sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Sobre subjetividade e mídia, por Valter A. Rodrigues


A partir do momento em que o princípio único da globalização cultural e econômica instaurou-se nos discursos como “verdade irreversível” a apontar para o triunfo final do modo de vida ocidental sobre as demais formas de organização e gestão da existência (“dissolução das fronteiras”, “fim da história”, anunciou-se), desenhou-se mais e mais fortemente uma tendência de se fornecer explicações, o mais rápida e simplificadamente possível, sobre o que causa o homem, suas ações, seus comportamentos, seus desejos. Aparentemente, chegamos a um momento da história em que nada deve ou pode permanecer obscuro por muito tempo a respeito do homem e suas motivações. Presentações da variabilidade do mundo e discursos sobre essas presentações aspiram a uma visibilidade ampla e absolutamente nova, se pensarmos este momento em confronto com o passado recente. Assim, na sociedade da informação e da demanda ansiosa de saber, o que quer que surja, um comportamento ou um traço incomum e singular, uma nova doença, um novo fenômeno, uma nova forma de sociabilidade, multidões de vozes, especialistas ou não, são convocadas a formular suas explicações e demonstrações e propor definições e soluções práticas, com discursos que procuram nos assegurar que a ciência e a razão só fazem iluminar o presente e lançar luzes para o futuro. Para a produção dessa luz, as pesquisas avançam, sem poupar esforços, procurando soluções de problemas até recentemente considerados irresolúveis. As tecnologias informáticas, as ciências biológicas, as neurociências, as pesquisas genéticas – que criam a possibilidade de se interferir nas cadeias do DNA e alterá-las – não cessam de nos surpreender com formulações e descobertas que ameaçam de dissolução muitos dos pressupostos que dirigiram nossas ações, práticas e pensamentos no decorrer dos séculos XIX e XX, lançando-nos num fluxo de elucubrações que deslumbram, como as ficções científicas que alimentaram durante décadas nosso imaginário, aberturas para mundos possíveis tão abomináveis como fascinantes.
Esse mundo administrado, mapeado, estratificado e controlado por saberes múltiplos que se propõem objetivar-se mais e mais, em confluência para um princípio único e comum, não cessa de esbarrar, entretanto, em quadros bastante trágicos e assustadores. Populações extensas do planeta em processo crescente de miserabilização (“os excluídos da globalização”); conflitos territoriais, religiosos, étnicos (“os resistentes da identidade”); ataques terroristas (“os inimigos do estratificado”); proliferação de atos violentos no espaço urbano (“os resultantes marginais e residuais da tensão ordem/desordem”); crise do trabalho (“os sacrificados da obsolescência”); crise e desagregação das relações intersubjetivas (“os desterritorializados da socialidade e da afetividade”) propõem desafios inesperados à razão triunfante e abrem espaço para derivas surpreendentes da subjetividade.
Dessa diversidade em tensão, a mídia, como “central de distribuição de sentidos e valores” (Rolnik, 1989), é a superfície privilegiada na qual racionalidade triunfante e irracionalidade – ordem e caos – compõem o espetáculo desse mundo ruidoso atravessado por fluxos contínuos que, indo sem cessar de um pólo a outro, criam nódulos de aderência, pólos intermediários/parciais com seus próprios vetores, os quais, se não sabemos para onde se dirigem (e nos dirigem), não nos arriscamos a não acompanhar, em esforços de evitamento de uma ameaça difusa que paira sobre nós, a de sermos capturados pelo que nos excede, a de perdermos nossas referências – cognitivas, semióticas, estéticas, afetivas... –, de nos tornarmos, enfim, um nada girando no próprio vazio.
Se, perante os produtos da mídia, experimentamos esse sentimento de estarmos sendo arrastados muitas vezes para um indeterminado difuso, também nos damos conta de que as medidas protetoras em relação à deriva vêm da própria mídia e sua loquacidade, que, expondo esses fluxos e fazendo deles suas extrações, não cessa de indicar tendências, de desenhar aqui e ali pequenas territórios com seus sucessos, com seus estilos, com suas estratégias, com seus slogans que se oferecem como superfícies de aderência às aspirações identitárias, sinalizando, enfim, o que o mundo/mercado espera de nós a cada momento, esse dever-ser com o qual, candidatos ansiosos a um lugar nele, devemos compor nossas objetivações. Essa é, pelo menos, a advertência que ela própria nos faz, em seu papel social de atualização, expondo e reiterando quotidianamente sua potência de nos antecipar o saber que precisamos saber. Um “precisar saber” que é condição para se estar com um outro de forma inteligível, ou, mais ainda, para configurar o próprio lugar no mundo, desenhando-se como um sujeito comunicativo, permanentemente “ligado”, visível e disponível às demandas, pronto – pró-ativo – para a ação.
Da deriva das subjetividades, do colapso da idéia do indivíduo autônomo e livre capaz de escolhas e de gestão da própria vida, da desintensificação de pensamentos e movimentos que supõem uma longa preparação (sinalizando a “crise” da psicanálise, da filosofia, dos movimentos criadores em um mundo pragmático dependente de resultados imediatos), a mídia não cessa, enfim, de extrair e inventar um sujeito possível e mutante cuja principal atribuição de liberdade é, como instância final, negativa: a de não poder deixar de estar presente aos produtos que ela própria nos oferece e a de não poder deixar de se comunicar, isto é, a de não poder deixar de estar agenciado pelos campos de enunciação dominantes dos quais a própria mídia se faz porta-voz. Assim, a mídia constrói, para cada um de nós, tanto um campo de visibilidade quanto um campo de enunciabilidade propostos como comuns, indicando a forma como devemos estabelecer, entre um e outro, relações de implicação, reconhecimento, significação, determinando, enfim, o que deve e pode ser aceito como verdade na comunidade humana à qual pertencemos. Tal é o poder da mídia, enquanto “central de distribuição de sentidos e valores”. Se nessa invenção reconhecemos que, com freqüência, ela é perversa,[1] é necessário reconhecer também que há suficientes demandas desejantes para sustentá-la nessa posição, garantindo-lhe, assim, sua própria legitimidade.
Face a tal quadro, não é de surpreender que, nos debates cotidianos, quando os temas são mídia e mercado global – e as transformações que se operam, com sua expansão e hegemonia, nas condições de existência e de trabalho –, os estados de alma sejam bastante conflitantes: manifestações entusiásticas de uns com as novas possibilidades do fazer, do tornar visível e do mercadizar misturam-se com inquietações de outros, que destacam a manipulação, os excessos e a sujeição de consciências promovidos por uma mídia excessivamente determinada pelo mercado e seus corolários: a competitividade, a violência, o consumismo (de objetos e de corpos)... que acabam por levar, em seu limite, a uma banalização do Mal. Entre “integrados” e “apocalípticos” e seus confrontos, o sentimento que permanece como resíduo é de que o pensamento encontra nesses debates poucas condições para avançar, incitados que somos a tomar partido de um ou outro lado.
É nesse “entre” – um campo articulado por relações de forças – que devemos buscar construir nossas linhas de fuga, procurando pensar o dispositivo comunicacional numa “terceira via” que nos permita reconhecer sua operatividade no agenciamento da subjetividade, cujo resultante final seria esse “sujeito possível” da comunicação [...].

