terça-feira, 22 de abril de 2008

O trabalho, por Toni Negri

Há trabalho em excesso, porque todos trabalham e todos contribuem para a construção da riqueza social. Esta riqueza nasce da comunicação, da circulação e da capacidade de coordenar os esforços de cada um. Como diz Christian Marazzi (La place des chaussettes, Éditions de l'Éclat, Paris, 1997)3, a produção da riqueza é assegurada hoje por uma comunidade biopolítica (o trabalho daqueles que têm um emprego, mas também o trabalho dos estudantes, das mulheres, de todos os que contribuem para a produção da afetividade, a sensibilidade, dos modos de semiotização da subjetividade), produção da riqueza que os capitalistas comandam e organizam através da “deflação”, ou seja, a compressão de todos os custos que a cooperação produtiva e as condições sociais de sua reprodução exigem. A passagem da "inflação" (de desejos e necessidades) dos anos que se seguiram a 68 à deflação dos custos representa a transição capitalista do moderno ao pós-moderno, do fordismo ao pós-fordismo. É uma transição política no seio da qual o trabalho assalariado foi exaltado como matriz fundamental da produção das riquezas. Mas o trabalho ficou separado da sua potência política. Esta potência política vinha dos trabalhadores agrupados nas fábricas, organizados dentro de estruturas sindicais e políticas fortes. A destruição destas estruturas deixou atrás de si uma massa informe - em um olhar de fora - de proletários que se movimentam no território: um verdadeiro formigamento que produz riquezas por meio da colaboração e cooperação contínuas. De fato, se olhamos o mundo debaixo, o mundo das formigas, aí onde se desenrola nossa vida, percebemos a incrível capacidade produtiva que estes trabalhadores doravante adquiriram. Eis o inacreditável paradoxo face ao qual nos encontramos. O trabalho ainda é considerado como emprego, como trabalho "empregado" pelo capital, nas estruturas que o submetem, diretamente, à organização capitalista da produção.



[faça download do texto integral clicando aqui]

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Autopoiesis: uma definição, por Humberto Maturana

O biólogo chileno Humberto Maturana é co-criador, junto com Francisco Varela, da Autopoiesis, termo que designa os processos de funcionamento de sistemas auto-organizáveis vivos, mas que engloba também outras dimensões, como processos sociais, produção de conhecimento e inteligência artificial. Em matéria exclusiva para CIBERCULTURA, Maturana transcende as antigas discussões sobre a origem da vida na Terra e mostra o poder transformador de sua teoria.

Um dos temas centrais da biologia é caracterizar os seres vivos em termos do que eles são em si mesmos. Mas que tipo de entidade são os seres vivos? Eles podem ser caracterizados em termos puramente biológicos sem usar noções metafísicas como um princípio vital? Outro tema central tem sido o da diversidade biológica e como surge essa diversidade na história da vida na Terra. A biologia moderna diz que os seres vivos teriam surgido na Terra há mais ou menos quatro bilhões de anos. A pergunta fundamental seria em relação a esse tema: o que realmente se originou quando os seres vivos surgiram sobre a Terra? Para responder a essas perguntas, é necessário criar várias condições que, por um lado, definam o marco ou a postura conceitual a partir de onde as perguntas serão respondidas e que, por outro lado, indiquem o critério a ser utilizado para gerar as respostas e saber se as respostas propostas são ou não aceitáveis. Em 1960, quando me deparei com essas perguntas num curso de biologia que ministrava na Universidade do Chile, adotei como ponto de partida as seguintes noções básicas:

1- Os seres vivos são entidades moleculares dinâmicas discretas que existem em contínua mutação; portanto, o que se originou há quatro bilhões de anos quando os seres vivos surgiram na Terra é uma entidade desse tipo.

2- A pergunta no final do primeiro parágrafo deve ser respondida propondo uma configuração de processos moleculares que, no seu funcionamento, podem resultar no aparecimento de uma unidade discreta que, perante um observador, surge indistinguível de um ser vivo, porque seu funcionamento provoca de maneira direta ou indireta todos os fenômenos conhecidos ou desconhecidos gerados pelos seres vivos.

