quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Ressentimento: veneno do espírito, por Spartaco Vizzoto

Imaginemos um indivíduo de poucos recursos quanto à força física, que seja agredido por um outro incomparavelmente mais forte. Sua reação imediata, instantânea, consistirá em um impulso de contra-ataque, que no entanto será refreado e recalcado em virtude de uma emoção – o medo que superou a ira inicial. Esta, porém, não desaparece. A contra-reação é adiada para um momento e situação mais favoráveis, nascendo assim um novo sentimento, o de vingança, caracterizado pelo deslocamento no tempo e no espaço da satisfação de um impulso agressivo. Essa energia psíquica em estado de latência pode libertar-se de várias maneiras: pela realização da vingança, através da agressão física e moral (insulto, calúnia, maledicência) ou pelo desprezo (se o agredido se considera de categoria individual ou social muito superior à de agressor). Na impossibilidade de tomar qualquer dessas atitudes, por debilidade física ou moral ou por imperativos circunstanciais insuperáveis, surge um angustioso sentimento de impotência, que imprime à personalidade características especiais – ela está envenenada pelo ressentimento, que a corrói nas suas funções mais nobres, degradando-a aos níveis morais mais inferiores. A intensidade desse fenômeno é particularmente grande quando ligado a um sentimento místico de direito e de dever. É o caso de um selvagem a quem se negou o “direito” a uma vingança de sangue e que se consumiu até morrer.
O ressentido sente e ressente milhares de vezes a mesma sensação de fraqueza, de frustração de seus desejos de represália. Traduz em todos seus atos e atitudes a ação maléfica dessa paixão: torna-se azedo, amargurado, seus juízes são pérfidos. É um detrator sistemático de todos os valores individuais ou sociais, numa tentativa ilusória de aliviar a sua tensão emotiva. É incapaz de um gesto de gratidão, pois transforma os favores que lhe fazem em material para seu ressentimento. “Senti desde muito cedo a penosa escravidão de agradecimento”, escreveu Robespierre, um grande ressentido.
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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Alegria de Segundo Plano ou Alegria Acontecimento, por Bruno Vasconcelos

Resumo:
O presente trabalho é uma versão modificada do texto base utilizado para apresentação da dissertação de mestrado intitulada Cartografias da Alegria na Clínica e na Literatura, defendida em maio de 2005, na PUC de São Paulo. Nele percorro alguns dos problemas que desembocaram na escrita da dissertação. Casos clínicos e contos literários deram ensejo a uma problematização da clínica enquanto espaço de metamorfose das sensações em vibrações intensivas, enquanto espaço aberto ao tempo, enquanto espaço expressivo – tomando a alegria como potência, e por fim, enquanto espaço e duração de dor e sofrimento. No plano teórico, os pensamentos de Nietzsche, Espinosa, Deleuze e Blanchot, alimentaram a escrita e forçaram o autor a buscar pontos de conexões e transversalidades, linhas de fuga e devires, no esforço de construir um texto que desse conta da alegria. Tomar a clínica como produção de subjetividades em meio ao encontro com o intolerável e o trágico, levando o pensamento a paragens antes desconhecidas. Este trabalho sinaliza a existência de um modo subterrâneo percorrendo a produção da escrita, no encontro intensivo com aquilo que não sabemos nomear.

Palavras-chave: alegria; clínica; literatura.

Se, antes de tratar nosso tema detidamente, disséssemos, gracejando, que todos os seres desejam contemplar e voltam-se a esse fim, tanto os racionais quanto os irracionais, e ainda as plantas e a terra que as engendra, e que todos estes seres chegam a esse fim enquanto são capazes, de acordo com sua natureza, mas que eles contemplam cada um a seu modo e alcançam algumas vezes a realidade e outras vezes uma imitação e uma imagem da realidade, poderia alguém suportar tal paradoxo de nosso discurso? Porém, estamos em família e não corremos perigo de adular-nos a nós mesmos. É verdade que, de pronto, nós contemplamos no momento presente, enquanto nos entretemos? E certo que nós contemplamos, como todos aqueles que se divertem; divertimo-nos porque desejamos contemplar; e tanto as crianças quanto os adultos, brinquem ou estejam sérios, parecem não ter outro fim que a contemplação. Todas as ações tendem à contemplação: sejam as ações necessárias, que dirigem principalmente nossa contemplação em direção às coisas exteriores, sejam as ações voluntárias (livres), que as dirigem menos em direção ao exterior, não tendo outro móvel que a contemplação.
Porém, de tudo isto trataremos depois. Falemos agora da terra, das árvores e das plantas. Digamos qual seja sua contemplação e como podemos reduzir as coisas produzidas pela terra e saídas dela à sua atividade contemplativa; como a natureza, que se diz carecer de fantasia e de razão, possui em si contemplação e o que faz o produz pela contemplação que (segundo alguns dizem) ela não possui. (
Plotino, citado por Quiles, 1981, pp. 65-66)


