segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Desaforismo no. 1[?]

[Navegando nos textos do Usina...]

Final de domingo, iminência da segunda, depois de uma breve conversa com Fuganti no google talk e após horas de dedicação à seleção dos textos para o curso de esquizoanálise, percorro alguns textos postados neste blog. Começo por um meu, "Sade e a experiência limite dos corpos-linguagem". Ler o que já escrevi antes é sempre uma maneira de fazer-me habitar pelo estranho e pelo múltiplo; não escreveria novamente o que escrevi em dado momento da mesma maneira, não por não "concordar mais" com o texto, mas por não coincidir mais com ele, por não encontrá-lo mais como meu texto, como meu jeito, como uma minha escrita presente. Vou para as notas de rodapé do texto, dissociando-as das referências que exigiram sua derivação... Notas de rodapé parecem-me como registros de textos por fazer, de idéias por retomar... Encontro algumas, mas a lassidão do domingo não convida a muitos esforços. Não completo a leitura de uma nota sobre a Sociedade dos Amigos do Crime, de Histoire de Juliette, a terceira versão da história de Justine e Juliette... Deixo-a de lado e começo a ler um texto de Amauri, "A revelação de Estamira e a destruição da humanidade"... Leio inicialmente na tela, isso me cansa, imprimo o texto e vou para a sala, esparramando-me no puf frente à tevê-ligada-sem-espectador. Leio em Amauri sobre os trocadilos de Estamira enquanto os jogos de salão do Big Brother se desenrolam na telinha. Nos jogos, é o momento do confessionário, momento culminante do programa, quando os participantes, num esforço afetivo de "confissão sincera-íntima-pública", indicam quem eles desejam ver excluído do jogo.
Na composição entre a fala que me chega pelos ouvidos e minha leitura do texto (Amauri fala da formação de quadrilhas eclesiásticas e de quadrilhas sociais...) o que vem a mim, cristalino, é o que eu já sabia, embora esse saber muitas vezes se apresente de forma difusa... Big Brother, como já afirmei muitas vezes, é o espaço privilegiado no qual a mídia assume hoje sua função educativa, enquanto dispositivo da sociedade de controle, de formar os atores adequados para a sustentação dos modos dominantes de subjetivação capitalista. É nessas tramas (que estão presentes também nas novelas, nos noticiários) que um modo de viver é afirmado como "desejável", "verdadeiro", "única via de sucesso" em um mundo que demanda que sejamos espertos e "inteligentes" para nos mantermos up to date. Um mundo que, acompanhando John Holloway, reconhecemos ser falso, mas que, entretanto...
Nessa composição entre falas de Estamira sobre os "espertos ao contrário" e os trocadilos e as falas "humanas" no confessionário do Big Brother, entre notas sobre a Sociedade dos Amigos do Crime e a organização de quadrilhas eclesiásticas e quadrilhas sociais, nessa composição que me leva a pensar em um mundo falso (que, entretanto...), acabo caminhando para imagens de outro filme, as finais de Dogville, de Lars Von Trier, quando Grace conclui que aquela forma de vida que ela encontra e da qual se liberta não merece continuar existindo - por constituir uma ameaça a ser evitada - e assume um gesto ético ordenando seu extermínio. Pelo fogo, como sugere Estamira...
É esse gesto que se sustenta em mim enquanto retorno e me fixo nas imagens do Big Brother, nessas pessoas que caminham do anonimato de "comuns" para a distinção de "celebridades" sem que nada nelas mude, posto que sua função é nada mais, nada menos, que a afirmação da legitimidade do "comum" e a sustentação do glamour desse mundo que reconhecemos falso, mas que, entretanto...

Aula de Gilles Deleuze em Vincennes (16/11/71)


"Há um paradoxo fundamental do capitalismo como formação social: se é verdade que o terror de todas as outras formações sociais tenha sido os fluxos decodificados, o capitalismo, ele se constituiu historicamente sobre algo incrível, a saber, o que era o terror para as outras sociedades: a existência e a realidade de fluxos decodificados, e fez deles assunto seu"

Os Códigos, Capitalismo, os fluxos, a decodificação de fluxos, capitalismo e esquizofrenia, psicanálise e Spinoza.

O que acontece com o corpo de uma sociedade? São sempre fluxos, e uma pessoa é sempre um corte de fluxo. Uma pessoa é sempre um ponto de partida para uma produção de fluxo, um ponto de chegada para uma recepção de um fluxo, um fluxo de qualquer tipo; ou, melhor ainda, uma intercepção de vários fluxos.

Se uma pessoa tem cabelo, esse cabelo pode atravessar diversas etapas: o penteado de uma garota não é o mesmo que o de uma mulher casada, não é o mesmo que o de uma viúva: há todo um código do penteado. Uma pessoa, na medida em que faz seu penteado, apresenta-se tipicamente como uma interceptora em relação a fluxos de cabelo que ultrapassam o seu caso e esses fluxos de cabelo são, eles mesmos códigos segundo códigos muito diferentes: o código da viúva, código da garota, código da mulher casada, etc. Este é finalmente o problema essencial da codificação e da territorialização, que é o de sempre codificar fluxos assim, como um meio fundamental: marcar as pessoas (porque as pessoas estão sempre na intercepção e no corte de fluxos, elas existem nos pontos de corte dos fluxos).

Mas então, mais do que marcar as pessoas – marcar as pessoas é o meio aparente -, sua função mais profunda, a saber: uma sociedade só tem medo de uma coisa: o dilúvio; ela não tem medo do vazio, ela não tem medo da penúria ou escassez. Sobre ela, sobre seu corpo social, algo vaza e nós não sabemos o que é, algo flue que não é codificado, algo que, em relação a essa sociedade aparece como incodificável. Algo que fluiria e que arrastaria essa sociedade a uma espécie de desterritorialização que faria a terra sobre a qual ela se instala dissolver-se: pois bem, esta é a tragédia. Encontramos algo que se esfacela e não sabemos o que é, não responde a código algum, rompe o campo sob esses códigos; e isto vale, a esse respeito, até mesmo para o capitalismo que sempre acreditou ter assegurado seus simili-códigos; é isto que designamos como o famoso poder de recuperação dentro do capitalismo – quando dizemos recupera queremos dizer: a cada vez que lhe parece escapar, parece passar por baixo desses simili-códigos; ele retampona tudo, e acrescenta um axioma a mais e a máquina inicia-se novamente. Pense no capitalismo no século XIX: ele vê brotar um pólo de fluxo que é, literalmente, o fluxo, o fluxo dos trabalhadores, o fluxo do proletariado. Bem, o que é que brota, que brota maldosamente e que arrasta a nossa terra, para onde vai? Os pensadores do século XIX têm uma reação muito estranha, notavelmente os da escola histórica francesa: é a primeira a ter pensado, no século XIX, em termos de classes, foram eles que inventaram a noção teórica de classes e inventam-na justamente como uma peça essencial do código capitalista, a saber: a legitimidade do capitalismo vem disso: a vitória da classe burguesa como classe oposta à aristocracia.

O sistema que aparece em Saint-Simon, A.Thierry, E. Quinet é a tomada de consciência radical da burguesia como classe e toda a história, eles a interpretam como a luta de classes. Não é Marx quem inventa a compreensão da história como luta de classes, é a escola histórica burguesa do século XIX: 1789, sim, é a luta de classes, eles se encontram tomados de cegueira à medida em que vêem fluir na superfície atual do corpo social este fluxo esquisito que eles não conhecem: o fluxo proletário.

A idéia de que isto seja uma classe não é possível, não se trata de uma neste momento: o dia em que o capitalismo não pôde mais negar o proletariado como classe, coincide com o movimento onde, na sua cabeça, ele encontrou um momento para codificar tudo isso. Isto que nós chamamos de potência de recuperação do capitalismo, que é isso?

É que ele dispõe de uma espécie de axiomática e, à medida em que ele dispõe de algo de novo que ele não conhece, é como para toda axiomática, é uma axiomática que, no limite, não é saturada: ele está sempre pronto para adicionar um axioma a mais para restaurar sua marcha. Quando o capitalismo não pôde mais negar que o proletariado era uma classe, de modo que ele reconhece uma espécie de bipolaridade de classe, sob a influência das lutas operárias do século XIX, e sob a influência da revolução, este momento é extraordinariamente ambíguo já que é um momento importante na luta revolucionária mas é um momento essencial da recuperação capitalista. Eu te faço mais um axioma, te faço axiomas para a classe operária e para a potência sindical que a representa, e a maquina capitalista chia e reinicia-se, ela selou a brecha. Em outros termos, para todos os corpos de uma sociedade, o essencial é impedir que escorram sobre ela, sobre suas costas, sobre seu corpo, fluxos que ela poderá codificar e aos quais ela não poderá assinalar uma territorialidade.

A falta, a penúria, a fome, uma sociedade, ela pode codificá-los. O que ela não pode codificar é quando essa coisa aparece, aonde ela se diz: quem são esses caras aí? Então, em um primeiro momento, o aparelho repressivo se põe em movimento, se não os pode codificar, tenta-se aniquilá-los. Em um segundo tempo, tenta-se encontrar novos axiomas que permitam recodificá-los por bem ou por mal.

Um corpo social se define bem assim: perpetuamente coisas, fluxos que correm por cima dele, fluxos correm de um pólo a outro e isto é perpetuamente codificado e há fluxos que escapam aos códigos, então há o esforço social para recuperar tudo aí, para axiomatizar tudo isso, para remanejar um pouco o código, afim de dar lugar aos fluxos que são tão perigosos: de repente, há jovens que não respondem mais ao código: eles se metem a ter um fluxo de cabelo que não estava previsto, que vamos fazer? Tentaremos recodificar isto, acrescentaremos um axioma, tentaremos recuperar, ou será que há alguma coisa aí que continua a não se deixar codificar, e aí?

Em outras palavras, é o ato fundamental da sociedade: codificar os fluxos e tratar como um inimigo esse que, com relação a ela, apresenta-se como um fluxo incodificável porque, mais uma vez, questiona todo o chão, todo o corpo desta sociedade.