[1] Perversidade que será necessário reconhecer na maneira como ela se estrutura e estabelece com seu consumidor/receptor relações de implicação e significância.
...
[Este texto é um pequeno excerto de Corpo, técnica e mídia: simulações de potência, trabalho escrito nos últimos meses de 2001 e apresentado como dissertação de mestrado para banca na Faculdade Cásper Líbero em março de 2002. Sete anos depois, creio que os temas nela tratados continuam atuais e constituem, de certa maneira, uma forma ainda original de compreensão da relação entre produção midiática e produção de subjetividade. Na época em que desenvolvi este trabalho, a consulta à bibliografia disponível mostrou-se bastante desalentadora. A maior parte dela supunha ainda um sujeito receptor em posição de maior ou menor resistência, de maior ou menor consciência em relação aos conteúdos produzidos pelo emissor. Nesse sentido, as questões diziam respeito às possíveis influências da mídia sobre um sujeito pré-existente, não à possibilidade de agenciamento de um sujeito determinado pelo dispositivo midiático, que é o que procuro compreender e expor no desenvolvimento do texto. Considerando que o tema tem sido de interesse crescente nos meios acadêmicos da Psicologia, como pudemos constatar no congresso organizado [ano passado] no Rio de Janeiro pela ABRAPSO, esta postagem é um convite à leitura do texto integral, disponível em TEXTOS NA REDE.]

