segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Reich em "O Anti-Édipo", por Luiz Orlandi

O objetivo desta comunicação é tão-somente salientar as explícitas referências feitas a Wilhelm Reich (1897-1957) encontradas em O Anti-Édipo [1], obra publicada em 1972. Embora não seja o caso de explicitar cuidadosamente os conceitos envolvidos nessas referências, procurarei destacá-las tendo em vista o papel que elas desempenham em certas linhas da problemática própria desse livro.
Que problemática é essa? O título resumido desse livro – O Anti-Édipo – tem o inconveniente de sombrear uma coisa importante: ele obscurece a inserção do livro numa alongada e complexa série de textos, série dita Capitalismo e esquizofrenia, da qual participam também Mil platôs, de 1980, e O que é a filosofia?, de 1991. Além disso, esse resumido título – O Anti-Édipo -- facilita a redução do sentido da obra a uma simples oposição a certo modelo gerado na psicanálise. Para afastar essa primeira impressão de sombreado e de reducionismo, é preciso ir ao encontro daquilo que é positivamente afirmado nessa obra, é preciso pensar a expressão anti-Édipo como se estivéssemos viajando ao longo de um criativo rompimento com a tradição que maltratou o desejo, que o manteve prisioneiro da falta, por exemplo. A atmosfera do livro é a de uma nova problemática que se impõe ao pensamento mais acordado do século XX, pensamento que é, paradoxalmente, aquele que mais desconfia de si próprio, pensamento que se sabe infestado por um impensável que o fustiga, mas que também pode deixá-lo apenas abobalhado. A audácia do livro, portanto sua contribuição para essa problemática, consiste em libertar o desejo daquelas representações, concepções, modelos etc. que atrapalham pensar o próprio desejo como sendo o impensável do pensamento representativo, o impensável a ser pensado, mas por uma nova maneira de pensar, o que implica, portanto, o advento de uma nova imagem do pensamento. É a essa ousadia que O Anti-Édipo se dedica. Ele o faz, postulando a necessidade de praticar o aprendizado do desejo, isto é, no caso desse livro, a necessidade da atenção imanente a um funcionamento desejoso libertado de Édipo.
Mas que significa esse libertar-se de Édipo? Esta pergunta remete aos grandes “temas” que os autores valorizam quando, tempos depois, resumem o que pensam do seu livro[2]. Esses temas configuram dimensões da problemática antiedipiana. Com a ajuda delas talvez possamos organizar as referências do livro às instigações que os autores encontram em Reich. Cada uma dessas dimensões, cada um desses temas corresponde a um dos quatro capítulos do livro. Seguirei esse fluxo, mesmo com o risco de algumas repetições.

A. Primeiramente, é preciso levar em conta que libertar-se de Édipo é uma árdua tarefa. Essa tarefa vai desde uma fúria destruidora até a necessária pergunta pelo funcionamento concreto do “inconsciente”, de modo que este não seja submetido a representações ou interpretações: “o inconsciente”, dizem os autores, “funciona como uma fábrica e não como um teatro (questão de produção, e não de representação)”. Os modelos representativos, assim como as interpretações, precisam levar, em cada caso, o choque da pergunta pelo funcionamento da coisa. Trata-se de um choque de realidade. Mas é preciso não interpretar a própria realidade como falta, não apenas porque isso é expressamente criticado [375; 398], mas porque, como ensina certo bergsonismo, ao real nada falta; mesmo o inesperado, o novo, as surpresas, as criações, os possíveis são diferenciações numa complexa realterabilidade. E é dessa realterabilidade que participam produtivamente os fluxos desejosos, razão pela qual a tese que vigora na obra toda é a do desejo como produção, e não como carência ou falta.
A. A respeito desse tema, o capítulo I (“As máquinas desejantes”), em seu item 4 (intitulado “psiquiatria materialista”) inclui uma referência a Reich.
Nesse momento, o livro está defendendo a tese segundo a qual “a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”. Isso quer dizer que há imanência entre o campo social e o desejo, quer dizer que o “campo social é imediatamente percorrido pelo desejo”, ou seja, que o desejo é coextensivo ao social, que “a libido não tem necessidade de mediação ou sublimação alguma, de operação psíquica alguma, de transformação alguma para investir as forças produtivas e as relações de produção”, de modo que o desejo participa da “produção” até mesmo das “mais repressivas e mortíferas formas da reprodução social”.
É neste ponto que os autores, além de estarem dialogando de outro modo com a tradição marxista, se aliam a Espinosa e a Reich para exprimir o que chamam de “problema fundamental da filosofia política”, aquele que Espinosa “soube levantar”, e que Reich “redescobriu”. Eis a pergunta que exprime esse problema: “por que os homens combatem pela sua servidão como se se tratasse da sua salvação?”
Na seqüência do texto, os autores enaltecem Reich e concordam com ele, mas criticam-no por ainda manter um “dualismo” entre o “racionalmente produzido” e a “produção fantasmática irracional”. Convém transcrever integralmente a passagem:
“Nunca Reich mostrou ser um tão grande pensador como quando se recusa a invocar o desconhecimento ou a ilusão das massas ao explicar o fascismo, e exige uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isto que é necessário explicar, essa perversão do desejo gregário. (Psicologia de massa do fascismo). Todavia, Reich não chega a dar uma resposta capaz, porque restaura o que pretendia demolir, ao distinguir a racionalidade tal como existe, ou deveria existir no processo da produção social, do irracional do desejo, sendo apenas este que está sujeito à psicanálise. Reserva então para a psicanálise a única explicação do ‘negativo’, do ‘subjetivo’ e do ‘inibido’ no campo social. Retoma necessariamente o dualismo entre o objeto real racionalmente produzido e a produção fantasmática irracional. Renuncia, pois, a descobrir a medida comum ou a coextensão do campo social e do desejo. E que, para fundar uma psiquiatria realmente materialista, faltava‑lhe a categoria de produção desejante, à qual o real foi submetido tanto sob formas ditas racionais como irracionais”.
A crítica dos autores ocorre porque eles mantêm, mesmo quando há maciça “repressão social agindo sobre a produção desejante”, o “princípio” segundo o qual “o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra coisa senão a produção social” [36-37; 46-47].