3- Para conhecer a configuração molecular dos seres vivos, é necessário encontrar um critério operacional que permita dizer se essa configuração de processos moleculares proposta geraria de fato entidades discretas indistinguíveis de seres vivos.

4- Esse critério operacional é a autonomia dos seres vivos. O fato de que são entidades autônomas é evidente, já que tudo o que ocorre com os seres vivos está relacionado com a conservação de seu processo de vida. Tal critério operacional exige que a configuração molecular proposta gere entidades autônomas, porque tudo o que acontece com eles e neles se refere a eles mesmos.

Que tipo de entidades são (somos) os seres vivos? São (somos) redes fechadas de produções moleculares que, em suas interações, produzem a mesma rede de produções moleculares que as produziu e determinam, com seu funcionamento, sua extensão como unidades discretas. Isto é, a resposta é que os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares, já que tudo o que acontece neles e com eles tem a ver com sua própria realização e conservação como sistemas autopoiéticos moleculares.

Dada essa resposta, as respostas às outras perguntas surgem sozinhas a partir do entender de que necessariamente a história dos seres vivos tem sido uma história de conservação da autopoiese em linhagens distintas. Estas, por sua vez, surgem como variações na forma em que a autopoiese se realiza e se conserva.

Porém, há uma última observação.

O entendimento de como ocorre a realização e a conservação da autopoiese em relação ao fenômeno do viver e do conhecer tem levado eu e Ximena Dávila, fundadora do Instituto de Formación Matríztica, a desenvolver esse entendimento num âmbito operacional básico para tudo o que fazemos durante nossas vidas, processo que denominamos de Matriz Biológica da Existência Humana. O conceito revela as condições de constituição e conservação do Humano como um tipo de ser que pode compreender e explicar seu próprio m
odo de existir.

Humberto Maturana

Corporeidades em minidesfile, por Luiz B. L. Orlandi

Resumo
O texto pretende ser apenas um instrumento para pesquisadores que se iniciam nas grandes aventuras discursivas a respeito de corpo. Nesse sentido, ele resume indicações de algumas linhas que se impuseram à reflexão filosófica ao longo da história ocidental. Refere-se, por exemplo, mas sem pressupor uma evolução teórica, ao corpo como estrito objeto de ciência, assim como ao corpo pensado como instrumento da alma. Salienta a importância da posição espinosana e nietzscheana do corpo como questão que se impõe ao pensamento. Passa brevemente pela noção fenomenológica de corpo próprio. Aponta a contribuição foucaultiana voltada ao corpo que procura saídas em meio a saberes e poderes. Finalmente, demora-se um pouco mais em alguns aspectos da idéia deleuze-guattariana de corpos sem órgãos, sublinhando sua emergência nos encontros intensivos.

Palavras-chave: Corpo como objeto, corpo como instrumento de alma, corpo como questão, corpo próprio, corpo submetido a poderes e saberes, corpo sem órgãos, encontros intensivos

Leia o texto clicando aqui. [publicado em

Unimontes Científica V.6 n.1 - Janeiro/Junho de 2004]
ISSN 1519-2571 versão impressa

terça-feira, 8 de abril de 2008

O Copyleft explicado às crianças




Para tirar de campo alguns equívocos


por Wu Ming 1

traduzido para o português por eBooksCult.com.br

'Mas se qualquer um pode copiar seus livros e fazê-lo sem comprá-los, como vocês sobrevivem?' Esta pergunta é feita freqüentemente, na maioria das vezes seguida desta observação: 'Mas o copyright é necessário, é preciso proteger o autor!'.


Este tipo de enunciado revela quanta fumaça e quanta areia a cultura dominante (baseada no princípio da propriedade) e a indústria do entretenimento conseguiram lançar nos olhos do público. Nos media e nos encéfalos campeia a ideologia confusionista em matéria de direitos autorais e de propriedade intelectual, apesar do renascer dos movimentos e as transformações em curso os estarem pondo em crise. Só aos sangue-sugas e aos parasitas de toda espécie é cômodo fazer crer que 'copyright' e 'direito autoral' são a mesma coisa, ou que a contraposição seja entre 'direito autoral' e 'pirataria'. Não é assim.