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Biopoder nas políticas de saúde e desmedicalização da vida, por Luiz Fuganti

Discurso de Luiz Fuganti proferido no CRP - RJ em 29.03.2007

Contribuição ao modo de problematizar a prática generalizada da medicalização que se tornou dominante hoje em nosso país e afeta direta ou indiretamente quase todo o corpo social.

Vou esboçar algumas questões relativas ao biopoder e à saúde e, nos limites desse breve discurso, considerar alguns aspectos acerca do controle sobre a vida e do sentido daquilo que comumente se denomina cuidado. Em seguida, qual a relação desses aspectos do controle e do cuidado com as práticas de medicalização que constituem, me parece, uma nova demanda por um certo valor de saúde. Porém, não um valor de saúde que se produz a partir de um tipo ativo de vida, mas aquela saúde que se demanda e acontece como investimento de
desejo de um tipo de vida separada de suas capacidades de criar as próprias condições do existir.[...] Leia o texto integral em TEXTOS NA REDE ou clicando aqui.

Multiplicando os agentes do mundo: Gabriel Tarde e a sociologia infinitesimal, por Eduardo Viana Vargas

Que coisa bizarra ler Tarde hoje!

Afinal, a história canônica da disciplina narra que uma das clivagens decisivas para o advento da sociologia se processou em torno de um confronto desigual entre um ancião e um cadete: Gabriel Tarde (1843-1904), expoente maior da sociologia francesa do final do século XIX, professor do Collège de France e membro da Académie, autor de inúmeros livros e artigos publicados na França e em vários outros países, e Émile Durkheim (1858-1917), professor emergente de universidade de província (Bordeaux), que vira seus primeiros trabalhos serem objeto de fria acolhida. Já no início do século XX, no entanto, o quadro havia mudado completamente: o cadete bateu o ancião e venceu essa "batalha inaugural" (Balandier, 1999). A partir de então, Durkheim entrou para a historia como pai fundador da sociologia científica, enquanto Tarde foi neutralizado como mero precursor da disciplina.

Jurista de formação e profissão, Tarde foi, talvez, o mais filósofo dos sociólogos, ou o mais sociólogo dos filósofos, precisamente no momento em que a sociologia emergente procurava se livrar de vez das trevas da metafísica. Leia o texto integral em TEXTOS NA REDE ou clicando aqui.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A imanência: uma vida..., por Gilles Deleuze

O que é um campo transcendental? Ele se distingue da experiência, na medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se apresenta, pois, como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer curioso que o transcendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do sujeito e do objeto. Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental. Não se trata, obviamente, do elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação não é mais que um corte na corrente da consciência absoluta. Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será necessário, como conseqüência, definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto movimento que não começa nem termina? (Até mesmo a concepção espinosista dessa passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência).

Mas a relação do campo transcendental com a consciência é uma relação tão-somente de direito. A consciência só se torna um fato se um sujeito é produzido ao mesmo tempo que seu objeto, todos fora do campo e aparecendo como “transcendentes”. Ao contrário, na medida em que a consciência atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita, em toda parte difusa, não há nada que possa revelá-la. Ela não se exprime, na verdade, a não ser ao se refletir sobre um sujeito que a remete a objetos. É por isso que o campo transcendental não pode ser definido por sua consciência, a qual lhe é, no entanto, co-extensiva – mas ela subtrai-se a qualquer revelação.