B. O segundo grande tema desse livro, a segunda dimensão do seu libertar-se de Édipo, consiste em pensar o “delírio” como “histórico-mundial”, e não reduzi-lo ao jogo “familiar”: “o delírio, ou o romance”, dizem os autores, “é histórico-mundial, e não familiar (deliram-se as raças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais...)”.
B.1. Em função desse tema, encontramos quatro referências no capítulo II (“Psicanálise e familismo”).
A primeira delas está no item 5 (intitulado “a síntese conjuntiva de consumo”).
Está em pauta nessa referência a caracterização da esquizofrenia, do “processo esquizo” em sua “viagem” em meio a “relações de intensidade através das quais o sujeito passa sobre o corpo sem órgãos, e opera devires, quedas e altas, migrações e deslocamentos” [100; 112]. Está em pauta o “consumo de quantidades intensivas” nesse nomadismo, quantidades que “formam o material das alucinações e delírios subseqüentes” diferenciados por “emoções intensivas” [101; 113]. Ora, se o processo esquizo implica uma tal agitação intensiva, então, dizem os autores, “longe de ter perdido não se sabe qual contato com a vida, o esquizofrênico é o mais próximo do coração palpitante da realidade, até um ponto intensivo que se confunde com a produção do real”. E é essa pulsação intensiva, segundo os autores, que leva Reich a esta frase do seu livro A função do orgasmo: “’o que caracteriza a esquizofrenia é a experiência desse elemento vital (...) no que concerne a seu sentimento da vida; o neurótico e o perverso estão para o esquizofrênico como o comerciante sórdido para o grande aventureiro’”.
Então perguntam os autores, como explicar a redução do esquizofrênico “à sua figura autista, hospitalizada, cortada da realidade? É o processo, ou, ao contrário, a interrupção do processo, sua exasperação, sua continuação no vazio?” Por que o processo se encolhe num “corpo sem órgãos tornado novamente surdo, cego, morto?” Mas aí já estamos fora da referência [104-105; 116-117].
B.2. Ainda no cap. II, a segunda referência aparece no item 6 (“Recapitulação das três sínteses”).
Nesta passagem, os autores ficam a favor de Reich e Marcuse e não dos que os acusam de “rousseauismo”, de “naturalismo”, de terem uma “concepção demasiado idílica do inconsciente”. Os detratores estariam perdendo de vista que os “horrores” atribuídos ao “inconsciente” são precisamente “os da consciência”. Numa perspectiva vizinha a de Reich e Marcuse, os autores dizem que o inconsciente é, “necessariamente”, ocupado por “menos crueldade e terror” (e que crueldade e terror nele seriam ainda “um outro tipo”) do que a “consciência de um herdeiro, de um militar e de um chefe de Estado”. Os horrores do inconsciente “não são antropomórficos”, e quem “engendra os monstros” é a “racionalidade vigilante e insone”. Trata-se, a rigor, concluem Deleuze e Guattari, de “desedipianizar”, de “desfazer a teia de aranha do pai-mãe”, de “desfazer as crenças para atingir”, na imanência, “a produção das máquinas desejantes, e os investimentos econômicos e sociais onde se joga a análise militante” [133; 146-147].
B.3. Ainda no cap. II, temos uma terceira incidência do nome Reich no item 7 (“Repressão e recalcamento”).
Essa passagem trata da relação entre “repressão” e “recalcamento”. O livro diz que a psicanálise põe Édipo como “objeto do recalcamento, e mesmo seu sujeito por intermédio do superego”. Com isso, ela pretenderia uma “justificação cultural do recalcamento”, passando-o para o “primeiro plano” e colocando o “problema da repressão como secundário do ponto de vista do inconsciente”. Pois bem, Reich (em A função do orgasmo) e também Marcuse (em Eros e civilização) propiciam, segundo os autores, de maneira “rigorosa e nuançada”, expressões do modo como a psicanálise se embrenhou cada vez mais em uma “visão familista e ideológica”, assim como em “compromissos reacionários”.
Nesse quadro, “a força de Reich”, dizem Deleuze e Guattari, “foi ter mostrado como o recalcamento dependia da repressão”. Para não confundir os conceitos, deve-se levar em conta o seguinte: “a repressão tem justamente necessidade do recalcamento para formar súditos dóceis e assegurar a reprodução da formação social, inclusive em suas estruturas repressivas”. Entretanto, isso não autoriza compreender a “repressão social” com base num recalcamento familiar coextensivo. Ao contrário – e é esta a maneira dos autores concordarem com Reich – o recalcamento é que “deve ser compreendido em função de uma repressão inerente a uma forma de produção social dada”. E essa repressão, além de atingir “necessidades e interesses” (pré-conscientes ou conscientes), incide “sobre o desejo (...) pelo recalcamento sexual”, o que acaba atualizando Édipo.
Para os autores, Reich, esse “verdadeiro fundador de uma psiquiatria materialista”, foi o “primeiro a levantar o problema da relação do desejo com o campo social”. E, ao fazer isso, “colocando o problema em termos de desejo”, Reich “foi o primeiro a recusar as explicações de um marxismo sumário”, um marxismo apressado em “dizer que as massas foram enganadas, mistificadas”.
Por outro lado, nessa mesma passagem do livro, Deleuze e Guattari deixam claro um certo desacordo em relação a Reich. Eis como eles dizem isso: por não ter “formado suficientemente o conceito de uma produção desejante”, Reich “não conseguiu determinar a inserção do desejo na infra-estrutura econômica, a inserção das pulsões na produção social. A partir disso, o investimento revolucionário lhe parecia tal, que o desejo coincidia aí, simplesmente, com uma racionalidade econômica; quanto aos investimentos reacionários de massa, eles lhe pareciam ainda remeter à ideologia, tanto que a psicanálise tinha por papel único explicar o subjetivo, o negativo e o inibido, sem participar diretamente como tal na positividade do movimento revolucionário ou na criatividade desejante”. Essa observação se repete no cap. IV [412-413; 438].
Apesar dessa crítica, os autores reconhecem que Reich, “em nome do desejo, fez passar um canto de vida na psicanálise”. Reich “denunciava, na resignação final do freudismo, um medo da vida, um ressurgimento do ideal ascético, um caldo de cultura da má-consciência”. Em vez de continuar psicanalista, achou melhor partir em busca “(...) do elemento vital e cósmico do desejo”. E eis o final melancólico da passagem: Reich tinha sido o primeiro a tentar entrosar o funcionamento conjunto da “máquina analítica” e da “máquina revolucionária”; e acabou contando apenas com “suas próprias máquinas desejantes, suas caixas paranóicas, miraculosas, celibatárias, de paredes metálicas guarnecidas de lã e de algodão” [139-142; 152-155].
B.4. A quarta e última referência a Reich presente no cap. II (“Psicanálise e familismo”) aparece no item 8 (intitulado “neurose e psicose”).
Está em pauta nesse referência uma crítica à posição de Reich com respeito ao problema do papel dos chamados “fatores atuais” nas neuroses. Embora preocupado em relacionar o desejo às “formas de produção social e, por isso mesmo, em mostrar que não há psiconeurose que não seja também neurose atual”, Reich, apesar disso, dizem os autores, “continua a apresentar os fatores atuais como se eles agissem por privação repressiva (a ‘estase sexual’) e surgindo após”. Ora, isso, segundo os autores, leva Reich a “manter uma espécie de edipianismo difuso, já que a estase ou o fator atual privativo definem somente a energia da neurose, mas não o conteúdo, que remete por seu lado ao conflito infantil edipiano, este conflito antigo que se encontra ativado pela estase atual”. O trecho de A função do orgasmo, citada pelos autores em apoio a essa crítica, é este: ‘”Todas as fantasias neuróticas mergulham suas raízes no apego sexual infantil aos pais. Mas o conflito criança-pai não poderia produzir uma perturbação durável do equilíbrio psíquico se não fosse alimentado continuamente pela estase atual que esse conflito criou na origem (...)’” [150-151; 164-165].
Os autores apresentam seu próprio encaminhamento do problema nas páginas subseqüentes, mas não é o caso de retomá-las aqui.

