do domínio do transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu próprio território, seu próprio ritmo particular, e temer ficar demasiado distante dele". Mas a fim de amar "o seu território" ele deve antes de mais nada ser habitável, e não congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se em um microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se comunicar, e discutir sobre ela, e no qual elas controlem conjuntamente como o lugar de sua vida em comum. Quando alguém lhe perguntou como as pessoas gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista tivesse sido eliminado, Marcuse respondeu, "nós traremos à baixo as grandes cidades e construiremos novas. Isso manter-nos-á ocupados por enquanto".
Estas novas cidades poderiam ser federações de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos - e em especial crianças em idade escolar - passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas, bondes ou bondes elétricos municipais, táxis elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para convidados, uma quantidade de automóveis comunais estaria disponível em garagens do bairro. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só.
Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira que isto compartimentaliza as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para "viver", um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para entretenimento. A maneira que nosso espaço é arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta nosso tempo, nossa vida, em fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades, e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade.
Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973
André Gorz, um dos criadores do Nouvel Observateur , faleceu no dia 24 de setembro. Suicidou-se com sua esposa, que sofria de uma doença.

O ato de criação, por Gilles Deleuze

O autor de O Anti-Édipo, Imagem-Movimento e Imagem-tempo define a arte como ato de resistência à sociedade de controle em palestra a estudantes de cinema em 1987 [1] .
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Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-las a vocês e formulá-las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, quando faço ou espero fazer filosofia?
Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma idéia em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma idéia? O que acontece quando dizemos: “Ei, tive uma idéia”? Porque, de um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idéia é algo que acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em geral. Uma idéia, assim como aquele que tem a idéia, já está destinada a este ou àquele domínio.
Trata-se ou de uma idéia em pintura, ou de uma idéia em romance, ou de uma idéia em filosofia, ou de uma idéia em ciência. E obviamente nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As idéias, devemos tratá-las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso dizer que tenho uma idéia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em tal ou tal domínio, uma idéia em cinema ou uma idéia em filosofia.
O que é ter uma idéia em alguma coisa?
Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de “refletir-sobre”, parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idéia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo.

Qual é o conteúdo da filosofia?

Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”.

É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema.

Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E vocês que fazem cinema, o que vocês fazem?

O que vocês inventam não são conceitos – isso não é de sua alçada –, mas blocos de movimento/ duração. Se fabricamos um bloco de movimento/duração, é possível que façamos cinema. Não se trata de invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta histórias com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo totalmente diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência não é menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as artes.

Se pergunto a um erudito o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre – a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos uma atividade científica como tal –, mas cria como se fosse um artista. Um erudito, coisa bem simples, é alguém que inventa ou cria funções. E ele está sozinho nessa empreitada. Um erudito, na condição de erudito, nada tem a ver com conceitos. É justamente para isso – e felizmente – que existe a filosofia. Em compensação, existe uma coisa que só o erudito sabe fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Existe uma função sempre que há correspondência uniforme de pelo menos dois conjuntos. A noção de base da ciência – e não desde ontem, mas desde muito tempo – é a noção de conjunto. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. Sempre que você puser conjuntos em correlação uniforme, você obterá conjuntos e poderá dizer: “Eu faço ciência”.

Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer, se um cineasta pode falar com um homem de ciência, se um homem de ciência pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-versa, é na medida e em função das atividades criativas de cada um. Não que haja espaço para falar da criação – a criação é antes algo bastante solitário –, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos de duração/movimento, invenção de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos.

Em Robert Bresson [diretor francês, 1907], caso bastante conhecido, raramente existem espaços inteiros. São espaços que podemos chamar desconexos. Há, por exemplo, um canto, um canto de um quarto. Depois vemos um outro canto, ou então um pedaço da parede. Tudo ocorre como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem grandes cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto.

Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas o espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Sem dúvida, ele foi retomado mais tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, que o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a construir o espaço com pequenos fragmentos desconexos, ou seja, pequenos fragmentos cuja conexão não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as tentativas de criação, existem espaços-tempos. É só isso que existe. Os blocos de duração/movimento de Bresson tenderão a esse tipo de espaço, entre outros.

A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a exaustão da mão em todo o seu cinema.

Desse modo, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe como característica própria desse criador, desse espaço, o papel da mão, que irrompe em seus limites. Somente a mão é capaz de operar efetivamente as conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é sem dúvida o mais importante cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não só porque ele sabe captar as mãos em imagens admiráveis. Se ele sabe captar admiravelmente as mãos em imagens é porque ele precisa delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade.

Mais uma vez, ter uma idéia em cinema não é a mesma coisa que ter uma idéia em outro assunto. Contudo há idéias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem idéias no cinema que só podem ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de idéias em cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas. Esse é um modo de formular uma pergunta que me interessa: o que faz com que um cineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece-me evidente que é porque ele tem idéias em cinema que fazem eco àquilo que o romance apresenta como idéias em romance. E com isso se dão grandes encontros.

Não cogito do problema do cineasta que adapta um romance notoriamente medíocre. Ele pode precisar do romance medíocre, e isso não impede que o filme seja genial; seria interessante abordar essa questão. Mas proponho uma questão diferente: o que acontece quando o romance é um grande romance e revela-se essa afinidade pela qual alguém em cinema tem uma idéia que corresponde àquilo que era uma idéia em romance?Um dos casos mais belos é o de Akira Kurosawa [diretor japonês, 1910-1998]. Por que ele tem essa familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Por que é preciso um japonês para entrar em familiaridade com esses autores?

Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco à filosofia. Nos personagens de Dostoiévski, produz-se muitas vezes algo bastante curioso, que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: “Tânia, a mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for”. Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de súbito, diz novamente: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”.