O transcendente não é o transcendental. Na ausência de consciência, o campo transcendental se definiria como um puro plano de imanência, já que ele escapa à toda transcendência, tanto do sujeito quanto do objeto. A imanência absoluta é em si-mesma: ela não existe em alguma coisa, para alguma coisa, ela não depende de um objeto e não pertence a um sujeito. Em Espinosa, a imanência não existe para a substância, mas a substância e os modos existem na imanência. Quando o sujeito e o objeto, que caem fora do campo de imanência, são tomados como sujeito universal ou objeto qualquer aos quais a imanência é, ela própria, atribuída, trata-se de toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais do que reduplicar o empírico (como em Kant), e de uma deformação da imanência que se encontra, então, contida no transcendente. A imanência não está relacionada a Alguma Coisa como unidade superior a toda coisa, nem a um Sujeito como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais imanência para um outro que não seja ela mesma que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objeto capazes de o conter.

Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada diferente disso. Ela não é imanência para a vida, mas o imanente que não existe em nada é, ele próprio, uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência completa, beatitude completa. É na medida em que ele ultrapassa as aporias do sujeito e do objeto que Fichte, em sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser e não está submetido a um Ato: consciência imediata absoluta, cuja atividade mesma não remete mais a um ser, mas não cessa de se situar em uma vida. O campo transcendental torna-se então um verdadeiro plano de imanência que re-introduz o espinosismo no mais profundo da operação filosófica. Não é uma aventura semelhante que sobrevém a Maine de Biran, em sua “última filosofia” (aquela que ele estava demasiadamente fatigado para levar a bom termo), quando ele descobria, sob a transcendência do esforço, uma vida imanente absoluta? O campo transcendental se define por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida.

O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, ao tomar em consideração o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mau sujeito, desprezado por todos, está para morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida do moribundo.

Todo mundo se apresta a salvá-lo, a tal ponto que no mais profundo de seu coma o homem mau sente, ele próprio, alguma coisa de doce penetrá-lo. Mas à medida que ele volta à vida, seus salvadores se tornam mais frios, e ele recobra toda sua grosseria, toda sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais do que aquele de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, e entretanto singular, que despreende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece. “Homo tantum” do qual todo mundo se compadece e que atinge uma espécie de beatitude. Trata-se de uma heceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas o sujeito que a encarnava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro.

Essência singular, uma vida...

Não deveria ser preciso conter uma vida no simples momento em que a vida individual confronta o morto universal. Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa e que tais objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet-Holenia coloca o acontecimento em um entre-tempo que pode devorar regimentos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’avida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles se comunicam entre eles de uma maneira completamente diferente da dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular pode passar sem qualquer individualidade ou sem qualquer outro concomitante que a individualize. Por exemplo, as crianças bem pequenas se parecem todas e não têm nenhuma individualidade; mas elas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjetivas. As crianças bem pequenas, em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessadas por uma vida imanente que é pura potência, e até mesmo beatitude. Os indefinidos de uma vida perdem toda indeterminação na medida em que eles preenchem um plano de imanência ou, o que vem a dar estritamente no mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (a vida individual, ao contrário, continua inseparável das determinações empíricas). O indefinido como tal não assinala uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou de uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa a não ser na medida em que é a determinação do singular. O Uno não é o transcendente que pode conter mesmo a imanência, mas o imanente contido em um campo transcendental.

O Uno é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida... Pode-se sempre invocar um transcendente que recai fora do plano de imanência, ou mesmo que atribui imanência a si próprio: permanece o fato de que toda transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a seu plano. A transcendência é sempre um produto de imanência.

