quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Ressentimento, por Amauri Ferreira

O ressentido volta-se para o seu passado e, ao mergulhar nele, mais objeções encontra contra si e contra o devir do mundo. Se fosse possível, ele desejaria teria feito outras escolhas, talvez não ter se calado, talvez ter enfrentado alguns riscos e incertezas, talvez não ter feito isso e aquilo. Desejaria, até, ter sido outra pessoa – mas como imagina que o seu passado é impossível de ser alterado, resta-lhe olhar para o seu futuro, para o futuro do mundo, e a resposta para a pergunta “Para aonde vai a existência?” parece-lhe teimosamente escapar. “Haverá um futuro melhor do que o triste e injusto presente?”, insiste ele. A dor por não viver de acordo com o seu desejo é, de fato, a sua maior objeção contra o mundo. Seu cansaço crescente, a obrigação de cumprir os desejos dos outros, a vida que não pára de passar, a sucessão dos acontecimentos que são desfavoráveis ao seu desejo, as ruminações das impressões que servem para alimentar o seu ódio à vida, o ódio às supostas causas dos seus males, tudo isso lhe faz imaginar que o mundo, sua realidade inalterável, nada mais é do que repressão. Cansado também de si mesmo, da inutilidade do seu ódio, o ressentido imagina que sua luta pela vida, isto é, sua busca pela felicidade permanente, é algo que parece ser impossível de ser alcançado. Afinal, ele se dá conta de que as forças da vida excedem o seu desejo – como isso o atormenta, percebe que a vitória sobre o acaso é apenas uma quimera, uma ficção, um engodo. Resta resignar-se com o sentido imposto do exterior, tornando-se cúmplice da ordem moral que se alimenta do seu sangue, que, através dos entorpecentes, faz livrá-lo momentaneamente do terrível sentimento do nada, mas que também o ameaça, castiga, produz medo. Portanto, as relações de poder não se explicam pela famigerada noção de luta de classes. Elas se constituem por indivíduos que não agem, que padecem, que sofrem com o que lhes acontece, e que por isso são movidos por vingança, por vontade de corrigir os homens, de corrigir o mundo. Em razão do ressentimento, é estabelecida uma dependência mútua entre o senhor e os seus servos, de modo que os servos dizem para si mesmos: “Não conseguiríamos viver sem o rei!”; e o rei, da mesma forma, diz para si: “Não conseguiria viver sem os meus súditos!”. Impotente, o ressentido quer uma pequena felicidade, uma pequena ocasião para ser invejado, algum elogio, algum reconhecimento, algum sucesso, alguma fama – e isso tudo ele recebe, sem dúvida, desde que seja submisso ao poder. Mas o homem de poder, por ser ressentido, também é servo daqueles que o servem: como também quer ser invejado, bajulado, reconhecido, é inevitável que dependa de quem se submete para satisfazê-lo. Então, todos servem, os impotentes e ressentidos lutam por sua própria servidão, antes a servidão, antes uma migalha de prazer, do que viver de outro modo, onde haja algum risco, alguma imprevisibilidade, alguma criação. Eles querem, ou melhor, necessitam do poder econômico, da acumulação de bens materiais, de bens culturais (de uma suposta "sabedoria"), para que a sua miséria existencial seja disfarçada. Querem dinheiro, muito dinheiro, para serem admirados, invejados, para se sentirem distintos, superiores, senhores de alguma coisa. Portanto, o capitalismo não é nada misterioso, pois ele é apenas sintoma da necessidade dos ressentidos esconderem, até de si mesmos, o seu sofrimento. É possível perceber que não há, de fato, oposição entre “ricos” e “pobres” : enquanto os indivíduos são ressentidos, permanecem de mãos dadas para a reprodução de tudo aquilo que envenena a vida humana... Ah, e como eles olham com ódio quando se sentem “incultos” e “medíocres” diante de alguém forte, exuberante, alegre e livre do ressentimento! Mas é inevitável que a mediocridade do ressentido – que faz até ele se sentir incomodado – leva-o a tentar algum destaque numa atividade que não seja a do “trabalho-pelo-lucro”: essa é a razão que o leva a tentar desesperadamente algum sucesso (leia-se: alguma admiração, alguma inveja...) na música, na literatura, nas artes plásticas. Mas como ele luta contra o tempo, a superficialidade da sua “atividade artística” apenas denuncia a sua esterilidade, fruto de sua péssima alimentação das sensações e do tempo. E a política dos ressentidos modernos é para rir: sua democracia representativa é pura distração, circo, passatempo, ferramenta de poder – o próprio ressentido percebe cada vez mais que ela não pode ser levada a sério. A democracia serve para desviar o olhar de si mesmo e, dessa forma, reforçar os afetos de rancor que multiplicam as exigências de que alguém (o que habitualmente se chama de “político”) deve resolver os problemas do mundo. E quais são os problemas do “mundo”? Certamente são os que ameaçam a sua tranqüilidade, a sua pequena felicidade, em suma, o seu mundo privatizado... “Um mundo sem dor, por favor!”. Mas tudo se decide aqui: a dor, para o ressentido, é sempre o começo do seu fim, enquanto para quem é sadio, é apenas o começo da sua liberdade de agir. Mas isso é dizer que, enquanto o ressentido nega a vida, odeia a vida, o outro, o criador, afirma a vida, ama a vida. Mas isso é também dizer que, enquanto o ressentido olha para o seu passado com um olhar de reprovação, o homem afirmador não apenas olha para o seu passado, mas também se diverte, brinca, se alegra com ele, faz alguma coisa realmente grande com ele. Mas isso tudo é, enfim, dizer que, enquanto o ressentido entrega o seu destino nas mãos de um parasita, que promete livrá-lo do “mal”, o homem sadio recusa essa submissão e assume a responsabilidade pelo seu próprio destino – ele não foge, não precisa fugir da vida, porque sabe que não há nada fora da vida.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Clínica, indeterminação e biopoder, por Auterives Maciel

No mundo atual, vivemos, de maneira cada vez mais acentuada, a impossibilidade de fazer agenciamentos desejantes. O tempo indispensável para que um desejo se efetue, tempo esse inseparável das experimentações e dos agenciamentos, encontra-se cada vez mais anulado, ou melhor, controlado pelos mecanismos de poder que se exercem não apenas sobre a nossa subjetividade, mas também sobre a nossa própria condição vivente. É bem verdade que o controle do tempo sempre foi uma das preocupações do poder. Segundo Foucault (1979), nas sociedades disciplinares o poder não só ordenava, como também compunha com o tempo a ação do indivíduo. Porém controlar o tempo, impingir um ritmo à subjetividade, eliminar o intervalo temporal existente entre o momento de perceber e o momento de agir, subtraindo do indivíduo a indeterminação indispensável para que ele possa agir criativamente, é um traço acentuado da nossa sociedade. Seguindo Foucault, podemos dizer que o poder que se exerce com tal intuito tem como objeto a vida, o controle do tempo da vida, da indeterminação que acompanha o viver. Ao desenvolver a tese foucaultiana, Gilles Deleuze (1990) denominou sociedade de controle o tipo de ordenamento político-social em que o poder toma a forma de um biopoder, incidindo diretamente sobre as potencialidades da vida – como a sexualidade, a geração de filhos, a saúde etc. Exatamente as dimensões que até então eram consideradas íntimas, aquelas que se referiam à decisão privada dos indivíduos, têm agora o seu campo de possíveis explicitado e controlado, desaparecendo a distinção entre vida pública e vida privada, e mesmo entre a vida subjetiva e o simples viver.
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