Os livros do coletivo Wu Ming são publicados com os seguintes dizeres: 'É permitida a reprodução, parcial ou total, da obra e a sua difusão por via telemática para uso pessoal dos leitores, desde que não com finalidade comercial'. Na base está o conceito de 'copyleft' inventado nos anos Oitenta pelo 'free software movement' de Richard Stallman e companhia e atualmente difundido em tantos setores da comunicação e da criatividade, da informação científica às artes.

'Copyleft' (denso jogo de palavras intraduzível em italiano*) é uma filosofia que se traduz em vários tipos de licenças comerciais, a primeira das quais foi a GPL [GNU Public License] do software livre, nascida para proteger este último e impedir que qualquer um (Microsoft, para mencionar um nome ao acaso) se apossasse, privatizando-os, dos resultados do trabalho da livre comunidade dos usuários (para quem não o sabe, o software livre tem o 'código-fonte aberto', o que o torna potencialmente controlável, modificável e aprimorável pelo usuário, sozinho ou em colaboração com outros).

Se o software livre tivesse permanecido simplesmente em domínio público, cedo ou tarde os rapaces da indústria o teriam colocado sob suas garras. A solução foi virar o copyright pelo avesso, para trasformá-lo de obstáculo à livre reprodução em suprema garantia desta última. Em poucas palavras: ponho o copyright, uma vez que sou proprietário desta obra, portanto aproveito deste poder para dizer que com esta obra você pode fazer o que quiser, pode copiá-la, difundi-la, modificá-la, mas não pode impedir outro de fazê-lo, isto é não pode apropriar-se dela e impedir sua circulação, não pode colocar nela um copyright seu, porque ela já tem um, me pertence, e eu te enrabo.

Concretamente: um cidadão comum, se não tem o dinheiro para comprar um livro do Wu Ming ou não o quer comprar às escuras, pode tranqüilamente fotocopiá-lo ou passá-lo por um scanner com software OCR, ou - solução muito mais cômoda - pegá-lo grátis do nosso sítio www.wumingfoundation.com. Esta reprodução não é visando lucro, e nós a autorizamos. Se em vez disso um editor estrangeiro quer fazê-lo traduzir e comercializá-lo em seu país, ou se um produtor cinematográfico quer fazer dele roteiro de um filme, neste caso a utilização visa lucro, portanto estes senhores deverão pagar (porque é justo que 'lucremos' nós também, já que nós é que escrevemos o livro).

Voltanto à pergunta inicial: mas não perdemos dinheiro com isso?

A resposta é um seco não. Cada vez mais experiências editoriais demostram que a lógica 'cópia pirateada = cópia não vendida' de lógico não tem mesmo nada. De outro modo não se compreenderia como pôde o nosso romance Q, disponível grátis há mais de três anos, ter chegado à duodécima edição e superado duzentas mil cópias vendidas.

Em realidade, editorialmente, quanto mais um obra circula, mais vende. Exemplos dignos de respeito nos vêm dos USA - que seguramente são um país obsessionado pela propriedade intelectual - e foram expostos com cristalina precisão pelo meu colega Wu Ming 2 em um artigo que você pode ler aqui: http://www.wumingfoundation.com/ italiano/ Giap/ giap2_IV.html #copyright1

Mesmo sem incomodar o Massachussetts Institute of Technology, basta trocar em miúdos o que acontece com nossos livros: um usuário X se conecta ao nosso sítio e pega, digamos, 54; faz isso do escritório ou da universidade, e quando imprime, não gasta um centavo; lê e gosta; gosta tanto que decide dá-lo de presente, e não pode fazer o papelão de dar de presente uma resma de papel A4! Por isso, vai a uma livraria e compra. Uma cópia 'pirateada' = uma cópia vendida. Há quem tenha pego um livro nosso e, depois de lê-lo, o deu de presente pelo menos seis ou sete vezes. Uma cópia 'piratata' = mais cópias vendidas. Mesmo quem não dá o livro de presente, porque está sem dinheiro, como gostou do livro, fala dele por aí e cedo ou tarde alguém o comprará ou fará como foi descrito acima (download-leitura-compra-presente). Se alguém não gostar do livro, pelo menos não terá gasto um tostão.