C. Um terceiro tema, uma terceira vertente, pela qual o livro continua a libertar-se de Édipo, consiste em enfrentar o problema da suposta universalidade de Édipo. Os autores são obrigados, então, a traçar o quadro de uma “história universal”. Sabemos o quanto pode ser abusiva uma tal expressão: história universal; quem já leu Paul Veyne está mais do que vacinado contra isso. Os autores sabem disso e tomam certo cuidado, pois dizem que uma tal história não se compõe de generalidades; a história que eles visam “é a da contingência”. Por que eles podem dizer isso? De um lado, porque a história que interessa a eles é a dos fluxos desejosos agenciados pelas grandes máquinas que se distribuem entre selvagens, bárbaros e civilizados. Por outro lado, eles podem afirmar o caráter contingente dessa história porque, nela, há cruzamento, há “conjugação de fluxos independentes”, fluxos que “passam por códigos primitivos” entre selvagens, por “sobrecodificações despóticas” entre bárbaros, e por “descodificações capitalistas” entre civilizados. É possível tomar essa afirmação de uma história da contingência dos cruzamentos de fluxos como afirmação deleuze-nietzscheana da necessidade do acaso, assim como uma forma de repensar a tese de Cournot sobre o acaso como cruzamento de linhas causais.
C.1. Essa dimensão inclui duas referências presentes no cap. III (“Selvagens, bárbaros, civilizados”). A primeira delas aparece no item 4 (“Psicanálise e etnologia”).
Nesta incidência, o que está em pauta é o objeto de uma discussão havida entre culturalistas (como Malinowski, Kardiner e Fromm) e psicanalistas ditos ortodoxos (como Jones e Roheim), mas também lacanianos. Discute-se a universalidade ou não de Édipo. Neste caso, a pergunta é se Édipo aparece entre selvagens, nas sociedades ditas primitivas: seria ele o “grande símbolo paterno, católico, a reunião de todas as igrejas?”
Pois bem, as observações etnográficas apontam uma “ausência patente” do nosso suposto Édipo nas relações entre familiares e seus aliados vizinhos na “máquina territorial selvagem”. Porém, essa ausência patente é interpretada como “presença latente de Édipo”, de modo que a própria ausência antes constatada por etnólogos é psicanaliticamente compreendida como “efeito do recalcamento”.
Estar-se-ia recalcando a representação edipiana implicada na proibição do incesto, incesto justamente desejado, porque proibido. Neste momento, os autores sustentam dois pontos: 1. a representação edipiana supõe a proibição do incesto; 2. não se pode dizer que essa representação nasça ou resulte do incesto. Como entender isso? É neste ponto que os autores se apropriam do modo como Reich acrescenta uma “observação profunda”, dizem eles, às teses de Malinowski: ”o desejo é tanto mais edipiano quanto mais as proibições incidam, não simplesmente sobre o incesto, mas ‘sobre as relações sexuais de qualquer outro tipo’, tapando as outras vias” (texto de Reich: Der Einbruch der Sexualmoral, Verlag fur Sexualpolitik, 1932).
Deleuze e Guattari, consoante o objetivo principal do livro, desenvolvem esse ponto no sentido de afirmar que “o recalcado não é inicialmente a representação edipiana”, mas a “produção desejante”, ou melhor, aquilo que, “dessa produção” desejante, “não passa na produção ou na reprodução sociais”. Recalca-se o que “introduziria desordem ou revolução”; neste caso da sociedade dita primitiva, são recalcados “os fluxos não codificados do desejo”, os fluxos que não operam como “investimento sexual direto dessa produção social” [203-204; 219-220].
C.2. Uma segunda e última incidência no cap. III aparece no item 10 (“A representação capitalista”).
Trata-se aqui do delineamento nocional de um problema que se mantém em nossos dias, o problema da significação da “conquista do aparelho de Estado”. Com apoio em Sartre (Crítica da razão dialética), os autores salientam a distinção entre a “espontaneidade” desejosa de “’grupos em fusão’” e o caráter ‘”serial’ da classe, representada pelo partido ou pelo Estado. Enquanto o “interesse de classe” é da “ordem dos grandes conjuntos molares”, o “desejo de grupo põe em jogo a ordem molecular das máquinas desejantes”, firmando-se, assim, o “problema” da distinção “entre os desejos inconscientes de grupo e os interesses pré-conscientes de classe”.
Do ponto de vista da incidência do nome de Reich nessa passagem, o que importa é distinguir interesse e desejo. Deleuze e Guattari escrevem o seguinte: “o desejo nunca é enganado; o interesse pode ser enganado, não reconhecido ou traído”. É então que eles anotam o “grito de Reich: não, as massas não foram enganadas; elas desejaram o fascismo, e é isso que é preciso explicar... Acontece de desejarmos contra nosso interesse: o capitalismo se aproveita disso, mas também o socialismo, o partido e a direção do partido. Como explicar que o desejo se dedique a operações que não são desconhecimentos, mas investimentos inconscientes perfeitamente reacionários?” E na mesma seqüência eles perguntam: “e que Reich quer dizer quando fala de ‘fixações tradicionais’? Elas também fazem parte do processo histórico, e nos trazem de volta às funções modernas do Estado. As sociedades modernas civilizadas se definem por procedimentos de descodificação e de desterritorialização. Mas, o que elas desterritorializam de um lado, elas reterritorializam do outro. Essas neo-territorialidades são freqüentemente artificiais, residuais, arcaicas; só que são arcaísmos com uma função perfeitamente atual”. Etc. [304-306; 324-327].