Diria isto de todas as sociedades, salvo, talvez, da nossa, isto é, do capitalismo: ainda que tenha acabado de falar do capitalismo como se, como todas as outras sociedades, ele codificasse os fluxos e não tivesse outros problemas, mas talvez tenha ido muito rápido.

Há um paradoxo fundamental do capitalismo como formação social: se é verdade que o terror de todas as outras formações sociais tenha sido os fluxos decodificados, o capitalismo, ele se constituiu historicamente sobre algo incrível, a saber, o que era o terror para as outras sociedades: a existência e a realidade de fluxos decodificados, e fez deles assunto seu.

Se fosse verdade, isso explicaria que o capitalismo é o universal de toda sociedade, num sentido muito preciso: em um sentido negativo, seria o que todas as sociedades temeram acima de tudo, e temos a impressão que, historicamente, o capitalismo... de uma certa maneira, é o que toda formação social não cessou de tentar conjurar, não cessou de tentar evitar, por quê? Porque era a ruína de todas as outras formas sociais. E o paradoxo do capitalismo é que uma formação social se constituiu sobre a base do que era o negativo de todas as outras. Isso quer dizer que o capitalismo só pôde se constituir sobre uma conjunção, um encontro entre fluxos decodificados de qualquer natureza. O que era o mais temido de todas as formações sociais, foi a base de uma formação social que devia engolir todas as outras: o que era o negativo de todas as formações tornou-se a positividade mesma de nossa formação, e isso é estremecedor.

E, em que sentido o capitalismo se constituiu sobre a conjunção de fluxos descodificados? Ele precisou de extraordinários encontros ao fim de processos de toda natureza, que se formaram no declínio do feudalismo. Essas decodificações de toda natureza consistiram na decodificação de fluxos característicos, sob a forma da constituição de grandes propriedades privadas; decodificação de fluxos monetários, sob a forma do desenvolvimento da fortuna mercantil; decodificação de um fluxo de trabalhadores sob a forma da expropriação, da desterritorialização de servos e de pequenos camponeses. E isso não basta pois, se tomarmos o exemplo de Roma, a decodificação na Roma decadente, ela aparece plenamente: decodificação de fluxos de propriedades sob a forma de grandes propriedades privadas; decodificação de fluxos monetários, sob a forma de grandes fortunas privadas; decodificação dos trabalhadores com a formação de um subproletariado urbano: está tudo aí, quase tudo. Os elementos do capitalismo encontram-se reunidos, simplesmente, não há encontro.

O que faltou para que se realizasse o encontro entre os fluxos decodificados do capital ou do dinheiro e os fluxos decodificados dos trabalhadores para que se realizasse o encontro entre o fluxo de capital nascente e o fluxo de mão-de-obra desterritorializada, literalmente, o fluxo de dinheiro decodificado e o fluxo de trabalhadores desterritorializados? Com efeito, a maneira como o dinheiro se decodifica para tornar-se capital-dinheiro e a maneira como o trabalhador é arrancado da terra para tornar-se proprietário de sua mera força de trabalho; estes são dois processos totalmente independentes um do outro, é necessário que haja um encontro entre os dois.

Com efeito, o processo de decodificação do dinheiro para formar um capital se faz através das formas embrionárias do capital comercial e do capital bancário; o fluxo do trabalho, livre possuidor de sua mera força de trabalho, se faz através de toda uma outra linha que é a desterritorialização do trabalhador ao final do feudalismo e esses poderiam muito bem não terem se encontrado. Uma conjunção de fluxos decodificados e desterritorializados, é isso que está na base do capitalismo. O capitalismo se constitui sobre a falência de todos os códigos e territorialidades sociais pré-existentes.

Se o admitimos, o que é que isso representa? A máquina capitalista é propriamente demente. Uma máquina social que funciona a base de fluxos decodificados, desterritorializados. Mais uma vez, não é que as sociedades não tenham tido a idéia: eles tiveram a idéia sob a forma de pânico, e se tratava de impedi-lo – era a inversão de todos os códigos sociais conhecidos até o momento – então, uma sociedade se constituiu sobre o negativo de todas as sociedades pré-existentes, como ela pode funcionar? Uma sociedade à qual lhe é próprio decodificar e desterritorializar todos os fluxos: fluxo de produção, fluxo de consumo, como isso pode funcionar, sob que forma? Talvez o capitalismo tenha outros procedimentos diferentes que não a codificação para funcionar, talvez seja completamente diferente. O que eu tenho procurado até agora foi refundar, em certo nível, o problema da relação CAPITALISMO-ESQUIZOFRENIA e a fundação de sua relação se encontra em algo comum entre o capitalismo e a esquizofrenia: o que eles têm completamente em comum – e talvez seja uma comunhão que nunca se realiza, que não toma uma figura concreta – é a comunhão de um princípio todavia abstrato, a saber: tanto um como o outro não cessam de fazer passar, de emitir, de interceptar, de concentrar os fluxos decodificados e desterritorializados.

Essa é sua profunda identidade, e não é no nível do modo de vida que o capitalismo nos torna esquizos, é no nível do processo econômico: tudo isso só funciona por um sistema de conjunção, então digamos a palavra, sob a condição de aceitar que essa palavra implica numa verdadeira diferença de natureza com os códigos. É o capitalismo que funciona como uma axiomática, uma axiomática dos fluxos decodificados. Todas as outras formações sociais funcionaram sobre a base de uma codificação e de uma territorialização de fluxos e entre a máquina capitalista – que faz uma axiomática de fluxos decodificados enquanto tais, ou desterritorializados enquanto tais - e as outras formações sociais, há realmente uma diferença de natureza que faz com que o capitalismo seja o negativo de todas as sociedades. Ora, o esquizo, à sua maneira, com seu caminhar tropeçante, faz a mesma coisa. Em um sentido, é mais capitalista que o capitalista, mais proleta que o proleta [N.T.: prolo, no original em francês], decodifica, desterritorializa os fluxos, e aí se amarra a espécie de identidade de natureza do capitalismo e do esquizo.

Obs.: a tradução completa da transcrição desta aula de Deleuze está em andamento. Maiores informações em http://deleuze.multiply.com/. Esta tradução baseia-se na transcrição que está disponível no site http://www.webdeleuze.com/

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

desaforismo nº0

o adiamento é a pior miséria da escrita. pensa-se muito, fala-se demasiado, risca-se círculos e traços soberbamente desordenados num pedaço ainda vazio do papel... mas a escrita permanece à espreita, esquivando-se até o inevitável: aquela hora em que a caneta já não foge ao que dela se espera, momento em que o teclado deixa de repetir inutilmente senhas de acesso... daí pra frente o fluxo frenetiza, faz transbordar aquela represa angustiante de palavras-coisa circulando pelo corpo [pois palavra nenhuma mora só na cabeça...]. de agora em diante, estes desaforismos serão algumas das minhas frestas no paredão da represa... quem quiser desafor(ism)ar, esteja à vontade. o nº 0 cumpre já seu propósito, ensaiar uma abertura, mas sem começo, sem inauguração, sem fundamento... por ora, talvez seja a represa que viabiliza fluxos d'agua-letra mais intensos, não sei... será que o adiamento é o melhor fermento da escrita?

A arte e o problema da expressão, por Luiz Fuganti


Os caminhos que devolvem a expressão são os mesmos que fazem do corpo e do pensamento labirintos vitais. Labirintos de gestos e sentidos. Como andarilhos ou viandantes buscamos a vida intensiva. Mas encontramo-la também ou principalmente na arte? Não há referência que se revele no fim do horizonte. Nem há fim ou começo, nem tábula rasa. Há apenas limiares num horizonte movente. Movimento sem projetos e sem memórias. O movimento em ato como único horizonte absoluto de cada singularidade. Por isso não encontramos a expressão mais plena do nosso desejo enquanto procuramos seu sentido e oriente na transcendência da existência. Só encontramos o essencial do corpo, o vital do pensamento, no movimento mesmo que os constitui por dentro, mas bem ali, no foco excêntrico, no ponto onde o dentro toca o fora, onde todo vivente toca o acontecimento imanente que o faz viver. É quando a essência vital se revela como pura potência, que se expressa na superfície mais fluida, na mais fina espessura do presente, na presença criadora do gesto e do sentido. Potência ligada, ligada ao que pode. Mas então o que pode nos separar desta potência em ato, usina da vida? Maus encontros, a vida tornada fraca busca a qualquer custo se conservar, mas se conserva enquanto vida rebaixada, diminuída. Nessa condição investirá em valores que já não pode criar, idéias prontas, leis, referências exteriores que prometem segurança. Formas do tempo e do espaço que os homens reativos criam e estabelecem como valores superiores ao ser do tempo e do espaço, isto é, como superiores e mais reais que a vida. E isso para prover essa vida enfraquecida de certa ordem e realidade que ela perdeu. Realidade? Ordem? Delírio de ordem e de realidade. É tudo o que nos separa de nossa própria potência. Investimos num "horizonte" fictício. Orientamos nossa percepção do mundo numa atmosfera engessada pela impotência. Muro da representação, onde centramos a atenção do nosso desejo em lógicas imaginárias, conexões simbólicas, significantes e representantes de uma ordem e realidade mais verdadeiras. Quando representamos o real, o perdemos de saída. Quando a vida quer representar, é a própria vida que se perde. É a nossa danação. Deixamos escapar diante de nossos olhos a vida como potência ativa e afirmativa, diferencial e diferenciante, criadora do próprio real. Porque estar vivo nada mais é do que produzir realidade, estofo e consistência do próprio tempo, pelo simples ato do viver. Mas o ato da potência ou do virtual da vida só o encontramos no MEIO, no tempo que rasga o instante e devém acontecimento que estica ou condensa o presente de cada passagem ou afeto do desejo, eternidade das metamorfoses. Devires afetivos ou potências de modificação de si. Assim, não apenas criamos arte ou novas maneiras de perceber o mundo, novos horizontes sem referência para a vida, mas fazemos da própria vida em nós uma obra de arte. É no mesmo lance que encontramos a expressão e ultrapassamos a representação. E nessa bifurcação é toda a vida que se torna intensiva. Intensidades e expressões. Não mais formas e conteúdos. O gesto do corpo devém conteúdo intensivo sem forma prévia, sem marcas ou programação. A linguagem verbal manifesta qualidades expressivas imediatas, que vibram e ressoam mais do que comunicam. Sem formalizações mediadoras ou representantes de um conteúdo transcendente. O conteúdo do gesto e a expressão do sentido tornam-se um só acontecimento do desejo. É toda matéria em nós ou todo nosso corpo profundo que sobe à superfície mais imediata e se torna pele física e metafísica. Tornamo-nos assim puros seres múltiplos de luz e sensação que desenham e fabulam na superfície da vida. Bodas de um corpo tornado pleno e de um pensamento liberto do sujeito, livre dos aguilhões da consciência.Estes foram alguns traços dos labirintos palmilhados, percursos inventados, que atravessamos e nos atravessaram nessa alegre e emocionante experimentação que fizemos nos encontros com o grupo Solos do Brasil, reunidos em torno do maravilhoso Teatro Essencial de Denise Stoklos. Teatro que libera de modo magistral os gestos das formas de conteúdo e a palavra das formas de expressão, reencontrando o próprio movimento dos afetos como mestre único da passagem à expressão.

