terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Toque-me, por Amauri Ferreira


Há alguns meses atrás eu andava pelo Parque da Luz, em São Paulo, numa bela tarde de sábado e, após sair do parque para entrar na Estação da Luz, ouvi um som de piano ecoar da estação. Entrei e vi pessoas ao redor de alguém que tocava o instrumento. Inevitável estranhamento: um piano dentro de uma estação ferroviária, pessoas desconhecidas ao redor de um pianista também desconhecido. Porém, a música era tão envolvente que reuniu diversos curiosos: os que estavam apenas de passagem, os que voltavam do trabalho, os que faziam qualquer outra coisa no corre-corre habitual da estação. Assim que alguém parava de tocar o piano, surpreendentemente, outra pessoa, no meio da platéia, se habilitava a tocá-lo. O nome do projeto não poderia ser mais sugestivo: "Toque-me, sou teu!". Inventado por um artista inglês que eu desconhecia, Luke Jerram, percebi que basta um instrumento musical, que funciona como uma pequena máquina desejante, instalado num lugar inusitado, para interromper o percurso habitual das pessoas, o olhar familiarizado, o corpo organizado desterritorializando-se e, cada um a seu modo, conectando-se com essa bela experiência musical. Encantado com o que vi e senti, entrei no site do projeto, www.pianosderua.com.br, e descobri que vários locais da cidade foram "invadidos" pelos pianos. No mesmo site, vi que há inúmeros pedidos para que os pianos não sejam retirados dos seus locais - pedidos estes que são reflexos de uma experiência que, por ser tão alegre, faz as pessoas esquecerem, temporariamente, as suas habituais exigências das coisas que apenas reforçam a sua escravidão (uma coisa é exigir pianos em espaços públicos, outra coisa é exigir que o treinador do time de futebol escale este ou aquele jogador). Entre os comentários, um deles me chamou a atenção: “Eu já toquei a quatro mãos duas vezes com pessoas que eu nunca vi na vida! É um momento em que você pode criar oportunidades, fazer novas amizades, conhecer gente nova, e ampliar o seu network social”. Não é necessário fazer "pirotecnia" para que haja produção de agenciamentos coletivos, que gerem um abandono, mesmo momentaneamente, dos agenciamentos gregários de poder – agenciamentos estes que reforçam a sensação de familiaridade, de segurança, de previsibilidade. É a partir disso que podemos tecer relações que nos fazem mudar de vida, de trabalho, de hábito e, dessa forma, conquistarmos o que, antes, imaginávamos que estaria perdido para sempre: a capacidade de criarmos as saídas para os impasses de uma vida organizada, mutilada, entristecida e inevitavelmente submetida às possibilidades de mudança já fornecidas pelo poder. Presos à familiarização, à representação, nem sabemos mais que a invenção não pode surgir do nada, que ela é indissociável das alianças intensivas que são criadas a partir de experiências inusitadas. E, como é evidente, por se tratar de invenção, não tem imagem, não tem exemplo para ser seguido, mas apenas risco, sempre há risco, não há vida sem risco. A vida acontece por todos os cantos e ela apenas nos provoca para participarmos da produção do inconsciente, da realidade, de inventarmos as soluções para os nossos problemas. Embora tenha sido uma experiência absolutamente diferente para muitos, podemos imaginar que essa pequena intervenção urbana deve ter mudado a vida de alguns: um convite para participar num grupo musical; o receio de tocar em público que, finalmente, não chegou a incomodar; um desejo de aprender a tocar piano; conversas e idéias que surgiram enquanto as músicas eram executadas... Eis uma ótima intervenção de ativação da produção do inconsciente em nós a partir de um objeto maravilhosamente inútil, num contexto nada familiar, mas que, pela sua potência afetiva, cria uma pequena revolução imperceptível.