D. Finalmente, podemos acrescentar uma quarta dimensão a essas três anotadas pelos autores. Trata-se da retomada de pontos anteriores, acrescida da introdução a uma pragmática (dita esquizo-análise) compatível com o novo campo de problemas trazidos pelo livro. Em outras palavras, as tarefas do libertar-se de Édipo são reexaminadas de um duplo ponto de vista: o ponto de vista de uma tarefa negativa aponta para a destruição desse cortejo edipiano que são “a ilusão do ego, o fantoche do superego, a culpabilidade, a lei, a castração...”; porém, ao mesmo tempo em que se faz essa “limpeza”, essa “raspagem do inconsciente” [371; 394], as “tarefas positivas” são explicitadas. Saliento a tarefa que “consiste em descobrir num sujeito a natureza, a formação ou o funcionamento de suas máquinas desejantes, independente de qualquer interpretação” [385; 408-409]; saliento também a idéia prática que, postulando o envolvimento mútuo das “máquinas desejantes” e das “máquinas sociais” [406; 431], afirma a necessidade de distinguir o “investimento libidinal inconsciente de grupo ou de desejo” e o “investimento pré-consciente de classe ou de interesse” [411; 436].
D.1. Essa dimensão, que se espalha pelo cap. IV (“Introdução à esquizo-análise”) inclui três referências a Reich. A primeira incidência aparece no item 2 (“O inconsciente molecular”).
Nessa passagem, os autores apontam o interesse de Reich por uma “biogênese”, à sua idéia de uma “energia cósmica intra-atômica” etc., procurando entender isso como tentativa reichiana de “ultrapassar a alternativa do mecanicismo e do vitalismo”. Deleuze e Guattari não se sentem incomodados pelo “caráter ao mesmo tempo esquizofrênico e paranóico” da teoria final de Reich. Eis o que escrevem: “confessamos que toda aproximação da sexualidade com fenômenos cósmicos do tipo ‘tempestade elétrica’, ‘bruma azulada e céu azul’ (...) ‘fogo-de-santelmo e manchas solares’, fluídos e fluxos, matérias e partículas, nos parece, afinal, mais adequada que a redução da sexualidade ao lamentável pequeno segredo familista. (...) Não é o neurótico deitado no seu divã que nos fala do amor, de sua potência e de seus desesperos, mas o passeio mudo do esquizo (...) a viagem móvel em intensidades sobre o corpo sem órgãos. Quanto ao conjunto da teoria reichiana, ela tem a incomparável vantagem de mostrar o pólo da libido, como formação molecular na escala sub-microscópica, como investimento das formações molares na escala dos conjuntos orgânicos e sociais”. Segundo os autores, estariam faltando apenas “as confirmações do bom senso: por que, em que é isso a sexualidade?” [346-347]
D.2. A segunda incidência do nome de Reich no cap. IV (“Introdução à esquizo-análise”) aparece no item 3 (“Psicanálise e capitalismo”).
Há uma dupla referência nessa passagem. Ambas valorizam determinada posição de Reich, mas assinalam que ele não teria sido suficientemente radical. De acordo com a primeira, Reich “denuncia a maneira como a psicanálise se põe a serviço da repressão social”. Mas, em que sentido ele não teria ido suficientemente longe nessa denúncia? Por não ter visto que “o liame da psicanálise com o capitalismo não é apenas ideológico”, mas “infinitamente mais estreito” por uma série de razões, uma das quais, não menos importante, é ela manter-se referida tão-só a si própria.
Na segunda referência desse mesmo bloco, lemos que Reich “pressente um princípio fundamental da esquizo-análise”, o que ocorre quando ele diz que “a destruição das resistências não deve esperar a descoberta do material” (A função do orgasmo). Os autores concordam com isso, mas acham que Reich deveria ter ido mais longe. É que, para Deleuze e Guattari, não é preciso esperar a descoberta do material para destruir resistências. Por que? Pela simples razão de que “não há material inconsciente”, a tal ponto que a esquizo-análise, dizem eles, “não tem nada para interpretar” [372-375; 396-399].
D.3. A terceira e última incidência do nome de Reich no cap. IV (“Introdução à esquizo-análise”) aparece no item 4 (“A primeira tarefa positiva da esquizo-análise”).
Nesta referência, Deleuze e Guattari criticam o “culto da morte na psicanálise”. Em vez de ser um “canto à vida”, em vez de nos “ensinar a cantar a vida”, a psicanálise “emana o mais triste canto de morte”. Para os autores, Reich não cede à tentação de jogar o “instinto de morte contra Eros”, não cede à “liquidação da libido”. Dizem os autores: “Reich não se enganou, ele que foi talvez o único a manter que o produto da análise deveria ser um homem livre e alegre, portador de fluxos de vida, capaz de levá-los até o deserto e descodificá-los -- mesmo que essa idéia tomasse a aparência de uma idéia louca”.