Uma vida não contém nada mais que virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos de virtual não é algo ao qual falte realidade, mas que se envolve em um processo de atualização ao seguir o plano que lhe dá sua realidade própria. O acontecimento imanente se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com que ele aconteça. O plano de imanência se atualiza, ele próprio, em um Objeto e um Sujeito aos quais ele se atribui. Mas, por mais separáveis que eles sejam de sua atualização, o plano de imanência é, ele próprio, virtual, na medida em que os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. O acontecimento considerado como não-atualizado (indefinido) não carece de nada. É suficiente colocá-lo em relação com seus concomitantes: um campo transcendental, um campo de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida se encarna ou se atualiza em um estado de coisas e em um vivido; mas ela própria é um puro virtual sobre o plano de imanência que nos transporta em uma vida. Minha ferida existia antes de mim... Não uma transcendência da ferida como atualidade superior, mas sua imanência como virtualidade, sempre no seio de um milieu (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental, e as formas possíveis que os atualizam e que os transformam em alguma coisa de transcendental.

* Este foi o último texto escrito por Deleuze.



Nós inventamos o ritornelo, entrevista com Deleuze & Guattari.

A definição que vocês dão da filosofia é bastante ofensiva. Vocês não temem que vocês sejam, assim, acusados de quererem manter – ou restaurar – o privilégio que a tradição parecia lhe conceder?
– Pode-se dar muitas definições inofensivas da filosofia: conhecer-se, admirar-se, refletir, conduzir seu pensamento de forma apropriada... Elas são inofensivas porque são vagas: elas não constituem uma ocupação definida. Nós definimos a filosofia pela criação de conceitos. Cabe a nós mostrar que a ciência, por sua vez, não procede por conceitos mas por funções. A filosofia não extrai disso nenhum privilégio: um conceito não tem nenhuma superioridade sobre uma função.
Eu lhes fiz essa pergunta porque vocês confrontam a filosofia com a arte e a ciência, mas não às ciências humanas. Praticamente não se fala da história, por exemplo, no livro de vocês.
– Nós falamos muito de história. Apenas que o devir se distingue da história. Entre os dois, há toda espécie de correlações e de reenvios: o devir nasce na história e aí recai, mas não lhe pertence. É o devir e não o eterno que se opõe à história. A história considera certas funções segundo as quais os acontecimentos se efetuam, mas o acontecimento, na medida em que ele ultrapassa sua própria efetuação, é o devir como substância do conceito. O devir sempre foi o problema da filosofia.
Ao elaborarem a definição da filosofia como criação de conceitos, vocês atacam particularmente a idéia de que a filosofia seria ou deveria ser “comunicação”. Tem-se a impressão de que os últimos livros de Jürgen Habermas e sua teoria da “ação comunicativa” são um dos alvos principais de vocês.
– Não, não atacamos particularmente Habermas, nem qualquer outra pessoa. Habermas não é o único a querer indexar a filosofia de acordo com a comunicação. Uma espécie de moral da comunicação. A filosofia é, inicialmente, pensada como contemplação, e isso deu como resultado obras esplêndidas, por exemplo com Plotino. Depois como reflexão, com Kant. Mas justamente era preciso, inicialmente, nos dois casos, criar um conceito de contemplação ou de reflexão. Não estamos certos de que a comunicação tenha encontrado, por sua vez, um bom conceito, isto é, um conceito realmente crítico. O “consenso” ou as “regras de uma conversação democrática”, à maneira de Rorty, não bastam para formar um conceito.

Contra essa idéia de comunicação, da filosofia como “diálogo”, vocês propõem a “imagem do pensamento” que vocês inserem num quadro muito mais geral. É o que vocês chamam de “geofilosofia”. Esse capítulo está no cerne do livro de vocês. É, ao mesmo tempo, uma filosofia política e quase uma filosofia da natureza.