Para ler mais: faça download da aula aberta proferida por Luiz Fuganti no encerramento dos encontros do Projeto Solos do Brasil.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A subjetividade no mundo moderno, por Cláudio Ulpiano

Transcrição de aula de Cláudio Ulpiano (1988) sobre os gregos, a cidade, as paixões, a razão, a lei, a sociedade jurídica e, em nossa modernidade, o complexo de Édipo. Imperdível.

Em um texto de J. P. Vernant, chamado “Esboço da vontade na tragédia grega”, é levantado como hipótese de trabalho que a categoria de vontade não seria uma categoria natural, mas histórica, o que quer dizer: colocar a categoria de vontade na história ao invés de colocá-la na natureza; o que significa que a categoria de vontade não esteve sempre presente no história do homem. Vocês vão encontrar determinadas formações sócio-políticas e históricas onde a categoria de vontade não atravessa. Vernant, então, desnaturaliza a categoria de vontade e a coloca na história, o que significa que mesmo que ela apareça em todas as formações históricas, ainda assim ela não é natural, somente histórica.
Vamos colocar a figura sujeito humano, e vamos ligar a noção de sujeito humano ao princípio de inércia que diz que alguma coisa só se move ou só repousa se receber uma força externa, que seria, então, diferente do sujeito humano que se supõe auto-movente. Quando colocamos a suposição de que o sujeito humano tem uma atividade, a questão que se coloca é: o que determina ou qual é a causa dessa atividade? De outra maneira, o sujeito humano possui dentro ou fora de si alguma coisa que o faz ter atividade? Então, existe um sujeito humano e um agente de ação.
Exemplo: O Elias está sentado. Eu chego atrás do Elias com um revólver e digo: − Elias, ande! − Neste caso, o agente de ação foi o revólver. Mas se eu colocasse o revólver atrás de uma cadeira e ordenasse a mesma coisa ordenada ao Elias, a cadeira não andaria. Então o que se supõe é que inicialmente o Elias é dotado de uma vontade e que essa vontade pode ser influenciada pela presença de um revólver. Nessa posição, a vontade tem seu agente de ação na exterioridade.
De outro lado, o Elias pode ter ódio de uma determinada pessoa e um dia se encontra com essa pessoa e lhe dá um soco. Nessa posição, a vontade de Elias é determinada por uma paixão. A paixão é também um agente externo à vontade. Tanto o revólver quanto a paixão são externos à vontade, não importando que esta paixão seja interior à subjetividade. Ela é interior à subjetividade, o revólver é exterior à subjetividade, mas tanto o revólver quanto a paixão são exteriores à vontade. Nesse segundo caso, o agente de Elias é a paixão.
Se colocarmos que o Elias tenha como agente de ação a vontade, sem que haja o revólver ou a paixão determinando a vontade, significa que o Elias tem vontade livre. Nas duas primeiras questões a vontade foi determinada por causas externas à vontade. No caso do ódio o agente de ação é a paixão, no caso do revólver o agente de ação é o revólver. Se ele tiver ação pela vontade, ele é livre, sem determinante externo.
Quando a vontade não tiver como determinante algo do exterior, ela é livre. Se nós encontrarmos um tipo de campo social em que os homens, ao agirem, ajam determinados pelas paixões, esses homens não são livres. Os gregos, por exemplo, em determinados momentos de sua história, achavam que o determinante da ação eram os deuses. Nesse momento se colocava que todas as ações implicariam nos deuses como agentes. Se os agentes são os deuses, aquilo que foi feito de errado para um homem terá como culpado, não o homem, mas a deus. Os gregos ao produzirem essa prática, ao inventarem essa colocação, estão extraditando deles mesmos a culpa em qualquer ato. A questão é eliminar a culpa.
Na hora em que se estabelece que o agente de ação determinante de seu ato são os deuses, você extrai de você a culpa e a responsabilidade individual pelo ato que você cometeu. Nessa posição, um homem comete um ato e não é responsável pelo ato, porque o culpado é o deus. A palavra “culpa", em grego, se mistura com a palavra “causa” (“aitia”). Então, a causa ou o agente de ação de minha atividade foi o deus. Isso tira de mim a responsabilidade individual.
Vai aparecer a sociedade da polis, a polis grega, a cidade grega: o que marca a cidade grega é que o governo não é feito por um homem, nem vários homens, o governo da cidade grega é a LEI. Aparece na história uma organização política que é a polis onde o que a governa é a lei. Por isso o grego que, durante um ano, por exemplo, fizer práticas de servir ao desenvolvimento da cidade, fizer a cidade crescer com esta ajuda, fizer atos heróicos notáveis, for um notável orador, na assembléia tendo um ano de grande destaque dentro da cidade, esse grego, de repente, é condenado pelos outros cidadãos ao ostracismo, isto é, ao exílio, pois esse homem ameaçou, transformou-se num tirano, e o tirano é aquele que governa fora das leis.
Quando estamos numa cidade governada pelas leis, e a lei é aquilo que é produzido pelos homens que estão dentro daquela cidade, isso leva os outros homens que estão dentro daquela cidade, isso leva os outros homens que estão sob a organização daquelas leis a aceitarem ou não as leis. Por isso, dentro desta cidade, tem que aparecer a responsabilidade individual. No momento em que você não obedece a uma lei, você cometeu um crime, e por esse crime você tem que ser julgado, e não os deuses. O indivíduo se torna responsável pelos seus atos. Você pratica um ato, mas esse ato só tem um responsável, você. Nasce a noção de que você age segundo sua vontade. Se esse homem, que tem a vontade e a responsabilidade individual, de repente praticar uma ação e disser que praticou a ação por estar influenciado por uma paixão, isso significa que ele não praticou o ato pela vontade livre, foi a paixão que determinou o ato. Então, uma sociedade deste tipo tem que constituir os homens capazes de dominar as suas paixões, ou seja, a sociedade grega irá constituir a categoria de “arethê”, a categoria de virtude, que é daqueles que dominam as paixões. Está aparecendo o que se chama SOCIEDADE JURÍDICA. A Sociedade Jurídica pressupõe a vontade livre, mas admite que essa vontade recebe determinação das paixões, e sempre que no julgamento verificar que a ação do indivíduo foi determinada pelas paixões, o crime dele não é doloso, é culposo.
Em uma sociedade como a egípcia, onde o governo não é o governo das leis, mas o governo de um déspota, o processo não é o mesmo. Para se ter um processo onde a vontade é o agente da ação, tem que se estar instalado em uma sociedade governada pelas leis. Os gregos não só criaram a democracia, como também criaram a vontade livre.
Quando você pega o sujeito humano, você verifica que ele produz uma série de ações. Ele inventa o martelo, conquista a Índia, rouba, inventa o capitalismo financeiro, faz uma série de práticas, e a nossa questão é perguntar o que é que leva esse sujeito humano a agir, quais as forças reais que o conduzem à ação. É possível que, se nós estivéssemos em uma sociedade excessivamente religiosa, que se dissesse que a ação dos homens seria devida à influência dos deuses. Ou de uma maneira diferente: em determinadas sociedades religiosas você encontra o discurso que diz que determinado homem está tomado por uma magia, por uma magia negra, e, em função dessa magia, todas as ações daquele homem são determinadas. Então, a ação daquele homem, nesse momento, tem como determinante a magia. Se minha ação for determinada pelas paixões e eu amo o André, sempre que eu agir o determinante da minha ação será o amor. Agora, suponhamos que eu odeie essa parede, minha ação será determinada pelo ódio. Então, fica claro que a ação de um homem pode ser determinada pelas paixões. No momento em que isso ocorre, o homem não é culpado pela ação, porque o responsável pela ação é a paixão. É possível se dizer que se esse homem for curado de sua paixão, irá agir de outra maneira. O homem é um ser dotado de muitas paixões, e, sendo assim, pode em determinado momento ter sua ação determinada pela paixão do ódio, e, em uma sociedade desse tipo, o que se vai tentar é fazer com que a paixão do amor seja a paixão determinante, com o objetivo de se constituir uma cidade equilibrada.
Nesse tipo de sociedade, tem-se que admitir, primeiramente, que as paixões são as determinantes da ação. Mas, como nessa sociedade o que se visa é a uma boa organização, procura-se produzir uma paixão equilibrada, para ser a dominante, o que seria, no caso, uma boa paixão. Há, mesmo, a criação de uma pedagogia, visando ao apaziguamento das paixões.
É o mesmo problema da nossa cidade, o Rio. Porque os homens da nossa cidade estão tomados das paixões mais loucas, devido a uma instituição política que enlouquece as paixões. A pedagogia pretende fazer que domine na sociedade a paixão do amor. Quando você encontra escrito aí “Sou contra a violência”, isso significa: “Sou contra as paixões violentas”. O que se pretende é a constituição da dominação da paixão apaziguada.
Numa sociedade onde as paixões estão passando com a maior violência, procura-se verificar o que teria, na subjetividade humana, que pudesse comandar as paixões: o amor, o ódio, a tristeza etc. A sociedade grega descobre a razão. A razão seria a paixão mais apaziguada. Então, haverá uma preocupação, nesse campo social, de produzir homens que tenham os seus atos determinados pela razão. O ideal de uma cidade seria a racionalidade (que é, inclusive, o ideal de Espinosa).
Tomada essa questão, nós vamos verificar que através do domínio da razão se procura construir uma cidade racional. Mas, como a razão grega é uma razão geométrica, o objetivo deles é construir uma cidade geométrica. Então, se verá uma cidade arquitetonicamente geométrica, uma astrologia comandada pela geometria, e se verão, também, as relações entre os homens sendo geométricas (uma vez que existe a predominância da paixão apaziguada da razão, sendo essa razão, geométrica). Portanto, o cidadão grego é igual a outro cidadão grego, pois a igualdade é elemento da geometria.
Se passarmos para a sociedade do déspota, o processo não é o mesmo. Na sociedade do déspota, não há a pretensão de que a razão seja a paixão dominante, pois no mundo do déspota só existe um corpo apaixonado, o do déspota. O resto é zero. Por isso que a cidade antiga não é geométrica.
O escravo não está na sociedade racional. É negada ao escravo a posição de humano. O escravo está mais próximo do animal. Ele não é um homem livre, pois um homem livre tem sua ação determinada pela razão; sendo assim, o escravo tem que se deixar determinar pela razão do senhor. Por isso, se o escravo cometer um crime, o senhor estará envolvido.
A justiça no mundo do faraó é feita pelo próprio faraó. No mundo grego a justiça é feita pela razão (lei).
A razão seria uma forma da subjetividade humana. A subjetividade humana teria, entre outras formas, a forma racional. Há uma preocupação do grego em saber com quais objetos essa razão lida. Ela se relaciona com as idéias. Para Platão, essas idéias, com as quais a forma razão se relaciona, estão fora da razão. Mas acontece que essas idéias, que são os objetos da razão, não podem habitar no mesmo mundo que os objetos das outras formas da subjetividade. Essas idéias têm que receber um território próprio, que é chamado o mundo das idéias ou essências. Em Aristóteles, essa forma da razão não tem objetos fora dela.
Os objetos da razão aristotélica estão dentro da própria razão, pelo processo de abstração. A razão seria a forma superior para a organização da sociedade, da cidade e, simultaneamente, através da razão, se produziria conhecimento. Conhecer, em Platão, é contemplar as idéias. Mas como podem-se contemplar as idéias, vivendo em um mundo sensível?
A razão humana não traz as idéias com ela. A razão humana atinge as idéias. A razão habita o corpo humano e no mundo dos corpos não existem idéias. As idéias habitam um território superior. Por isso, a razão, para conhecer essas idéias, tem que ter o seu corpo morto. É o que se chama “a alma se separa do corpo para conhecer as idéias”. A teoria do conhecimento principia pela morte. Em Aristóteles, não é preciso morrer para conhecer.