Fim provisório
Eu gostaria de colocar um fim provisório nestas anotações dizendo o seguinte: apesar dos momentos de distanciamento crítico, a relação de Deleuze e Guattari com a obra de Reich é a de sempre manter a alegre pulsação do polifônico canto à vida. Tudo fazer para que esse canto seja a permanente referência dos conceitos e das questões inevitáveis.
Vimos relances do modo como os autores se aliam a Espinosa e a Reich no âmago daquela difícil pergunta: por que se luta pela servidão de si, como se se tratasse da sua própria salvação. Deleuze e Guattari retomam essa questão num sentido que deixaria felizes esses dois aliados. Eis a pergunta: “como se chega a desejar a potência, mas também sua própria impotência?” Para os autores, a resposta depende de uma “teoria generalizada dos fluxos” [284; 303-304].
É quase certo que, nessa teoria, será sempre decisivo o papel dos cantos à vida. E que sentido esses cantos emitem? Eles emitem o sentido de um desejar sem falta, esse desejar a potência e não os poderes que nos submetem aos valores dominantes. A esse respeito, é sempre bom repetir, principalmente numa homenagem a Reich, o convite que nos fizeram Deleuze (1925-1995) e Guattari (1930-1992) a sempre retomarmos a guerrilha contra nós mesmos, ou melhor, a guerrilha contra as Potências maiúsculas – sejam Partidos, Religiões ou quaisquer proeminências transcendentes – que nos invadem, que nos habitam ou que nos habilitam na sacanagem muito contemporânea de certo servilismo.

Luiz B. L. Orlandi
Dep. de Filosofia e Cemodecon (IFCH-Unicamp)
CemodeconNúcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP)
Outubro de 2005.

Texto originalmente publicado na Revista Reichiana, no. 15, 2006, p. 56-66. Publicação do Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae (SP)



[1] Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalisme et schizophrénie - L’Anti-Oedipe, Paris: Ed. Minuit, 1972. Há uma trad. br. de Georges Lamazière, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976. Nas referências, anotarei entre colchetes a paginação do original seguida da paginação dessa tradução.
[2] Destacarei os três primeiros temas com base no que disseram os autores no Prefácio à edição italiana de Mil platôs (Milão: Enciclopédia Italiana, 1988. Há uma trad. br. desse Prefácio, feita por Ana Lúcia de Oliveira, publicada em G. Deleuze e F. Guattari, Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, pp. 7-9.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O Homem-Árvore, por Antonin Artaud

"O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função [...] voltará. Existiu, e voltará. Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo"

O HOMEM-ÁRVORE*

(Carta a Pierre Loeb)

Antonin Artaud

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam
ao domínio da vontade decisora,
a vontade que em cada instante decide de si;
porque assim era a árvore humana que anda,
uma vontade que decide a cada instante de si,
sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta,
um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?
Um organismo de engolir, pesado na sua carne,
e que defeca e em cujo campo,
como um irisado distante,
um arco-íris de reconciliação com deus,
sobrenadam,
nadam os átomos perdidos,
as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.
Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeições,
40 mil sonos, 40 mil roncos,
40 mil bocas acres e azedas ao despertar,
tem cada qual de apresentar 50 poemas,
o que realmente não é de mais,
e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática
está muito longe de ser mantido,
está todo ele desfeito,
mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos os 50 poemas,
o resto não somos nós,
mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.
Um organismo de engolir vive de nós a seguir.
Ora, este nada nada é,
não é qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio,
ou seja, sem dor própria,
que em si não aceitam vontade de uma dor própria
e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,
fizeram este alambique de merda,
esta barrica de destilação fecal,
causa de peste e de todas as doenças
e deste lado de híbrida fraqueza,
de tara congênita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento,
só era nervos elétricos,
chamas de um fósforo perpetuamente aceso,
mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,
os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,
essa cova de oco entre dois foles de força
que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,
e a vida mágica do homem caiu,
caiu do seu rochedo com ímã
e a inspiração que era o fundo
passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,
talvez excelência
mas à frente de um tal acervo de horrores,
que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso,
era o estado-manobra, - operário,
o trabalho sem rebarbas, sem perdas,
numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?
Pelas razões que levam o organismo de animal,
que foi feito para e por animais
e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.
Exatamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras.
Mais fatal a explosão do organismo dos animais
que a do trabalho único
no esforço dessa vontade única
e muito impossível de encontrar.
Porque realmente o homem-árvore,
o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,
esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,
a capa ilusória do outro,
prosseguiu na sua vontade mas oculta,
sem compromissos nem contacto com o outro.
E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo
mas logo depois com muita força,
estilo bomba,
irá revelar a sua inanidade.
Porque devia criar-se um crivo
entre o primeiro dos homens-árvores
e os outros,
mas aos outros foi preciso o tempo,
séculos de tempo
para os homens que tinham começado
ganharem o seu corpo
como aquele que não começou
e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,
e não havia lá ninguém,
e lá não havia começo.
E então?
Então.
Então as deficiências nasceram
entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.
Em breve esse trabalho será concluído.
E a carapaça terá de ceder.
A carapaça do mundo presente.
Levantada sobre as mutilações digestivas
de um corpo esquartelado em dez mil guerras
e pela dor, e a doença, e a miséria,
e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro
das instituições sociais e burguesas,
que nunca trabalharam
mas grão a grão amealharam o bem roubado
desde há bilhões de anos
e conservado em certas cavernas de forças
defendidas pela humanidade inteira,
com algumas tantas exceções
vão ver-se obrigados a gastar as energias
nessa coisa que é combater,
vão lá poder deixar de combater,
pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica,
que há-de vir,
está a sua cremação eterna.
Por isto mesmo eu julgo
que o conflito entre a América e a Rússia,
reforçado ele seja a bombas atômicas,
pouco vai ser
ao lado e em face do outro conflito
que vai repentinamente estalar
entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,
e por outro o homem de vontade pura
e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.

*ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena Editora, 1988, p. 105-110.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

JORNALISMO OU PUBLICIDADE?