Deste modo, como acontece com o software livre e com o Open Source, concilia-se a exigência de uma justa compensação pelo trabalho desenvolvido por um autor (ou mais genericamente de um trabalhador do conhecimento) com a proteção da reproductibilidade da obra (isto é do seu uso social). Exalta-se o direito autoral deprimindo o copyright, na cara dos que crêem que são a mesma coisa.

Se a maioria dos editores não se apercebeu ainda desta realidade e ainda é convervadora em matéria de copyright, é por questão mais ideológica que mercantil, mas acreditamos que não tardarão a acordar. A editoração não está em risco de extinção como a indústria fonográfica: a lógica é outra, outros os suportes, outros os circuitos, outro o modo de fruição, e sobretudo a editoração não perdeu ainda a cabeça, não reagiu com retaliações em massa, denúncias e processos à grande revolução tecnológica que 'democratiza' o acesso aos meios de reprodução. Há alguns anos uma masterização de cd só a tinha à disposição uma gravadora, hoje a temos em casa, em nosso computador pessoal. Para não falar do peer-to-peer etc. Esta é uma mudança irreversível, frente à qual toda a legislação sobre propriedade intelectual se torna obsoleta, vai em putrefação.

Quando o copyright foi introduzido, há três séculos, não existia nenhuma possibilidade de 'cópia privada' ou de 'reprodução sem fins de lucro', porque só um editor concorrente tinha acesso às máquinas tipográficas. Todos os demais só podiam ficar quietinhos e, se não podiam comprá-los, simplesmente renunciar aos livros. O copyright não era percebido como anti-social, era a arma de um empresário contra um outro, não de um empresário contra o público. Hoje a situação está drasticamente mudada, o público não está mais obrigado a ficar quietinho, tem acesso ao maquinário (computador, fotocopiadoras etc.) e o copyright é uma arma que dispara na multidão.

Haveria ainda um outro assunto a tratar, muito mais importante: partimos do reconhecimento da gênese social do saber. Ninguém tem idéias que não tenham sido direta ou indiretamente influenciadas por suas relações sociais, pela comunidade de que faz parte etc. e então se a gênese é social também o uso deve permancer tal qual. Mas este é um assunto muito longo. Espero ter me explicado bem. Para esclarecimentos ulteriores: giap@wumingfoundation.com

(*)'Left (esquerda) pode se contrapor a right: direita, mas também direito. Copyright seria, a uma só vez, direito de copiar, mas também cópia de direita. Ainda mais, left pode ser o passado de leave (deixar), significando cópia deixada, no sentido de deixar copiar. Estes sentidos escapam também em português, não apenas em italiano. Esses jogos de palavras, sintéticos, são interessantes e, muitas vezes, exprimem melhor o pensamento do que complexas expressões lineares. Nesta tradução, por exemplo, fui muito (muito mesmo!) tentado a traduzir 'espiegato ai bambini' por 'explicado aos miúdos', trocadilhando com nossa língua comum, nem tão comum, de lusitanos e portugueses d'aquém-mar:) - [NT]

Extraído do 'Booklet' inserido na revista 'Il Mucchio Selvaggio', n. 526, de 25 a 31 março 2003.

Disponível no site do Wu Ming:

http://www.wumingfoundation.com/italiano/outtakes/paracriancas.html

Omnia sunt communia

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Cinco Resenhas sobre Mil Platôs de Deleuze e Guattari

por François Ewald
O que é Mil platôs? Como se organiza? Como um tratado de filosofia, após a ruptura, quando o filósofo, o grande nômade, resolveu desertar a filosofia dos códigos, dos territórios e dos Estados, a filosofia do comentário. Mil platôs é um grande livro, porque com ele a filosofia alcança um de seus devires improváveis. Mil platôs desenvolve uma filosofia verdadeira, quer dizer nova, inaugural, inédita. Duas grandes filosofias jamais se assemelham; pois elas jamais são da mesma família. [cont.]


por Antonio Negri

Dizem que não existe livro que traduza 68: isso é falso! Esse livro é Mil platôs. Mil platôs é o materialismo histórico em ato de nossa época. Contrastando radicalmente com certa deriva atual, os Mil platôs reinventam as ciências do espírito (deixando bem claro que, na tradição em que se situam Deleuze e Guattari, geist é o cérebro), renovando o ponto de vista da historicidade, em sua dimensão ontológica e constitutiva. [cont.]