No século XIX surge Kant. Kant constitui uma teoria da razão diferente da platônica e da aristotélica. A razão kantiana literalmente não tem objeto (em Platão, há objeto no mundo das idéias; em Aristóteles, há objeto dentro da própria razão). Surge uma razão que é forma pura, sem objetos.
Os cristãos reinventaram uma figura que já havia sido inventada antes pelos gregos: o anjo. Na Grécia, o anjo era um emissário, e, para os cristãos, o anjo era algo entre Deus e o homem, como numa escala: animal-homem-anjo-Deus. O anjo cristão é eterno e sem corpo. Ele é governado pela razão, é razão pura. Uma pulga difere do anjo por possuir um organismo. Há todo um movimento corporal na pulga.
O anjo age, tem atividade, assim como a pulga. A pulga só age determinada pelos órgãos, o anjo apenas pela razão. Surge então o homem, que é metade pulga, metade anjo. Um ser que age pelos órgãos e pela razão. A razão do anjo determina a vontade do anjo, e a vontade então age. Toda a vontade do anjo é racional. Os órgãos determinam a vontade, na pulga.
O homem tem a razão e os órgãos, ambos determinantes de vontade. Kant então faz a tese de que o homem é constituído de um corpo orgânico e uma razão, e dotado de uma vontade (Nietzsche fica apavorado com essa idéia. Ele irá se opor a que a vontade seja UNA. Nietzsche diz que existem múltiplas vontades).
O organismo do homem é diferente do organismo de outros animais. Existem corpos organicamente diferentes, o que gera a categoria de espécies. Agora, na espécie humana, todos têm organismos, idênticos, mas há, ainda assim, algumas diferenças entre os organismos da espécie humana. Contudo, a razão é igual em todos os homens. A razão é, então, UNIVERSAL.
Pode haver determinados momentos em que a vontade humana seja determinada pela razão e momentos em que seja determinada pelo organismo. O ideal é constituir o homem determinado de sua vontade pela razão. Na hora que se constituir um homem que age pela razão determinando a vontade, você estará criando a noção de Homem. Homem é aquilo que age determinado pela razão. Se a razão é universal, o ideal seria que todos os homens fossem determinados pela razão. Essa posição nos torna piedosos. Por exemplo: se pegarmos um primitivo, vamos achar que esse primitivo é determinado pelos órgãos, mas, se nós o educarmos, ele será determinado pela razão. Por isso é que o homem moderno não mata mais o primitivo, ele o reeduca. Está nascendo o que se chama humanidade. A humanidade existe quando todas as ações do homem forem determinadas pela razão.Quando se pega Kant, se verifica que toda a questão de Kant é a humanidade. No momento em que a razão determina a vontade, a vontade é livre. O homem só assim tem a liberdade.
A revolução industrial cria o capitalismo financeiro industrial. Há uma mudança no regime de trabalho, e na distribuição de riquezas. A riqueza, que até então estava no campo, nas mãos dos proprietários, vai se transportar para a cidade, e fica na mão dos trabalhadores. A fábrica Ford é habitada pelos trabalhadores. Nasce o regime de trabalho assalariado. Agora, ao invés de se venderem os produtos manufaturados, vende-se o próprio corpo. O trabalhador conduz o seu corpo para o mercado para vendê-lo (Marx).
Se se vai vender o próprio corpo, aparece a questão de saber se, ao vender o próprio corpo, se está fazendo essa prática porque se está sendo forçado, ou porque se quer. Isso quer dizer que simultaneamente ao nascimento do capitalismo industrial, está emergindo a democracia liberal, cujo fundamento é a liberdade. Aparece a categoria de trabalhador livre. Está estabelecido que a venda do corpo não é por um processo de constrangimento externo, você vende por liberdade própria. Juntando tudo isso, esse homem vende seu próprio corpo porque ele é um homem, e o homem é livre, porque é dominado pelas forças da razão. Então, se você espalha o capitalismo, não haverá um homem que não queira a liberdade; todos nós vamos lutar até a morte pela liberdade, sem saber que estamos lutando pelo capitalismo. Essa categoria de humanidade se espalhará pelo planeta, porque é desse modo que se gerarão os trabalhadores livres.
Toda a questão de Deleuze e Foucault, que entenderam isso, é a de devolver ao homem moderno a sua vida, sair desses modelos e esquemas de morte.
MÉTIS é o nome de uma deusa grega, em certo ponto obscura, e, simultaneamente, o nome de uma prática. Em Esparta há a prática da constituição do guerreiro hoplita. Os jovens gregos (efébos) são preparados para se tornarem hoplitas. Quando os efébos têm 16-17 anos são liberados para fazerem caçadas, movimentos pelas florestas e perseguições terríveis aos hilotas (mais ou menos o meteco, em Atenas). Então, se verão efébos caçando e matando hilotas, mas, para fazerem isso, os efébos têm que usar de uma astúcia excepcional. O que se está constituindo com isso é a criação de uma habilidade, de uma capacidade para passar por momentos dificílimos. Quando a efebia grega entrar no grupo dos hoplitas, os efébos vão esquecer tudo isso, porque a organização dos hoplitas é inteiramente disciplinadora, mas lá, enquanto efébo, é astúcia e habilidade.
No momento em que nasce a razão grega, as práticas de Métis vão ser consideradas práticas transgressoras, e nós vamos acreditar nisso, e vamos deixar de ser hábeis, astutos, e de enfrentar as florestas. Vai se criar uma subjetividade tendente e apaixonada pelas disciplinas. O que se objetiva, escondendo a Métis, é uma subjetividade que acredite piamente na disciplina, na ordem das legiões guerreiras, na ordem das ordens etc. Por isso que se você for muito hábil, muito astuto, percorrer as florestas e conquistar coisas por estas habilidades, a razão ocidental irá persegui-lo.
O que eu peço para vocês é que tenham Métis, tenham habilidade, porque o pensamento é uma floresta terrível, que se você não entrar com muitas habilidades, você irá chamar por um tenente-coronel para dirigir a sua vida. Isso ocorre em Universidade Federal, em turma de História; não resiste à posição de ser o único responsável pela própria vida, pelo fato de estarmos organizados por essa razão disciplinar das coisas.
A filosofia se tornou no século XX em uma empregadinha de 2ª categoria; isso é que são as epistemologias. Mas a filosofia é um campo de força, de luta. A filosofia vai servir o tempo inteiro (ou então não serve para nada) ao pensamento. O que acontece é que no reino da filosofia atual é capaz de um professor europeu te ensinar com uma perícia incrível, você vai aprender aquilo, mas o que você vai entender é que aquilo está articulado com o campo político e histórico. Ou seja, eles dão para você a ideologia, mas não lhe dão o campo de poder. Então não há como pensar filosofia desarticulada do campo de poder, porque quem fizer isso está caindo na morte (isso serve para a literatura também).
A teoria de que nós temos uma vontade única não é propriamente uma tolice, como Nietzsche disse. Porque tem-se toda uma tese sobre a categoria tolice. Não há tolice no mundo. Os objetivos de produzir a idéia de que há uma vontade única são exatamente para produzir um tipo de subjetividade. Quando Nietzsche for pensar, ele vai pensar a mesma coisa − corpo e razão − mas vai pensar uma multiplicidade de vontades para começar a entender o que é exatamente natureza.
A partir do século XIX, surgiu uma grande investigador no ocidente, que, sem brincadeira nenhuma, é o Freud. Ele pensou a questão que o ocidente nunca havia pensado, que é a questão do inconsciente. Ele fez uma relação entre inconsciente e desejo, e em seguida se preocupou em explicar o que é o desejo. Quando ele começa a explicar o desejo, ele articula o desejo a um mito, Édipo, e começa a explicar o desejo dizendo que o desejo é edipiano. Ser edipiano é ser edipiano em qualquer homem, o que significa que nosso desejo é originalmente incestuoso e parricida. Isso se chama complexo de Édipo.
Vamos agora unir essa tese com o que foi exposto na aula: vamos pensar em uma criança humana de cinco meses de idade. Essa criança tem vontade-desejo (são sinônimos) cujos determinantes são o organismo e a razão. Essa criança, contudo, não tem capacidade, pela própria constituição biológica do homem, de atingir, por ela mesma, o objetivo que realize os desejos do organismo. Então ela precisa de uma outra pessoa, que é no nosso mundo, a mãe. Essa criança necessita que a mãe faça por ela o que ela não pode fazer. A mãe faz o que a criança deseja se quiser. Então, essa criança está dependente da mãe. O desejo da criança procura se associar ao desejo da mãe.
E se essa mãe resolve dar as coisas para essa criança, o corpo dessa mãe se torna o território do organismo da criança. Essa criança, que é determinada pelo organismo, na hora que sente fome, sente dor, a fome dá a dor e a criança grita. A mãe que se predispôs a desejar o desejo dessa criança, vai dar-lhe o alimento. A mãe vai tirar essa criança da dor e jogar essa criança no prazer, o que imediatamente torna o corpo da mãe no corpo do prazer. Essa criança de imediato se associa à mãe e não quer sair dali, porque ali está o prazer. Mas nós estamos numa sociedade constituída pela família conjugal, e aquele que separa essa criança da mãe, é o papai. Na psicanálise, papai se chama literalmente o desmancha-prazeres. Então essa criança ama mamãe e odeia papai. Ela é parricida e incestuosa. Mas se essa criança prosseguir naquela posição, ela não poderia entrar na cultura, porque toda e qualquer cultura pressupõe a interdição do incesto. Toda cultura pressupõe a separação da criança da mãe. É o que se chama complexo de castração. Essa criança tem que ser castrada (separar-se da mãe) e entrar na cultura. E entrar na cultura é entrar na razão.
Essa sociedade precisa produzir corpos edipianos. Produzir um tipo de família que funcione com uma criança inteiramente dependente da mãe, para ela se tornar edipiana. Tornar-se edipiano é real, só não é estrutural. O Édipo que Freud explicou como sendo estrutura de desejo, é o componente do nosso poder atual. É preciso produzir edipianos, e se a família fracassar, o psicanalista edipianiza.
O complexo de Édipo seria uma espécie de pecado original (o modelo do complexo de Édipo é judaico), ou seja, nós já nascemos entupidos de culpas. A nossa sociedade tenta familiarizar o desejo, pois, quanto mais edipianos se produzirem, mais humanidade se produzirá, porque entre Édipo e humanidade não há diferença. Todos os edipianos são humanistas, são pura humanidade. Por isso Foucault é detestável. Ele alerta para a preocupação de nossa sociedade em produzir esse tipo de família conjugal, centrar a família na criança e jogá-la na dependência da mamãe, que é o território do prazer, para constituir a partir daí um homem inteiramente fraco.
Esse processo dificilmente se dá na favela. As crianças faveladas percorrem desde cedo todo o campo social. Por isso é muito difícil fazer um ser-humano na favela. Mas o esforço é muito grande. O Mascarenhas [psicanalista atuante na época] pregava todos os dias − “Precisamos levar a psicanálise na favela pra humanizar essa gente”. − Eu “chorava” de emoção. Mas todo mundo chora, pois o humanista é bom, ele nunca faz uma maldade, ele só faz bondade, porque ele é a favor das paixões apaziguadas!
Nós somos constituídos setorizados, nós não somos constituídos para fazer diversos campos de pensamento, o que é inteiramente falso. O pensamento atravessa qualquer coisa. Quando vamos à universidade é aquela linha dura sobre você, e quando você vai escutar o pensamento aquela linha dura não lhe permite. Então a minha aula tem que passar o pensamento transitando em qualquer lugar. E com esse esforço do pensamento você vai começar a entender. A subjetividade moderna, para os que afirmam o pensamento setorizado, tem que ficar quietinha num canto − “Você já entendeu matemática? Ótimo! Vai prà NASA”. − O que ocorre no nosso tempo.
Você pega Jacques Monod, você se espanta, porque é biologia, física, química, matemática, ele não quer saber, ele vai embora. E agora há esse mito de que brasileiro não pode. Pode sim. E nós temos que fazer esse esforço aqui dentro da universidade, produzir uma universidade que traga para nós algo que vá servir às nossas vidas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Uma introdução à vida não fascista, por Michel Foucault


"Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade."



Prefácio à edição americana de O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Foi retomado em Dits et êcrits, de Foucault (Gallimard). O título é da redação do Magazine Litteraire, onde foi publicado pela primeira vez em francês. Trad. Fernando José Fagundes Ribeiro.


Entre os anos 1945 e 1965 (penso na Europa), havia certa maneira correta de pensar, certo estilo de discurso político, certa ética do intelectual. Era preciso ser íntimo de Marx, não deixar os sonhos vagarem longe demais de Freud, e tratar os sistemas de signos — o significante — com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável esta singular ocupação que consiste em escrever e enunciar uma parte de verdade sobre si mesmo e sua época.

Depois vieram cinco anos breves, apaixonados; cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo estava o Vietnã, evidentemente, e o primeiro grande golpe desferido contra os poderes constituídos. Mas aqui, em nossas fronteiras, o que acontecia exatamente? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra travada em dois frontes — a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. Seja como que for, foi por essa interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos desses anos. O sonho que entre a Primeira Guerra Mundial e o advento do fascismo havia mantido sob seu encanto as frações mais utopistas da Europa — a Alemanha de Wilhelm Reich e a França dos surrealistas — retornara para abrasar a própria realidade: Marx e Freud iluminados pela mesma incandescência.[(197)]

Mas terá sido isto realmente o que se passou? Tratou-se de fato de uma retomada do projeto utópico dos anos 30, dessa vez na escala da prática histórica? Ou terá havido, ao contrário, um movimento em direção a lutas políticas que não se conformavam mais com o modelo prescrito pela tradição marxista? Em direção a uma experiência e uma tecnologia do desejo que já não eram freudianas? Certamente, foram brandidos os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.

O anti-Édipo mostra, inicialmente, a extensão do terreno percorrido. Porém faz muito mais. Ele não se distrai difamando os velhos ídolos, ainda que se divirta muito com Freud. E, sobretudo, ele nos incita a ir mais longe. Seria um erro ler O anti-Édipo como a nova referência teórica (sabem, essa famosa teoria que nos foi anunciada com tanta freqüência: aquela que vai englobar tudo, que é absolutamente totalizante e tranqüilizante e da qual, conforme nos garantem, “temos tanta necessidade” nessa época de dispersão e de especialização, em que a “esperança” desapareceu). Não se deve buscar uma “filosofia” nessa extraordinária profusão de noções novas e de conceitos-surpresa. O anti-Édipo não é uma contrafação de Hegel. A melhor maneira de ler O anti-Édipo é, creio eu, abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se nas noções aparentemente abstratas de multiplicidade, de fluxos, de dispositivos e de ramificações, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista traz respostas a questões concretas. Questões que se ocupam menos com o porquê das coisas do que com seu como. Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecidas? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.
Donde os três adversários aos quais O anti-Édipo se vê confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaças e que o livro combate por meios diferentes.
1) Os ascetas políticos, os militantes morosos, os terroristas da teoria, aqueles que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da Verdade.
2) Os deploráveis técnicos do desejo — os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta. [(198)]
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (visto que a oposição de O anti-Édipo a seus outros inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora.
Eu diria que O anti-Édipo (possam seus autores me perdoar) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França desde muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não se limitou a um “leitorado” particular: ser antiÉdipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo (e sobretudo) quando se acredita ser um militante revolucionário? Como livrar do fascismo nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres? Como desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que se tinham alojado nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua vez, espreitam os traços mais íntimos do fascismo no corpo.
Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales[1], poderíamos dizer que O anti-Édipo é uma introdução à vida não fascista.

Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou próximas de sê-lo, é acompanhada de certo número de princípios essenciais, que resumirei como segue, se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
• Liberem a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante.
• Façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização piramidal.
• Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade. [(199)]
• Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária.
• Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de Verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não passasse de pura especulação. Utilizem a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.
• Não exijam da política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e o deslocamento, o agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o liame orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”.
• Não se apaixonem pelo poder.
Diríamos inclusive que Deleuze e Guattari gostam tão pouco do poder que buscam neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Donde os jogos e as armadilhas que de algum modo se encontram por toda parte no livro, e que fazem de sua tradução uma verdadeira proeza. Mas não se trata das brincadeiras familiares à retórica, aquelas que buscam seduzir o leitor sem que este esteja consciente da manipulação e que terminam por ganhá-lo para a causa dos autores contra a sua vontade. As armadilhas de O anti-Édipo são as do humor: convites a se deixar expulsar, a abandonar o texto batendo a porta. O livro faz pensar com freqüência que só há humor e jogo ali onde entretanto algo de essencial se passa, algo que é da maior seriedade: o banimento de todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos envolvem e nos esmagam, até as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. [(200)]
[1] . Homem da Igreja do século XVII, que foi bispo de Genebra. É conhecido por sua Introdução à vida devota.
Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. – v. 1, n. 1 (1993) – São Paulo, 1993 [páginas 197 a 200].