A era da passividade

Cada vez mais associada à propaganda, a mídia mostra a vida social como uma sucessão de "grandes fatos", que o cidadão deve limitar-se a assistir. Consumo, logo existo! Esta é a máxima que parece resumir o nosso tempo

François Brune


Vez por outra ouvem-se recriminações "à inércia das pessoas". Como não se rebelam contra essa publicidade que os envenena, contra essas empresas que os pressionam, contra o desemprego que os afeta ou ameaça, contra essa mídia que falsifica as realidades do mundo? Por que tantos problemas privados não desembocam mais freqüentemente em protestos coletivos?
É que a educação para a passividade desarma os indivíduos continuamente, em todos os níveis. Da criança pequena ao empresário em vias de se aposentar, os modelos de adaptação e de submissão ao mundo tal como ele é asseguram a perenidade do "sistema", penetrando profundamente na interioridade do cidadão.
O lingüista Alain Bentolila relata uma experiência surpreendente. Uma publicidade contra o cigarro é apresentada a quarenta crianças, de quatro a cinco anos. A mensagem não poderia ser mais clara. Um adolescente oferece um cigarro a uma garota e ela o destrói dizendo: "um pouco de liberdade conquistada". Porém, à pergunta feita: "o que quer dizer esse filme, por que ele é passado na televisão?" trinta e oito crianças responderam: "isso quer dizer que cigarro é bom, é preciso fumar". O que expressa tal contra-senso? Demonstra simplesmente que a ideologia já está moldada no espírito da criança de cinco anos. Para ela não há dúvida: 1. É um filme curto, é transmitido entre os programas, logo é uma publicidade; 2. Nessa publicidade se fala de cigarros: logo, trata-se de um produto; 3. Se falamos de um produto em uma publicidade, só pode ser para falar bem dele. Logo, é bom fumar...
Se esse esquema é suficiente para modelar a percepção de um criança de cinco anos, o que dizer da imensa impregnação ideológica nos comerciais e nos filmes publicitários? É contínua a valorização de tudo o que é veiculado pela televisão, a ponto de os hipermercados colocarem a tarja "Como visto na tevê", tanto nos produtos, quanto nos seres humanos que aí se vendem. O mundo do consumo eufórico, onipresente, impõe-se a cada um como lugar natural da vida social e meio essencial para dar rédeas soltas à personalidade. Existir é consumir, eis tudo. Escolher uma marca é conferir-se uma identidade, como indica esta pequena antologia: "Meu creme, sou eu", "Meu Corsa, sou eu", "Em Duvernoy, eu sou mais eu", "Ser Kick, ou nada", "Ser Dim até o fim", "Se você não é Gémo, você se tornará ", sem esquecer o "clássico" do pensamento pessoal oferecido a todos "Seja diferente: pense Pepsi "... E eis que jornalistas fazem esta espantosa descoberta, em reportagem: "Para se ’vestir bem’ os jovens dos subúrbios adoram as marcas". Isso não passa de mais um exemplo banal da interiorização pelos dominados do modelo dominante.



Quero comprar como sou

Mas, escapam os adultos do mito do produto que confere identidade? Vejamos: em setembro de 1999, o grupo Camif lançou uma grande campanha nacional com slogans reveladores "Eu quero comprar como vivo", "Eu quero comprar como sou", "Eu quero comprar como penso"... Como é deliciosamente ambíguo esse "como" — que liga a vida, o ser e o pensamento ao consumo! Como esse "eu quero", afirmação da identidade através do produto comprado, é poderoso em termos de "comunicação"! Identifiquem-se, camaradas educadores! Cada um pode fazer esta simples experiência: observar por quinze minutos os títulos e slogans que pululam a cada semana na mais insignificante banca de jornais ou ponto de ônibus. Não é necessário critério para decifrar: a tirania do consumo explode a olhos vistos. Veja esta simples frase, enunciada por uma grande revista, em junho de 1999: "A felicidade é uma soma de pequenas felicidades." Essas pequenas felicidades são, precisamente, as pequenas compras. A felicidade reside, assim, numa soma. Problema: a felicidade está numa quantidade ou num sentido? Pergunta embaraçosa...
Mas, pode-se perguntar, esse modo de vida submisso não é violado pela invasão, nos microcosmos domésticos, de imagens de um mundo que se move, que nos interpela, e que as mídias nos reenviam em face através da TV? Não, absolutamente. Ao fazer com que se apreenda a época como um espetáculo de consumo, o modelo consumista — tornado reflexo — nos imuniza contra qualquer mudança. Aquilo que poderia nos perturbar, vamos experimentar. A ideologia do consumo, a prima-dona, rege a "sociedade de comunicação". E já que se ensinou ao espectador que o mundo é consumível — e não transformável —, as grandes representações que dele são oferecidas serão selecionadas, condicionadas e dimensionadas como produtos.
Quer se trate de astros ou de políticos, de ficções ou de realidades, as mídias satisfazem nos ouvintes/espectadores essa mesma pulsão consumista gerada pela publicidade. A regra foi enunciada assim, desde 1990, por um slogan da emissora radiofônica RTL: "O noticiário é como o café: bom quando é quente e forte". Publicidade ou notícias, tudo é o mesmo estilo, o mesmo efeito de comunicação que visa às vezes a Época, às vezes a Mercadoria, com o propósito de subjugar a atenção coletiva. Ao acontecimento-produto corresponde, sem cessar, o produto-acontecimento. Em outubro de 1999, o Carrefour lançava o slogan que dizia: para "celebrar o fim do século, um período de desconto histórico". Na mesma época, aparecia no metrô esse anúncio "revolucionário": "Terça-feira, 12 de outubro de 1999, a loja "Le Printemps" legaliza o shopping para os homens." A bulimia de informações deve ser saciada, pensam os "jornalistas" que criaram essa necessidade. Sem dúvida, eles deploram, episodicamente, que "informações em demasia matem a informação". Porém, "o público gosta disso". Ele precisa de sua dose, já que foi viciado nisso.
A pulsão consumista exige, em primeiro lugar, quantidade de informações, renovação a todos os dias e horas, numa cadeia ininterrupta de seqüências fragmentadas e ritmadas. O ritmo é, aqui, fundamental, uma vez que dá a ilusão de estar ligado a um mundo em movimento. É também perigoso, porque subjuga o consumidor fascinado, sempre temeroso, em maior ou menor grau, de perder o elo da cadeia que o desconectaria da época. Ficar desatualizado seria deixar de ser real. Um longo dia no qual "nada acontece" é tão triste quanto uma geladeira vazia...