– Há certamente razões para que a filosofia nasça nas cidades gregas e continue nas sociedades capitalistas ocidentais. Mas são razões contingentes, o princípio de razão é um princípio de razão contingente e não necessário. É por isso que essas formações são focos de imanência, apresentando-se como sociedades de “amigos” (competição, rivalidade) e implicam uma promoção da opinião. Ora, esses três traços fundamentais definem apenas as condições históricas da filosofia; a filosofia como devir está em relação com eles, mas não se reduz a isso, ela é de uma outra natureza. Ela não pára de colocar em questão suas próprias condições. Se essas questões de geofilosofia tem muita importância é porque pensar não se faz nas categorias do sujeito e do objeto, mas em uma relação variável entre o território e a terra.

Nessa “geofilosofia”, vocês apelam à “filosofia revolucionária” e à necessidade de “revoluções”. É quase uma manifesto político o que vocês propõem. E isso pode parecer paradoxal, no contexto atual.

– A situação atual é muito confusa. Tende-se a confundir a conquista das liberdades com a conversão ao capitalismo. É duvidoso que os prazeres do capitalismo sejam suficientes para liberar os povos. Glorifica-se o fracasso sangrento do socialismo. Mas não parecem considerar como um fracasso o estado do mercado mundial capitalista, com as sangrentas desigualdades que o condicionam, as populações colocadas fora do mercado, etc. Há muito tempo que a “revolução” americana fracassou, assim como a soviética. As situações e tentativas revolucionárias são engendradas pelo próprio capitalismo e, lamento dizê-lo, senhores, não correm o risco de desaparecer. A filosofia continua ligada a um devir revolucionário que não se confunde com a história das revoluções.

Fiquei impressionado com um ponto do livro de vocês: o filósofo, dizem vocês, não discute. Sua atividade criadora só pode ser isolada. Trata-se de uma grande ruptura com todas as representações tradicionais. Vocês pensam que o filósofo não deve mesmo discutir com seus leitores, com seus amigos?

– Já é difícil compreender o que alguém diz. Discutir é um exercício narcísico, no qual cada um se exibe, por sua vez: muito rapidamente, não se sabe mais sobre o que se fala. O que é difícil é determinar o problema ao qual esta ou aquela proposição responde. Ora, se se compreende o problema formulado por alguém, não se tem nenhuma vontade de discutir com ele: ou se se formula o mesmo problema, ou então se formula um outro e se tem, antes, vontade de avançar nessa direção. Como discutir se não se tem um fundo comum de problemas, e por que discutir quando se o tem? Tem-se sempre as soluções que correspondem aos problemas que se formulam. As discussões representam muita perda de tempo para problemas indeterminados. As conversações são outra coisa. É preciso certamente entrar em conversações. Mas a menor conversação é um exercício esquizofrênico que se passa entre indivíduos que têm um fundo comum, e um grande gosto por elipses e atalhos. A conversação é feita de pausas, de longos silêncios; ela pode dar idéias. Mas a discussão não faz, absolutamente, parte do trabalho filosófico. Terror da fórmula “vamos discutir um pouco”.

Quais são, na opinião de vocês, os conceitos criados pelos filósofos do século XX?

– Quando Bergson fala da “duração”, ele emprega essa palavra insólita porque ele não quer nós a confundamos com o devir. Ele cria um novo conceito. Da mesma forma, a memória, determinada como coexistência de camadas do passado. Ou o elã vital como conceito da diferenciação. Heidegger criou um novo conceito de Ser, seu duplo componente do velamento e do desvelamento. Um conceito exige, às vezes, uma palavra estranha, com etimologias quase malucas, às vezes, uma palavra corrente, mas da qual se extrai harmonias as mais longínquas. Quando Derrida escreve “différance”, com um a, trata-se evidentemente de propor um novo conceito de diferença. Em A arqueologia do saber, Foucault cria um conceito de enunciado que não se confunde com o de frase, de proposição, de ato de palavra, etc. A primeira característica própria de um conceito consiste em operar um corte inédito nas coisas.

E vocês, quais conceitos vocês acham que criaram?