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Multidão e princípio de individuação, por Paolo Virno



As formas de vida contemporâneas testemunham a dissolução do conceito de “povo” e da renovada pertinência do conceito de “multidão”. Estrelas fixas do grande debate do Século XVII, e encontrando-se na origem de uma boa parte do nosso léxico ético-político, estes dois conceitos situam-se nas antípodas um do outro. O “povo” é de natureza centrípeta, converge numa vontade geral, é a interface ou o reflexo do Estado; a “multidão” é plural, foge da unidade política, não firma pactos com o soberano, não porque não lhe relegue direitos, mas porque é reativa à obediência, porque tem inclinação para certas formas de democracia não-representativa. Na multidão, Hobbes verá o maior perigo para o aparato do Estado (“Os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, representam a multidão contra o povo.” Hobbes, 1652: XI, I e XII, 8). Espinosa descobrirá precisamente aí, na multidão, a raiz da liberdade. Desde o Século XVII, e quase sem exceções, é o “povo” quem a obtém e gestiona. A existência política d@s múltipl@s, enquanto múltipl@s, foi afastada do horizonte da modernidade: não somente pelos teóricos do Estado absolutista, mas também por Rousseau, pela tradição liberal e pelo próprio movimento socialista. No entanto, hoje, a multidão desforra-se, ao caracterizar todos os aspectos da vida social: os hábitos e a mentalidade do trabalho pós-fordista, os jogos de linguagem, as paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva. Quando constatamos esta revanche, é necessário evitar ao menos duas ou três tolices. Não é que a classe trabalhadora tenha se dissipado com entusiasmo para deixar lugar aos “múltiplos”, mas bem mais — e a coisa resulta muito mais complicada e muito mais interessante — que os trabalhadores de hoje em dia, permanecendo trabalhadores, não têm a fisionomia do povo, mas são o exemplo perfeito do modo de ser da multidão. Além do mais, afirmar que @s “múltipl@s” caracterizam as formas de vida contemporâneas não tem nada de idílico: caracterizam-na tanto para o bem como para o mal, tanto no servilismo como no conflito. Trata-se de um modo de ser, diferente do modo de ser “popular”, é certo, mas, em si, não desprovido de ambivalência, com uma dose de venenos específicos.
A multidão não afasta com gesto brincalhão a questão do universal, do que é comum, compartilhado: a questão do Uno; bem mais, a redefine por completo. Temos, para começar, uma inversão da ordem dos fatores: o povo tende para o Uno, @s “múltipl@s” derivam-se do Uno. Para o povo, a universalidade é uma promessa; para @s “múltipl@s”, é uma premissa. Muda também a própria definição do que é comum, do que se compartilha. O Uno ao redor do qual gravita o povo é o Estado, o soberano, a vontade geral; o Uno que a multidão tem atrás de si é a linguagem, o intelecto como recurso público e interpsíquico, as faculdades genéricas da espécie. Se a multidão foge da unidade do Estado, é somente porque comunica com um Uno diferente, preliminar antes que concluído. E é sobre essa correlação que há que se perguntar mais profundamente.
A contribuição de Gilbert Simondon, filósofo muito querido por Deleuze, sobre esta questão, é muito importante. Sua reflexão trata dos processos de individuação. A individuação, isto é, o passo da bagagem psicossomática genérica do animal humano à configuração de uma singularidade única é, quem sabe, a categoria que, mais que qualquer outra, é inerente à multidão. Se prestarmos atenção à categoria de povo, veremos que se refere a uma miríade de indivíduos não individualizados, quer dizer, compreendidos como substâncias simples ou átomos solipsistas. Justo porque constituem um ponto de partida imediato, antes que o resultado último de um processo cheio de imprevistos, tais indivíduos têm a necessidade da unidade/universalidade que a estrutura do Estado proporciona. Ao contrário, se falamos da multidão, colocamos o acento precisamente na individuação, ou na derivação de cada um(a) d@s “múltipl@s” a partir de algo de unitário/universal. Simondon, tal como, por outras razões, o psicólogo soviético Lev Semenovitch Vigotski e o antropólogo italiano Ernesto de Martino, chamaram a atenção sobre semelhante desvio. Para esses autores, a ontogênese, quer dizer, as fases de desenvolvimento do “eu” [“yo”; “je”] singular, é consciente de si mesma, é a philosophia prima, única análise clara em tudo e para tudo com o “princípio de individuação”. A individuação permite modelar uma relação Uno/múltip@s diferente da que se esboça um pouco antes (diferente da que identifica o Uno com o Estado). Trata-se, assim, de uma categoria que contribui para fundar a noção ético-política de multidão.
Gaston Bachelard, epistemólogo entre os maiores do Século Vinte, escreveu que a Física Quântica é um “sujeito gramatical” em relação ao qual parece oportuno empregar os mais heterogêneos predicados filosóficos: se a um problema singular adapta-se bem um conceito filosófico, a um outro pode convir, por que não, um plano da lógica hegeliana ou uma noção extraída da psicologia gestaltista. Da mesma maneira, o modo de ser da multidão há de qualificar-se com atributos que se encontram em contextos muito deferentes, por vezes inclusive excludentes entre eles: Reparemos por exemplo na Antropologia Filosófica de Gehlen (indigência biológica do animal humano, falta de um “meio” [“medio”; “milieu”] definido, pobreza dos instintos especializados); nas páginas de Ser e tempo consagradas à vida cotidiana (falatórios, curiosidade, equívoco, etc.); na discussão dos diversos jogos de linguagem efetuados por Wittgenstein nas Investigações filosóficas. Exemplos todos discutíveis. Ao contrário, incontestavelmente, duas teses de Simondon são absolutamente importantes enquanto que “predicados” do conceito de multidão:
1) o sujeito é uma individuação sempre parcial e incompleta, consistente bem mais nos traços cambiantes de aspectos pré-individuais e de aspectos efetivamente singulares;
2) a experiência coletiva, longe de assinalar sua desintegração ou eclipse, persegue e afina a individuação. Se esquecermos muitas outras considerações (incluída a questão, evidentemente central, de como se realiza a individuação, segundo Simondon) vale a pena aqui se concentrar nestas teses, enquanto que contrárias à intuição e inclusive escabrosas.

Pré-individual

Voltemos ao começo. A multidão é uma rede de indivíduos. O termo “multidão” indica um conjunto de singularidades contingentes. Estas singularidades não são, no entanto, uma circunstância sem nome, mas, ao contrário, o resultado complexo de um processo de individuação. Resulta evidente que o ponto de partida de toda verdadeira individuação é algo ainda não individual. O que é único, não reprodutível, passageiro, provém, de fato, do que é mais indiferenciado e genérico. As características particulares da individualidade enraízam-se em um conjunto de paradigmas universais. Já, falar de principium individuationis significa postular uma inerência extremamente sólida entre o singular e uma forma ou outra de potência anônima. O individual é tal, não porque se sustenta no limite do que é potente, como um zumbi débil e rancoroso, mas porque é potência individuada; e é potência individuada porque é tão somente uma das individuações possíveis da potência.
Para estabelecer o que precedeu à individuação, Simondon emprega a expressão, bem pouco crítica, de realidade pré-individual. A cada um(a) d@s “múltipl@s”, lhe é familiar esse plano antitético. Mas, o que é exatamente o pré-individual? Simondon escreve: “Poder-se-ia chamar natureza a esta realidade pré-individual que o indivíduo leva consigo, tratando de encontrar na palavra natureza o significado que lhe davam os filósofos pré-socráticos: os Fisiólogos [Físicos, na tradição tradutória e filosófica brasileira] jônicos encontravam aí a origem de todas as espécies de ser, anterior à individuação: a natureza é realidade do possível que, sob as espécies do ápeiron de que fala Anaximandro, faz surgir toda forma individuada; a Natureza não é o contrário do Homem, mas a primeira fase do ser, sendo a segunda a oposição entre o individuo e o entorno [milieu]”. Natureza, ápeiron (indeterminado), realidade do possível, ser ainda desprovido de fases; poderíamos continuar com diferentes variações sobre o tema. No entanto, aqui parece oportuno propor uma definição autônoma do “pré-individual”, não contraditória a respeito da de Simondon, mas independente dela. Não é difícil reconhecer que, sob a mesma etiqueta, existem contextos e níveis muito diferentes.
O pré-individual é, em primeiro lugar, a percepção sensorial, a motricidade, o fundo biológico da espécie. É Marleau-Ponty, em seu Phénoménologie de la perception, quem observa que “Eu não tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito de minha sensação que [a que tenho] de meu nascimento ou de minha morte”. (Marleau-Ponty, 1945, p. 249). E também: “A visão, a audição, tocar, com seus campos que são anteriores e permanecem estranhos à minha vida pessoal.” (Marleau-Ponty, 1945, p. 399). A sensação escapa à descrição em primeira pessoa: quando percebo, não é um indivíduo singular que percebe, mas a espécie como tal. À motricidade e à sensibilidade se lhe acrescenta tão somente o pronome anônimo “se”: vê-se, ouve-se, experimenta-se prazer ou dor. É certo que a percepção tem às vezes uma tonalidade auto-reflexiva: basta pensar em tocar, nesse tocar que é também sempre ser tocad@ pelo objeto que se manipula. Quem percebe, percebe-se a si mesm@ avançando para a coisa. Mas trata-se de uma auto-referência sem individuação. É a espécie quem autopercebe-se da conduta e não uma singularidade autoconsciente. Equivocamo-nos e identificamos, se vemos relação entre dois conceitos independentes, se mantemos que aí onde há auto-reflexão podemos também constatar uma individuação; ou, inversamente, que se não há individuação já não podemos falar de auto-reflexão.
O pré-individual, no nível mais determinado, é a língua histórico-natural de sua própria comunidade de pertencimento. A língua é inerente a todos os locutores da comunidade dada, como o é um “meio” [milieu] zoológico ou um líquido amniótico, há um tempo envolvente e indiferenciado. A comunicação lingüística é intersubjetiva e existe muito antes que se formem verdadeiros “sujeitos” propriamente ditos: está em tod@s e em ninguém, também para ela reina o anônimo “se”: fala-se. Foi sobretudo Vigotski quem assinalou o caráter pré-individual, o imediatamente social, da locução humana: o uso da palavra, primeiramente é interpsíquico, quer dizer, público, compartilhado, impessoal. Contrariamente ao que pensava Piaget, não se trata de evadir-se de uma condição original autista (quer dizer, hiper-individual) tomando a via de uma socialização progressiva; ao contrário, o essencial da ontogênese consiste, para Vigotski, no passo de uma sociabilidade completa à individuação do ser falante: “o movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento da criança não se realiza do individual ao social, mas do social ao individual” (Vigotski, 1985*). O reconhecimento do caráter pré-individual (“interpsíquico”) da língua, possibilita que, de algum modo, Vigotski antecipe-se a Wittgenstein na refutação de “uma linguagem privada”, do tipo que seja. Por outro lado, e é o que mais importa, isso lhe permite inscrever-se na curta lista de pensadores que trataram a questão do principium individuationis. Tanto para Vigotski como para Simondon, a “individuação” (quer dizer, a construção do Eu [“Yo”; Moi] consciente) sobrevém no terreno lingüístico, e não no da percepção. Em outros termos: enquanto que o pré-individual inerente à sensação parece destinado a permanecer para sempre qual é, o pré-individual que corresponde à língua é suscetível de uma diferenciação interna que desemboca na individualidade. Não se trata, aqui, de examinar de maneira crítica o modo em que, para Vigotski e para Simondon, realiza-se a singularização d@ falante; e menos ainda de acrescentar hipótese suplementar alguma. O importante é unicamente estabelecer a diferença entre o domínio perceptivo (bagagem biológica sem individuação) e o domínio lingüístico (bagagem biológica como base da individuação).
Finalmente, o pré-individual é a relação de produção dominante. No capitalismo desenvolvido, o processo de trabalho requer as qualidades de trabalho mais universais: a percepção, a linguagem, a memória, os afetos. Papéis e funções, no marco do pós-fordismo, coincidem profundamente com a “existência genérica”, com o Gattungswesen de que falam Feuerbach e o Marx dos Manuscritos econômicos e filosóficos, a propósito das faculdades mais elementares do gênero humano. O conjunto das forças produtivas é, certamente, pré-individual. No entanto, o pensamento tem uma importância particular entre essas forças; atenção: o pensamento objetivo, sem relação com tal ou tal “eu” [“yo”; moi] psicológico, o pensamento no qual a verdade não depende do assentimento dos seres singulares. Com respeito a isso, Gottlob Frege utilizou uma fórmula quem sabe pouco hábil, mas que não carece de eficácia: “pensamento sem suporte” (cf. Frege, 1918). Ao contrário, Marx forjou a célebre e controvertida expressão do General Intellect, intelecto geral: o General Intellect (quer dizer, o saber abstrato, a ciência, o conhecimento impessoal) é também o “pilar principal da produção de riqueza”, aí onde por riqueza devemos entender, aqui e agora, mais-valia absoluta e relativa. O pensamento sem suporte ou General Intellect deixa sua marca no “processo vital da própria sociedade” (Marx, 1857-1858), ao instaurar hierarquias e relações de poder. Resumindo: é uma realidade pré-individual historicamente qualificada. Sobre este ponto não vale a pena insistir mais. Tão somente reter que ao pré-individual perceptivo e ao pré-individual lingüístico é necessário acrescentar um pré-individual histórico.