A lógica dos "grandes acontecimentos"


Ainda que sustentada pelo ritmo trepidante e recorrendo-se ao controle remoto, a quantidade de informação corre o risco de engendrar a monotonia. O grande medo das mídias é, como se sabe, que os consumidores "se desconectem". Aí está o papel dos grandes "acontecimentos" que, propícios a desdobramentos, mantêm-nos em suspense durante muitas semanas. Lembremo-nos ao acaso: o Papa em Longchamp, Diana no seu último túnel, o processo do colaborador nazista Papon, o lançamento arrebatador do filme "Titanic", a Copa do Mundo, os abismos eróticos (?) de Clinton, o triunfo (?) do euro, algumas fomes ou massacres aqui e acolá, uma palavra do direitista Le Pen que ainda escandaliza, um choque financeiro que não surpreende mais ninguém, a saudação ao Viagra, uma boa guerra limpa e punitiva no Kosovo, o estouro da bolsa que só tem como parceiro uma explosão aérea, o doping no esporte, a França que consome (enfim!), tremores de terra, tufões e secas, a novela do prefeito de Paris, Jean Tibéri, uma criança torturada. Porém, deixem espaço para o quarto episódio de "Guerra nas estrelas"... Compaixão e diversão são as duas tetas da França midiática.
O que é, pois, um acontecimento? Nesse inventário feito à moda do jornalista Prévert, no qual as realidades cruciais são tratadas como pequenas notícias policiais e vice-versa, só a encenação conta: tudo serve para comover, tudo é banalizado para neutralizar a análise crítica. É o "pronto-para-o-consumo" com o qual o publico não avança de modo algum na compreensão do mundo. Reduzido a uma participação afetiva, habituado, pelo modelo factual, a uma leitura puramente consumidora do mundo, ele espera apenas o drama seguinte nos palcos da época. Porém, espera coletivamente. Esse é o papel do acontecimento: ele faz dos cidadãos um público; porém público que assiste, e não assembléia que decide. A fascinação infindável exercida pela seqüência dos acontecimentos impede, então, não apenas a ação, mas o simples recuo necessário à reflexão. Ainda mais grave é que o fato veiculado pela mídia, tornando-se constitutivo do sentimento de fazer parte da coletividade, obriga insidiosamente cada cidadão a se submeter a ele, sob pena de falta de civismo (viu-se bem isso por ocasião da Copa do Mundo). Ora, submeter-se ao acontecimento é submeter-se à ideologia daqueles que o escolhem e o dramatizam enquanto tal.
É bem verdade que o público é às vezes interrogado: depois de tê-lo feito salivar como um cachorro diante de uma carne, pede-se a sua opinião. Assim lhe é dada a ilusão democrática de que existe enquanto "Opinião Pública". Mas ele é apenas sondado sobre o que lhe foi mostrado, não sobre o que lhe foi escondido. Não há nada melhor para dominar a opinião do que dominar o "real" sobre o qual se faz com que ela reaja, esse real da época, falsificado, dramatizado, inventado de maneira tão catastrófica, dissuadindo a ação dos cidadãos: o sentimento de impotência que lhes causa o panorama de tantos fatos inevitáveis lhes faz crer que, decididamente, nada podem fazer, mesmo nos espaços mais próximos, nos quais poderiam agir ou resistir.



Os fatos produzidos


Nesse grande engodo ideológico, verdadeira lei do sistema interiorizada por todos, os próprios jornalistas são às vezes tolos, imaginam-se "constatando" acontecimentos de que eles foram os promotores ou cenógrafos. Eis, por exemplo, como foi anunciado um filme transmitido pela televisão, em 21 de setembro de 1998, e que todos tiveram que esquecer mais adiante: "Quatro horas de um filme um pouco estático, sem dúvida, porém muito esperado pela performance de seu ator principal (...) E agora, vamos ver em todas as cadeias a cabo (...) Espetáculo irresistível (...) Programa excepcional (...) Versão em vídeo, melhor que o "Titanic" (...) Nesta tarde, às 15 horas, hora de Paris, o mundo inteiro descobrirá (...) É o maior evento de mídia dos Estados Unidos (...) Será a transmissão mais assistida (...) o índice de audiência mais elevado". Essas foram as expressões emitidas pela Rádio France-Inter pela manhã. Tratava-se da transmissão do interrogatório de Bill Clinton sobre suas relações com a senhorita Monica Lewinsky.
Como escapar de tal publicidade? Os ouvintes ávidos, conectando-se ao "acontecimento" farão dele um acontecimento, uma vez que ele será assistido... E os jornalistas concluirão que tiveram razão em anunciá-lo como tal! Eis como esta cadeia de acontecimentos torna-se a única abordagem do mundo, como as mídias suscitam no público a expectativa daquilo que ele não esperava, assim como a publicidade lhe cria a necessidade daquilo de que ele não tinha necessidade. A expectativa do espetáculo é profundamente interiorizada. À pergunta: "Os jornais televisivos são vistos como se vê um espetáculo?", inúmeros candidatos ao vestibular responderam inocentemente: "Não, eles são muito aborrecidos". Como se vê, eles não questionam o espetáculo, mas a informação que não é ainda suficientemente espetacular!
O público percebe muito bem que não é, verdadeiramente, "o povo soberano". Como contrapartida os discursos oficiais puseram-se a exaltar a dimensão cidadã de qualquer coisa. Como é doce sentir-se tratado como concidadão quando não se é mais do que consumidor! No entanto, a lei de absorção dos produtos, dos acontecimentos e de outros espetáculos, aplica-se às novas imagens da cidadania, que nada mais pregam do que condutas de adaptação à época: à "democracia" tal como ela é, à Europa tal como ela funciona, à economia tal ela como se globaliza.