por Jean Clet Martin
Mil platôs, esse livro plural, não é um tratado de metafísica ou um simples ensaio de história das idéias. É, antes, um livro de magia, uma alquimia preciosa em que cada fórmula traça a cifra de uma metamorfose. [cont.]

por Peter Pál Pelbart
Mil platôs é o prolongamento de uma aposta iniciada em O anti-Édipo. Mais do que um acerto de contas com a conturbada década dos 60 e o freudo-marxismo que parecia animá-la, este era, segundo a bela definição de Michel Foucault, uma "introdução à vida não-fascista". Ou seja, um livro de ética. Foucault resumia as linhas de força daquele "guia da vida cotidiana": liberar a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante; alastrar a ação, o pensamento e o desejo por proliferação e disjunção (e não por hierarquização piramidal); liberar-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta), investindo o positivo, o múltiplo, o nômade; desvincular a militância da tristeza (o desejo pode ser revolucionário); liberar a prática política da noção de Verdade; recusar o indivíduo como fundamento para reivindicações políticas (o próprio indivíduo é um produto do poder) etc. [cont.]

por Michael Hardt
Mil platôs é o mais profundo trabalho político de Deleuze e Guattari. A primeira vista, ele parece, na verdade, um guia claro, pronto a responder a questões de avaliação e ação políticas. Deleuze e Guattari apresentam incessantemente dicotomias no campo social e político: o Estado e a máquina de guerra, o sedentário e o nômade, territorialização e desterritorialização, o estriado e o liso, e assim por diante. As distinções parecem proliferar infinitamente, mas todas elas giram em torno de um único eixo. [cont.]

[Leia as resenhas críticas na integra]

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Entrevista de Carlos Castañeda em 1972


"Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações. Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível muito baixo".
A seguir, trechos da entrevista para a revista Psychology Today, em 1972.

T
radução de Miguel Duclós



Sam Keen:
Como eu acompanhei Don Juan através de seus três livros, suspeitei, às vezes, que ele era uma criação de Carlos Castaneda. Ele é quase bom demais para ser verdade . Um índio velho e sábio cujo conhecimento da natureza humana é superior ao de quase todo mundo.

Carlos Castañeda:
A idéia de que eu forjei uma pessoa como Don Juan não é convincente. Ele dificilmente seria o tipo de figura que minha tradição intelectual européia levaria a conceber. A verdade é sempre algo muito estranho. Eu não estava sequer preparado para fazer as mudanças na minha vida que a minha associação com Don Juan requisitou.

Sam Keen:
Algumas das técnicas que os feiticeiros usam é amplamente usada também por outros grupos secretos. As pessoas às vezes usam os sonhos para encontrar objetos perdidos, e vão para jornadas fora-do-corpo durante seu sono. Mas quando você diz como Don Juan e seu amigo Don Genaro fizeram o carro desaparecer durante a plena luz do dia, eu poderia apenas coçar a cabeça. Eu sei que um hipnotista pode criar a ilusão de presença ou ausência de um objeto. Você acredita que foi hipnotizado?

Carlos Castañeda:
Talvez, alguma coisa deste tipo. Mas temos que começar por perceber, como diz Don Juan, que existe muito mais no universo do que normalmente confessamos conhecer. Nossas expectativas usuais acerca da realidade são criadas por um consenso social. Nos ensinam como ver e perceber o mundo. A truque da socialização consiste em nos convencer que as descrições que estamos de acordo definem os limites do mundo real. O que chamamos de realidade é apenas um modo de ver o mundo, um modo que é sustentando pelo consenso social.

Sam Keen:
Então um feiticeiro, como um hipnólogo, cria um mundo alternativo construindo diferentes expectativas e fornecendo pistas premeditadas para produzir um consenso social.