Sujeito anfíbio

O sujeito não coincide com o indivíduo individuado, porém, contém em si, sempre, uma certa proporção irredutível de realidade pré-individual; é um precipitado instável, algo composto. É esta a primeira das duas teses de Simondom sobre a qual gostaria de chamar a atenção. “Existe nos seres individuados uma certa carga de indeterminado, isto é, de realidade pré-individual, que passou através da operação de individuação sem ser efetivamente individuada. Podemos chamar natureza a esta ‘carga de indeterminado.’” (Simondon, 1989, p. 210). É completamente falso reduzir o sujeito ao que é, nele, singular: “o nome de indivíduo é abusivamente dado a uma realidade muito mais complexa, a do sujeito completo, que comporta nele, além da realidade individuada um aspecto inindividuado, pré-individual, natural.” (Simondon, 1989, p. 204). O pré-individual é percebido antes de tudo como uma espécie de passado não resolvido: a realidade do possível, de onde surge a singularidade bem definida, persiste ainda nos limites desta última: a diacronia não exclui a concomitância. Por outro lado, o pré-individual, que é o tecido íntimo do sujeito, constitui o meio [milieu] do indivíduo. O contexto (perceptivo, lingüístico ou histórico) no qual inscreve-se a experiência do indivíduo singular é, com efeito, um componente intrínseco (se se quiser, interior) do sujeito. O sujeito não é um entorno [milieu]. De Locke a Fodor, os filósofos que desconsideram a realidade pré-individual do sujeito, ignorando assim o que nele é meio [milieu], estão condenados a não encontrar via de acesso entre “interior” e “exterior”, entre o Eu [“Yo”; Moi] e o mundo. Desse modo entregam-se ao erro que Simondon denuncia: assimilar o sujeito ao indivíduo individuado.
A noção de subjetividade é anfíbia: o “Eu falo” co-habita com o “fala-se”, o que não podemos reproduzir está estreitamente mesclado com o recursivo e com o serial. Mais precisamente: no tecido do sujeito encontram-se, como partes integrantes, a tonalidade anônima do que é percebido (a sensação enquanto que sensação da espécie), o caráter imediatamente interpsíquico ou “público” da língua materna, a participação no General Intellect impessoal. A co-existência do pré-individual e do individuado no seio do sujeito está mediada pelos afetos; emoções e paixões assinalam a integração provisória dos dois aspectos, mas também seu eventual desapego: não faltam crises, nem recessões nem catástrofes. Há medo, pânico ou angústia quando não se sabe compor os aspectos pré-individuais de sua própria experiência com os aspectos individuados: “Na angústia, o sujeito sente-se existir como problema gasto por ele mesmo e sente sua divisão em natureza pré-individual e em ser individuado. O ser individuado é aqui e agora, e este aqui e este agora impedem a uma infinidade de outros aqui e agora virem à luz; o sujeito toma consciência dele mesmo como natureza, como indeterminado (ápeiron) que nunca poderá atualizar-se hic et nunc, que não poderá jamais viver” (Simondon, 1989, p. 111). Há que constar aqui uma extraordinária coincidência objetiva entre a análise de Simondon e o diagnóstico sobre os “apocalipses culturais” propostos por Ernesto de Martino. O ponto crucial, tanto para de Martino como para Simondon, reside no fato de que a ontogênese, quer dizer, a individuação, não está garantida de uma vez por todas: pode regressar sobre seus passos, fragilizar –se, explodir. O “Eu penso”, além do fato de que possua uma gênese imprevisível é parcialmente retráctil, está transbordado pelo que o supera. Para de Martino, o pré-individual, parece, às vezes, inundar a singularidade: esta última é como aspirada no anonimato do “se”. Outras vezes, de maneira oposta e simétrica, força-nos em vão a reduzir todos os aspectos pré-individuais de nossa experiência à singularidade pontual. As duas patologias — “catástrofes da fronteira eu-mundo nas duas modalidades da irrupção do mundo no ser-aí e do refluxo do ser-aí no mundo” (E. de Martino, 1977) — são os extremos de uma oscilação que, sob formas mais contidas é, no entanto, constante e não suprimível.
Com demasiada freqüência o pensamento crítico do Século Vinte (pensamos em particular na Escola de Frankfurt) entoou uma cantilena melancólica acerca do suposto afastamento do indivíduo com respeito às forças produtivas e sociais, assim como com respeito à potência inerente às faculdades universais da espécie (linguagem, pensamento, etc.). A desgraça do ser singular foi atribuída precisamente a esse afastamento ou a essa separação. Uma idéia sugestiva, mas falsa. As “paixões tristes”, para dizê-lo com Espinoza, surgem bem mais da máxima proximidade, e inclusive simbiose, entre o indivíduo individuado e o pré-individual, aí onde essa simbiose apresenta-se como desequilíbrio e desgarramento. Para o bem e para o mal, a multidão mostra a mescla inextricável de “eu” [“yo”; je] e de “se”, singularidade não reprodutível e anônima da espécie, individuação e realidade pré-individual. Para o bem: ao ter, cada um(a) d@s “múltipl@s”, atrás de si o universal, a modo de premissa ou de antecedente, não tem a necessidade desta universalidade postiça que constitui o Estado. Para o mal: cada um(a) d@s múltipl@s, enquanto que sujeito anfíbio, pode sempre distinguir uma ameaça em sua própria realidade pré-individual, ou ao menos uma causa de insegurança. O conceito ético-político de multidão funda-se tanto sobre o princípio de individuação como sobre sua incompletude constitutiva.

Marx, Simondon, Vigotski: o conceito de “indivíduo social”