O que significa tudo isso? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência – “É um incêndio, é preciso que eu vá” –, eles se dissessem: “Não, existe algo ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata”. É O idiota [romance de Dostoiévski filmado por Kurosawa]. É a fórmula de O idiota: “Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder... É preciso encontrar esse problema mais urgente”.

Isso Kurosawa não aprendeu de Dostoiévski. Todos os personagens de Kurosawa são assim. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, é pelo menos porque pode dizer: “Temos um assunto em comum, um problema em comum”. Os personagens de Kurosawa metem-se em situações impossíveis, mas atenção: há um problema mais urgente. E é preciso que eles saibam qual é esse problema.

“Viver” é talvez o filme de Kurosawa que vá mais longe nesse sentido. Mas todos os seus filmes vão nesse sentido. Os sete samurais, por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende dele, é necessariamente um espaço oval, castigado pela chuva. Em Os sete samurais, os personagens são pegos numa situação de urgência: eles aceitaram defender o vilarejo e do começo ao final do filme eles são afligidos por uma questão mais profunda, que será proferida no final, pelos chefes dos samurais, quando eles partem: “O que é um samurai? O que é um samurai, não em sentido genérico, mas naquela época?”. Alguém que não serve mais para nada.

Os senhores não precisam mais deles, e os camponeses logo saberão defender-se sozinhos. Durante todo o filme, em que pese a urgência da situação, os samurais são atormentados por essa questão, digna de O idiota: nós, samurais, o que somos nós?

Uma idéia em cinema é desse tipo tão logo se ache empenhada num processo cinematográfico. Então você poderá dizer: “tive uma idéia”, mesmo se você a toma emprestada de Dostoiévski.

Uma idéia é algo bem simples. Não é um conceito, não é filosofia. Mesmo que de toda idéia se possa tirar, talvez, um conceito. Penso em Vincente Minnelli [diretor norte-americano, 1902-1986], que tem uma idéia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples, podemos verbalizá-la, e está empenhada num processo cinematográfico que é a obra de Minnelli.

A grande idéia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis.

Uma idéia cinematográfica é, por exemplo, a famosa dissociação entre o ver e o falar no cinema relativamente recente, quer seja – tomo os casos mais conhecidos Hans Juergen Syberberg [diretor alemão], os Straub [os diretores franceses Jean-Marie Straub e sua mulher Danièle Huillet], Marguerite Duras [escritora e diretora francesa, 1914-1997]. O que há de comum e por que é uma idéia propriamente cinematográfica fazer uma disjunção entre o visual e o sonoro? Por que isso não pode ser feito no teatro? Poder, pode, mas então, salvo se o teatro dispuser de meios, se dirá que ele a tomou de empréstimo ao cinema. O que não é necessariamente ruim, mas assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o visual e o sonoro, é uma idéia tão cinematográfica que isso responderia à questão de saber em que consiste, por exemplo, uma idéia em cinema.

Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. Logo se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-se ao mesmo tempo sob aquilo que nos fazem ver – e isso é imprescindível, se não as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido ou interesse – podemos dizê-lo de outro modo: a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra.

O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer?

Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa idéia. Eis uma idéia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida.

A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente – a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra – vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido.
Costumo dizer, em todo caso, que ter uma idéia não é da natureza da comunicação. É nesse ponto que gostaria de chegar. Tudo de que se fala é irredutível a toda comunicação. Mas não se aflijam. O que isso quer dizer? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação.

Ora, o que é uma informação?

Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem.

As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia.É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele, com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se – as análises de Foucault, com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas – pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso.

Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault, pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que entraríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs – e Foucault tinha por ele uma viva admiração –, de sociedades de controle.

Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não seria melhor estender o tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida o futuro. As oficinas, as fábricas não comportam mais empregados. Não seria melhor regimes de empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem outros meios de punir os infratores senão a prisão? As sociedades de controle não adotarão mais os meios de enclausuramento. Nem mesmo a escola.

Vale a pena investigar os temas que nascem, que se desenvolverão em 40 ou 50 anos e que nos explicam que o espantoso seria conjugar escola e profissão. Seria interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão ao longo da formação permanente, que é o nosso futuro e que não implicará necessariamente o reagrupamento de alunos num local de clausura. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro.Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade.

O que a obra de arte pode ter a ver com isso?

Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é – e ela o é por natureza – ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contra-informação só é efetiva quando se torna um ato de resistência.

Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação?

Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência.

Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a arte?

Não sei. André Malraux [escritor e diretor francês, 1901-1976] desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao começo: o que fazemos quando fazemos filosofia? Inventamos conceitos. Eu considero esta a base de um belo conceito filosófico. Reflitamos... O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo.

O que é ter uma idéia em cinema?

Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operam essa disjunção entre voz sonora e imagem visual, que eles tomam da seguinte maneira: a voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala baixa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem sonora. Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto afunda na terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda a obra dos Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De Moisés e Aarão ao último Kafka [América, romance filmado por Straub], passando por – não cito pela ordem – Não reconciliados ou Bach [Crônica de Anna Magdalena Bach]. O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado.Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como há um grito no Woyzeck [peça do alemão Georg Büchner de 1836], há um grito em Bach: “Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!”. Quando os Straub o põem em relevo, esse grito, o de Bach ou o da velha esquizofrênica de “Não Reconciliados”, tudo isso há de testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens.

Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte?

A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: “Pois bem, falta o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. “Falta o povo” quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.



[1] Especial para a “Trafic”, tradução de José Marcos Macedo, publicado na Folha de S. Paulo de 27/06/1999.