Carlos Castañeda:
Exatamente. Eu comecei a entender feitiçaria nos termos da idéia de .interpretação. [glosses] de Talcott Parsons. Uma interpretação [gloss] é um sistema completo de percepção e linguagem. Por exemplo, esta sala e é uma interpretação. Nós reunimos juntos uma série de percepções isoladas . chão, teto, janela, luzes, tapete, etc . para compor uma totalidade. Mas nós temos que ser ensinados a dispor o mundo junto desta forma. Uma criança experimenta o mundo com poucos pré-conceitos até que é ensinada a vê-lo de uma forma que corresponde à descrição que todos compartilham. O sistema de interpretações parece um pouco com caminhar. Nós temos que aprender a caminhar, mas uma vez que aprendemos ficamos sujeitos à sintaxe da linguagem e ao modo de percepção que ela contém.

Sam Keen:
Wittgenstein é um dos poucos filósofos que poderia ter entendido Don Juan. Sua noção de que existem muitos tipos diferentes de jogos de linguagem . ciência, política, poesia, religião, metafísica, cada um com sua própria sintaxe e regras . poderia ter permitido a ele entender a feitiçaria como um sistema alternativo de percepção e entendimento.

Carlos Castañeda:
Mas Don Juan pensa que o que ele chama de .ver. é apreender o mundo sem nenhuma interpretação. Este é o fim almejado pela feitiçaria. Para quebrar a certeza do mundo que sempre lhe foi ensinado, você deve aprender uma nova descrição do mundo . feitiçaria . e então manter a velha e a nova juntas. Então você percebe que nenhuma das duas é final. No momento que você desliza entre as descrições; você para o mundo e vê. Você é deixado com o assombro, o verdadeiro assombro de ver o mundo sem nenhuma interpretação.

Sam Keen:
Existe uma realidade normal que nós, ocidentais, pensamos que é o único mundo, e existe também a realidade a parte do feiticeiro. Quais as diferenças essenciais entre elas?

Carlos Castañeda:
Na sociedade européia o mundo é construído em grande parte pelo que os olhos informam à mente. Na feitiçaria o corpo todo é usado como percipiente. Como europeus vemos o mundo ao redor de nós e falamos sobre ele. Nós estamos aqui e o mundo está lá. Os nossos olhos alimentam a razão e não temos conhecimento direto das coisas. De acordo com a feitiçaria esta sobrecarga dos olhos é desnecessária.
Nós percebemos com o corpo total.

Sam Keen:
Ocidentais partem do pressuposto que sujeito e objeto são separados. Nós existimos a parte do mundo e temos de cruzar o vácuo para chegar até ele. Para Don Juan e a tradição dos feiticeiros, o corpo já está no mundo. Nós estamos unidos ao mundo, e não alienados dele.

Carlos Castañeda:
Isso mesmo. A feitiçaria tem uma teoria diferente de personificação. O problema da feitiçaria é o de harmonizar e arrumar seu corpo para ser um bom receptor. Os europeus lidam com seus corpos como se eles fossem um objeto. Nós os enchemos de álcool, comida ruim e inquietações. Se alguma coisa está errada nós pensamos que germes de fora invadiram o corpo e então importamos algum medicamento para curá-lo. A doença não é parte de nós. Don Juan não acreditava nisso. Para ele a doença é a desarmonia entre um homem e seu mundo. O corpo é consciente e deve ser tratado impecavelmente.

Sam Keen:
Isto parece similar à idéia de Norman O. Brown's onde as crianças, esquizofrênicos e aqueles com loucura divina da consciência dionisíaca estão cientes das coisas e das outras pessoas como extensões de seu corpo. Don Juan sugere algo do tipo quando diz que os homens de conhecimento têm fibras de luz que conectam seu plexo solar ao mundo.

Carlos Castañeda:
Minha conversa com o coiote é um bom exemplo das diferentes teorias de personificação. Quando ele chegou para mim eu disse: Olá, pequeno coiote. Como você está? E ele respondeu de volta: Estou bem. E você?... Aqui eu não escutei as palavras da forma normal.
Mas meu corpo sabia que o coiote estava dizendo alguma coisa e eu traduzi isto em um diálogo. Como um intelectual, minha relação com o diálogo é tão profunda que meu corpo automaticamente transpôs para palavras o sentimento que o animal estava comunicando a mim. Nós sempre vemos o desconhecido nos termos do conhecido.