Neocidadania midiática


Longe estão de evocar a liberdade, a resistência, a dimensão crítica do ser-cidadão. O consumidor deve aderir a esquemas consensuais ou se unir a causas (a espetáculos) que não suscitem mais conflitos. A cidadania midiática adora particularmente comemorar — a Grande Revolução de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem —, fazer o processo do passado — a França de Vichy — ou festejar o futuro liberado: o terceiro milênio verá triunfar a democracia... porém virtual!. A neocidadania, segundo o modelo da mídia, não passa de uma moda entre outras, um estilo, um prêt-à-porter do político apolítico e visa apenas produzir/consumir acontencimentos-espetáculos de cidadania. As empresas, lembremos, adotaram essa moda para se dizerem "cidadãs" (não desempregando hoje, apenas para não empregar amanhã). Já os eleitos da República só têm como preocupação maior saber qual das estrelas atuais possui "o jeito do tempo" (Patricia Kaas? Estelle Halliday? Laeticia Casta?) e será a melhor "Marianne" do ano 2000. Os prefeitos da França elegeram efetivamente uma top model, em outubro de 1999, como símbolo da República Francesa. Por seu lado, os nostálgicos da Revolução colam nas paredes cartazes de Karl Marx, com a cara cuidadosamente aviltada por rodelas de pepino, para ilustrar a "nova cara" do L’Humanité. Lançados em março de 1999, estes cartazes foram considerados por não poucos militantes como a segunda morte do autor do Manifesto Comunista. É assim que se esvazia o significante do seu significado, para depois se glorificar de ter "comunicado".
Retrucar-se-á que a verdadeira cidadania é, de agora em diante, européia. Eis, com efeito, o tipo de slogan que pretende nos provar isso, lançado no final de 1998/início de 1999: "Eu estou na Europa, logo penso em euro". Esse "logo", eminentemente cartesiano, vale mesmo seu peso em submissão à ordem financeira. Eis um outro (maio 1999): "Na Europa, hoje, votar é existir". Sem dúvida, existir na Europa não passa disso. Tal afirmativa tem todo um ar de lapso! De fato há apelos à existência que só confirmam que você não existe mais. Este, que encerra a existência cidadã na pequenez de um voto sem poder, tem muito com o que desmoralizar um militante desejoso de agir na Europa.
Curiosamente, as classes dirigentes também são abrangidas por essa ampla pedagogia da submissão. É preciso aprender corretamente como servir o sistema que os serve. Assim, elas aplicam a si mesmas, principalmente nas grandes escolas que as formam, processos de auto-condicionamento próprios para aumentar consideravelmente seu desempenho profissional. Por exemplo, um "Forum sobre Carreiras", dirigido a quadros em torno de cinqüenta anos, tinha como tema "Empresa de si mesmo". Judicioso conceito destinado a fazer aprender a viver como uma empresa a serviço da Empresa. Os participantes eram convidados a meditar sobre sua existência segundo o seguinte catecismo: Qual é o meu valor agregado? Fomento suficientemente minha rede de relações? O que pode me trazer o treinamento? Posso fazer-me "caçar"? Atenção ao duplo sentido: "fazer-se caçar " não significa aqui "fazer-se expulsar de sua empresa" — isso seria muito simples — mas fazer-se caçar por um caçador de cérebros! Na selva capitalista, os tigres do management devem mostrar pata branca para entrar em um sistema onde poderão depois exibir suas garras. Atinge-se aí um raro grau de interiorização dos modelos a serviço, naturalmente, de um novo humanismo... um humanismo às avessas.


Traduzido por Teresa Van Acker.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Privatização familiar

Favela de Paraisópolis faz divisa com prédio de luxo no bairro do Morumbi, em São Paulo. Foto de Tuca Vieira.

Uma das questões mais essenciais da nossa época refere-se à crescente degradação ambiental e social que caracteriza as sociedades modernas. Vemos uma enorme valorização de tudo que é privado, em detrimento do espaço público. O filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari, através da contundente obra “Capitalismo e Esquizofrenia”, nos dizem que a família moderna tornou-se um microcosmo, virando as costas para a produção social. O homem moderno passa a caracterizar-se por um desenfreado consumo de imagens de dois tipos: imagens de pessoa social e imagens de pessoa privada. O que ele conhece através das transmissões televisivas, das capas de revistas ou dos anúncios publicitários é sempre uma imagem idealizada de um sujeito bem-sucedido profissionalmente e pessoalmente. Interessante captura do desejo: o homem moderno deseja uma vida bem-sucedida que é restrita às imagens oferecidas no conforto do seu lar.

Portanto, tudo passa a ser privatizado, na medida em que as vantagens que são oferecidas apenas podem ser adquiridas de acordo com o poder de compra de quem recebe essas imagens. Resta à família, fechada em si mesma, consumir as imagens que são preenchidas pelo campo de imanência do capitalismo – o que reforça a fissura entre ela e o campo social. Tudo passa a ser privatizado: o carro, a casa, os seguranças, o cachorro. Como dizem os anúncios publicitários com imagens de famílias sorridentes: “Você e sua família terão segurança e vantagens!”. Miséria, desespero e violência tornam-se apenas imagens televisivas – já não nos assustamos mais com isso. Porém, quando os efeitos sociais produzidos por uma privatização do sujeito explodem ao nosso lado, constatamos que a realidade do que se vê na televisão é bem diferente daquela que se vê com um olhar já sem adornos.

Entendemos que os problemas sociais e ambientais não são distintos da privatização da família. E na medida em que isso cresce, o cinismo surge à tona: dizem que ainda se espera amenizar esses problemas, mas desde que não coloque em risco a permanência dos interesses econômicos em que tudo segue privatizado. Na esteira de Deleuze e Guattari, nos parece ser de absoluta importância um despertar da prática micropolítica, onde o desejo deixa de investir em um sujeito privado e passa a abrir-se aos agenciamentos coletivos, criando novos espaços territoriais afetivos. Isso faz romper com uma divisão estabelecida socialmente, ou seja, a rigidez nos horários, a rotina, os compromissos (já que tal divisão torna não somente a família, mas também o sujeito num microcosmo), e restabelece o investimento do desejo naquilo que faz com que o novo, o inédito, o diferente, tornem-se aliados em uma transformação social.
Amauri Ferreira, Dezembro de 2007