Em uma passagem célebre dos Grundrisse (que intitula-se “Fragmento sobre as máquinas”), Marx designa ao “indivíduo social”, como o verdadeiro protagonista de qualquer transformação radical do estado de coisas presente (cf. Marx, 1857 – 1858). Em um primeiro momento, o “indivíduo social” parece-se a um oxímoro rebuscado [coqueto], à unidade desalinhada dos contrários; em suma, a um maneirismo hegeliano. É possível, ao contrário, tomar esse conceito ao pé da letra, até convertê-lo em um instrumento de precisão, para fazer que ressurjam formas de ser, as inclinações e as formas de vida contemporâneas. Mas isso é possível, em boa medida, justamente, graças à reflexão de Simondon e de Vigotski sobre o princípio de individuação.
No adjetivo “social” há que reconhecer os traços desta realidade pré-individual que, segundo Simondon, pertence a todos os sujeitos. Como no substantivo “indivíduo”, reconhecemos a singularização advinda de cada componente da multidão atual. Quando Marx fala de “indivíduo social”, refere-se ao emaranhado entre “existência genérica” (Gattungswesen) e experiência não reprodutível, que é a marca da subjetividade. Não é por acaso que o “indivíduo social” aparece nas mesmas páginas dos Grundrisse nas quais introduz-se a noção de General Intellect, de um “intelecto geral” que constitui a premissa universal (ou pré-individual), assim como a partitura comum universal para os trabalhos e os dias d@s “múltipl@s”. A parte social do “indivíduo social” é, sem nenhuma dúvida, o General Intellect, ou bem, com Frage, o “pensamento sem suporte”. No entanto, não só: consiste também no caráter de conjunto interpsíquico, quer dizer, público, da comunicação humana, posto em relevo muito claramente por Vigotski. Além do mais, se traduzirmos corretamente “social” por “pré-individual”, teremos que reconhecer que o indivíduo individuado de que fala Marx perfila-se também sobre um fundo de percepção sensorial anônimo.
Em sentido forte, são sociais tanto o conjunto das forças produtivas historicamente definidas como a bagagem biológica da espécie. Não se trata de uma conjunção extrínseca, ou de uma simples superposição: o capitalismo plenamente desenvolvido implica a plena coincidência entre as forças produtivas e os dois outros tipos de realidade pré-individual (o “se percebe” e o “se fala”). O conceito de força de trabalho permite ver esta fusão perfeita: enquanto que capacidade física genérica e capacidade intelectual-lingüística de produzir, a força de trabalho é, decididamente, uma determinação histórica, mas contém em si mesma, completamente, esse ápeiron, essa natureza não individuada da qual fala, assim como o caráter impessoal da língua, que Vigotski ilustra em vários lugares. O “indivíduo social” marca a época na qual a co-habitação entre singular e pré-individual deixa de ser uma hipótese heurística, ou um pressuposto oculto, para devir fenômeno empírico, verdade lançada à superfície, estado de fato pragmático. Poder-se-ia dizer: a antropogênese, isto é, a constituição mesma do animal humano, chega a manifestar-se no plano histórico-social, devém finalmente visível, a descoberto, conhece uma sorte de revelação materialista. O que se chamam “as condições transcendentais da experiência”, em lugar de permanecerem ocultas atrás da tela, apresentam-se em primeiro plano e, o que é mais importante, devêm, também elas, objetos de experiência imediata. Uma última observação, aparentemente marginal. O “indivíduo social” incorpora as forças produtivas universais, não obstante decliná-las segundo modalidades diferenciadas e contingentes; ao contrário, está efetivamente individuado justo porque lhes dá uma configuração singular ao convertê-las em uma constelação muito especial de conhecimentos e de afetos. É por isso que, toda tentativa de circunscrever o indivíduo pela negativa, fracassa: não é a amplitude do que nele se exclui o que chega a caracterizá-lo, mas a intensidade do que converge. E não se trata de uma positividade acidental, desajustada e, finalmente, inefável (seja dito de passagem, nada é mais monótono e menos individual que o inefável). A individuação acompanha-se de especificação progressiva, assim como pela especificação excêntrica de regras e paradigmas gerais: não é o agulheiro da rede, mas o ponto em que as malhas estão mais apertadas. A propósito da singularidade não reprodutível, poder-se-ia falar de um sobre-valor de legislação. Para dizê-lo com a fraseologia da epistemologia, as leis que qualificam o individual não são nem “asserções universais” (quer dizer, válidas para todos os casos de um conjunto homogêneo de fenômenos) nem “asserções existenciais” (relações de dados empíricos fora de qualquer realidade ou de um esquema conectivo); trata-se bem mais de verdadeiras leis singulares. Leis, porque, dotadas de uma estrutura formal, compreendem virtualmente uma “espécie” inteira: singulares, enquanto regras de um só caso, não generalizáveis. As leis singulares representam o individual com a precisão e a transparência em princípio reservadas a uma classe “lógica”; mas atenção, uma classe de um só indivíduo. Chamamos multidão ao conjunto dos “indivíduos sociais”. Há uma sorte de encadeamento semântico preciso entre existência política d@s múltipl@s enquanto múltipl@s, a velha obsessão filosófica em torno do principium individuationis e a noção marxiana de “indivíduo social” (decifrada, com a ajuda de Simondon, como a mescla inextricável de singularidade contingente e de realidade pré-individual). Este encadeamento semântico permite redefinir, desde sua base, a natureza e as funções da esfera pública e da ação coletiva. Uma redefinição que põe abaixo o cânon ético-político baseado no “povo” e na soberania estática. Poder-se-ia dizer — com Marx, mas longe e em oposição a uma boa parte do marxismo — que a “substância das coisas esperadas” encontra-se no fato de conceder o máximo de relevância e de valor à existência não reprodutível de cada membro singular da espécie. Por paradoxal que isso possa parecer, a teoria de Marx deveria, hoje em dia, compreender-se como uma teoria rigorosa, quer dizer, realista e complexa, do indivíduo. Assim como uma teoria da individuação.

O coletivo da multidão

Examinemos agora a segunda tese de Simondon. Não tem precedente. Vai contra a intuição, viola as convicções mais arraigadas do sentido comum (como, quanto ao mais, é o caso de muitos outros “predicados” conceituais da multidão). Habitualmente, considera-se que o indivíduo, desde o momento em que participa de um coletivo, deve desfazer-se de algumas de suas características individuais, renunciando a certos signos distintivos que nele entremesclam-se e que são impenetráveis. Parece que no coletivo a singularidade se dilui, que é desvantagem, regressão. Pois bem, segundo Simondon, isso é uma superstição: obtusa, desde o ponto de vista epistemológico, e equívoca, desde o ponto de vista da ética. Uma superstição alimentada por quem, tratando com desenvoltura o processus de individuação, supõe que o indivíduo é um ponto de partida imediato. Se, ao contrário, admitimos que o indivíduo provém do seu oposto, quer dizer, do universal indiferenciado, o problema coletivo toma outro aspecto. Para Simondon, contrariamente ao que afirma um sentido comum disforme, a vida de grupo é o momento de uma ulterior e mais complexa individuação. Longe de ser regressiva, a singularidade burila-se e alcança seu apogeu no atuar conjuntamente, na pluralidade de vozes; em uma palavra, na esfera pública.
O coletivo não prejudica, não atenua a individuação, mas que a persegue, aumentando desmesuradamente sua potência. Essa continuação, concerne à parte da realidade pré-individual que o primeiro processo de individuação não havia logrado resolver. Simondon escreve: “Não devemos falar de tendências do indivíduo que levam-no para o grupo, já que falar dessas tendências não é falar propriamente de tendências do indivíduo enquanto indivíduo: elas são a não-resolução dos potenciais que precederam a gênese do indivíduo. O ser que precede ao indivíduo não foi individuado sem mais, não foi totalmente resolvido em indivíduo e meio [milieu]; o indivíduo conservou com ele o pré-individual, e todo o conjunto de indivíduos tem também uma espécie de fundo não estruturado a partir do qual uma nova individuação pode produzir-se.” (Simondon, 1989, p.193). E mais adiante: “Não é certo que enquanto indivíduos, os seres estejam atados uns aos outros no coletivo, mas enquanto que sujeitos, quer dizer, enquanto que seres que contêm o pré-individual.” (Simondon, 1989, p. 205). O fundamento do grupo é o elemento pré-individual (se percebe, se fala, etc.) presente em cada sujeito. Mas no grupo, a realidade pré-individual, intrincada na singularidade, individualiza-se, mostrando, por sua vez, uma particular fisionomia.
A instância do coletivo é ainda uma instância de individuação: o que está em jogo é dar uma forma contingente e impossível de confundir com o ápeiron (o indeterminado), quer dizer, com a “realidade do possível” que precede à singularidade; dar forma ao universo anônimo da percepção sensorial, ao “pensamento sem suporte” ou general intellect. O pré-individual, inamovível no interior do sujeito isolado, pode adquirir um aspecto singularizado nas ações e nas emoções d@s múltipl@s: como um violoncelista que, interatuando dentro de um quarteto com o restante dos interpretes, encontra algo de sua partitura que justo aí lhe havia escapado. Cada um(a) d@s múltipl@s personaliza (parcial e provisoriamente) sua própria componente impessoal através das vicissitudes características da experiência pública. Expor-se à consideração d@s outr@s, à ação política sem garantias, à familiaridade com o possível e com o imprevisto, à amizade e à inimizade, tudo isso alerta ao indivíduo e lhe permite, em certa medida, apropriar-se deste anônimo “on” do qual provém, para transformar o Gattungswesen, a “existência genérica da espécie”, em uma biografia absolutamente particular. Ao contrário do que sustentava Heidegger, é somente na esfera pública que podemos passar do “se” ao “si mesmo”.
A individuação de segundo grau, que Simondon chama também a “individuação coletiva” (um oxímoro próximo àquele que contém a locução “indivíduo social”), é uma peça importante para pensar de maneira adequada a democracia não representativa. Posto que o coletivo é o teatro de uma singularização acentuada da experiência, constitui-o o lugar no qual pode finalmente explicar-se o que, em uma vida humana, resulta incomensurável e impossível de reproduzir; nada disso presta-se para ser explorado e, menos ainda, “delegado”. Mas cuidado: o coletivo da multidão, enquanto que individuação do General Intellect e do fundo biológico da espécie, é exatamente o contrário de qualquer anarquismo ingênuo. Frente a ele, é bem mais o modelo da representação política, com sua vontade geral e sua “soberania popular”, o que se converte em intolerável (e às vezes feroz) simplificação. O coletivo da multidão não delega direitos ao soberano, não já que não pactue porque se trata de um coletivo de singularidades individuadas: para ele, repitamo-lo, o universal é uma premissa e não uma promessa.



Tradução para o português: Leonardo Retamoso Palma
(com base na tradução para o espanhol, realizada por Beñat Baltza [muxuilunak@sindominio.net; http://www.sindominio.net/arkitzean/multitudes/multitudes5], do texto de Paolo Virno [virno@micanet.net] escrito originalmente em francês: Multitude et principe d’individuation. Enviado por Beñat para a lista multitudes-infos [multitudes-infos@samizdat.net; da revista http://www.samizdat.net/multitudes], em 4 de fevereiro de 2002, segunda-feira, 12:33 PM.)
Texto publicado na Revista Reichiana, no. 11, 2002, p. 76-88, do Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae (SP).

* VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem (Texto integral, traduzido do russo Pensamento e linguagem). Tradução: Paulo Bezerra; São Paulo: Martins Fontes; 2000. Em 1989, a mesma editora publicou um resumo do livro de Vigotski, sob o título Pensamento e linguagem, a partir da publicação preparada por E. Hanfmann e G. Vakar para o inglês, que por muito tempo passou por ser correspondente ao texto integral de Vigotski. Justamente o capítulo 2, onde Vigotski analisa a teoria de Piaget, apresenta-se insuficientemente transposto no resumo referido. O que é mais que lamentável é o fato de que Piaget conheceu do pensamento de Vigotski apenas tal resumo, para o qual escreveu o prefácio. Do principal livro de Piaget abordado por Vigotski, A linguagem e o pensamento da criança, no Brasil só possuímos a tradução do primeiro volume[nota de L.R.Palma]