Sam Keen:
Quando você estava no modo mágico de consciência onde os coiotes falam e tudo é adequado e entendido parece que o mundo todo está vivo e o ser humano está em comunicações que incluem animais e plantas. Se abandonarmos nossas concepções arrogantes de que somos a única forma de vida que conhece e comunica talvez conseguíssemos perceber toda a sorte de coisas se comunicando conosco. John Lilly falava com os golfinhos. Talvez nos sentíssemos menos alienados se pudéssemos acreditar que não somos a única forma inteligente de vida.

Sam Keen:
Os índios americanos tem crenças similares sobre os animais que eles matam. Se você não agradece o animal por dar a vida para que você possa viver, seu espírito pode lhe causar problemas.

Carlos Castañeda:
Nós temos uma associação com toda forma de vida. Alguma coisa se altera toda vez que machucamos a vida vegetal ou animal. Nós tiramos a vida para sobreviver mas devemos querer abrir mão de nossa própria vida sem ressentimentos quando chegar nossa vez. Nós somos tão importantes e nos levamos tão a sério que esquecemos que o mundo é um grande mistério que pode nos ensinar se escutarmos.

Sam Keen:
Talvez as drogas psicodélicas momentaneamente limpem o ego isolado e permitam uma fusão mítica com a natureza. A maior parte das culturas que conservam um senso de união entre o homem e a natureza também fez uso cerimonial das drogas psicodélicas. Você estava usando peiote quando falou com o coiote?

Carlos Castañeda:
Não, de maneira alguma.

Sam Keen:
Esta experiência foi mais intensa das que teve quando Don Juan lhe ministrou plantas psicotrópicas?

Carlos Castañeda:
Muito mais intensa. Todas as vezes que eu tomei plantas psicotrópicas eu sabia que havia ingerido algo e sempre podia questionar-me acerca da validade das minhas experiências. Mas quando o coiote falou comigo eu não tinha desculpas. Não podia explicar isso. Eu realmente parei o mundo e, saí completamente do meu sistema de interpretações europeu.

Sam Keen:
Em seu livro mais recente, Viagem a Ixtlan, você revê a impressão dada nos primeiros livros de que o uso de plantas psicotrópicas era o método principal usado por Don Juan no intuito de ensiná-lo sobre a feitiçaria. Como você vê agora o lugar dos psicotrópicos em seus ensinamentos?

Carlos Castañeda:
Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações. Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível muito baixo.

Sam Keen:
Don Juan usa drogas psicotrópicas regularmente para parar o mundo?

Carlos Castañeda:
Não. Ele pode agora mesmo pará-lo com a sua vontade. Ele me disse que para mim a tentativa de ver sem a ajuda das plantas seria inútil. Mas se eu me comportasse como um guerreiro e assumisse a responsabilidade não precisaria delas; elas apenas enfraqueceriam meu corpo.

Sam Keen:
Isso pode soar um pouco chocante para vários admiradores seus. Você é uma espécie de santo patrono da revolução psicodélica.

Carlos Castañeda:
Eu tenho seguidores e eles têm idéias estranhas a respeito de mim. Eu estava andando para dar uma palestra no Califórnia State, em Long Beach, outro dia e um rapaz que me conhecia me apontou para uma garota e disse .Ei, esse é o Castaneda.. Ela não acreditou nele porque tinha a idéia de que eu deveria parecer muito sobrenatural. Um amigo estava reunindo algumas das histórias que circulavam sobre mim. O consenso era que eu havia feito uma façanha mística.

Sam Keen:
Façanha mística?

Carlos Castañeda:
Sim, que eu andava de pés descalços como Jesus e não tinha calos. As pessoas acham que devo estar doidão a maior parte do tempo. Eu também cometi suicídio e morri em vários lugares diferentes. Um colega de departamento quase fez um escândalo quando eu comecei a falar sobre fenomenologia e sociedade e explorar o conceito de percepção e socialização. Eles queriam que eu falasse pausadamente, os deixasse altos e fizesse suas cabeças. Mas para mim o entendimento é importante.

A entrevista completa pode ser lida em http://www.conscien cia.org/castaned a/caspsychology. html
A entrevista completa para a revista Veja, em 1975, pode ser lida em http://www.conscien cia.org/castaned a/casvista. html