A produção de uma dissertação de mestrado constitui um percurso árduo e curioso. No início da escrita de meu trabalho não tinha a menor idéia de como ele terminaria, suas idas e vindas, os modos e maneiras como o texto se fazia, seus excessos, os momentos de secura, o intenso desejo de escrever, e também sua ausência. Há uma alegria de segundo plano que corre pela dissertação. Uma alegria estranha, um puro sofrimento a convocar distintas maneiras de expressão.
Em um mesmo plano de composição, tornou-se possível produzir aproximações de campos distintos, através de uma abordagem paratática, no circuito clínica/literatura/pensamento. Distante ficou a imagem idealizada de uma dissertação de mestrado nos moldes de um academicismo restrito, improdutivo, pouco alegre. Ao fim da viagem, o trabalho apresentado à banca em maio de 2005, intitulado Cartografias da Alegria na Clínica e na Literatura, fez-se de uma maneira insólita e inédita. Fez-se como um exercício de criação, uma linha de fuga, um exercício de aprendizagem em devir.
Um segundo plano salta dos fragmentos clínicos e dos contos literários narrados ao longo do texto, um segundo plano que aos poucos foi se apagando, para ficar o registro escrito, capítulos, páginas, parágrafos, linhas. De memória evoco um verso do poeta Murilo Mendes a dizer: Como são fundamentais / Estes sofrimentos de segundo plano! (Mendes, 1994, p. 543). Penso que poderia brincar com o poeta, dizer de outra maneira, como são fundamentais estas alegrias de segundo plano!


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Bruno Vasconcelos de Almeida é Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Professor da PUC Minas, Instituto de Psicologia da PUC Minas. E-mail: brunovasconcelos@pucminas.br

História, Memória e Esquecimento, por Bruno Vasconcelos

Em dois mil e oito, o ministro da justiça da época – Tarso Genro, e o então presidente do Superior Tribunal Federal – Gilmar Mendes, entraram em polêmica acerca da punição das pessoas envolvidas com a tortura durante a ditadura militar. Eis que das sombras, em jornal televisivo do maior grupo de comunicação do país, surgiu a figura de Jarbas Passarinho, ministro de três dos governos do referido ciclo. Indagado sobre a polêmica, Passarinho recordou seu último chefe. Ele, João Batista Figueiredo, ‘não queria justiça, queria o esquecimento’. Frase dita, segundo o ex-ministro, no apagar das luzes do regime.
Não querer justiça, mas o esquecimento, supondo que tal frase tenha sido dita desta maneira, nos empurra para uma bela confusão. Misto de truculência com ignorância, o general que adorava cavalos também afirmou, e cito de memória, que o brasileiro não sabe, ou não sabia usar o mictório. Curiosamente o pedido tem sido atendido. Apesar de inúmeras teses, dissertações, livros e relatos, a lembrança ou o conhecimento da história recente do país não são generalizados na população e permanecem restritos aos envolvidos e à uma pequena parcela de brasileiros.
Atrelados até o pescoço à lógica de um capitalismo que renova o consumo a cada instante, temos uma juventude que desconhece a história de seus pais. Entre historiadores encontramos a constatação de uma memória seletiva oriunda das dinâmicas das relações de poder na cena social do contemporâneo. Alguns grupos que chegaram ao comando, compostos majoritariamente daqueles que estiveram no exílio, predominaram sobre outros de quê pouco se fala, e apenas o silêncio a recobrir a dor de seus próximos. [cont.]
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Bruno Vasconcelos de Almeida é Doutor em Psicologia Clínica (PUC/SP), Psicólogo, Acompanhante Terapêutico e Professor da PUC Minas