– O ritornelo, por exemplo. Nós criamos o conceito de “ritornelo” em filosofia.


In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org. de David Lapoujade. P. 353-356.

Nota da edição original: Entrevista conduzida por Didier Eribon in Le Nouvel Observateurs, setembro de 1991, p. 109-110. Por ocasião da publicação de O que é a filosofia?.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

DE QUEM SÓ ESPERA

Há, às vezes, nesses dias chuvosos, uma espécie de mal-estar. Acontece. Esperar torna-se um vício. Nada toca. Nada se deixa tocar. De perceptível só o som da combustão de carros a motor que se chega sempre à porta, nesses dias chuvosos. A verdade é que a vida parou como um romance que perdera o enredo, e os esforças limitam-se ao ato de negar, não existe, pois, a possibilidade, nesses dias chuvosos. Tudo é tratado como estranho... Ouço vozes no cômodo ao lado: essas não me querem dizer nada. A vida parou. Por um instante tive a mesma impressão... Nesses dias chuvosos em que desistimos da vida, nada nos pode recuperar o fôlego de vida, nada é capaz de afetar. E ficamos assim – então parados – entregues ao instante, no nosso vício de esperar...

O VINHO E A FILOSOFIA

João Filipe Sebadelhe

Parte I

O VINHO

Um homem muito famoso que também era um grande imbecil, coisa que, ao que parece, combinam muito bem entre si como talvez tenha o doloroso prazer de demonstrá-lo mais de uma vez, num livro sobre a Gastronomia, elaborado do duplo ponto de vista da saúde e do prazer, ousou escrever o que segue no verbete VINHO: “O patriarca Noé passa por ser o inventor do vinho; é um licor feito com o fruto da videira.”

Que mais? Mais nada: é só. Por mais que folheiem o volume, o manuseiem em todos os sentidos, o leiam de trás para frente, de cabeça para baixo, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, não encontrarão mais nada sobre o vinho na Physiologie du Goût do mui ilustre e mui respeitado Brillat-Savarin: “O patriarca Noé...” é um licor”.

Suponhamos que um habitante da Lua ou de algum planeta longínquo, viajando no nosso mundo e cansado de longas etapas, queira refrescar a goela e esquentar o estômago. Faz questão de inteirar-se dos prazeres e dos costumes da nossa terra. Ouviu falar por alto de licores deliciosos nos quais os cidadãos dessa bola encontravam fonte inesgotável de coragem e alegria. Para acertar na escolha, o habitante da lua abre o oráculo do gosto, o célebre e infalível Brillat-Savarin e encontra, no verbete VINHO, esta preciosa informação: O patriarca Noé...e este licor é feito... Isto é extremamente digestivo. Isto é muito explicativo. Impossível, após a leitura desta frase, não ter uma idéia justa e clara de todos os vinhos, das diferentes qualidades, de seus inconvenientes, de seu poder sobre estômago e cérebro.

Ah! Caros amigos, não leiam Brillat-Savarin. Deus preserve aqueles aos quais quer bem das leituras inúteis; está é a primeira máxima de um livrinho de Lavater, um filósofo que amou os homens mais do que todos os magistrados do mundo antigo e moderno.

...

Profundas alegrias do vinho, quem não vos conheceu? Todo homem que tenha tido que amenizar um arrependimento, evocar uma lembrança, afogar uma tristeza, construir um castelo de vento, todos enfim vos invocaram, deusas misteriosas escondidas nas fibras da videira. Como são grandes os espetáculos do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e ardente, esta segunda juventude que o homem nele encontra! Mas quão temíveis também suas volúpias fulgurantes e seus encantos exasperantes.

...

O vinho é semelhante ao homem: nunca saberemos até que ponto podemos prezá-lo e desprezá-lo, amá-lo e odiá-lo, nem de quantas ações sublimes ou de delitos monstruosos ele é capaz. Não sejamos pois mais cruéis com ele que com nós mesmos, e tratemo-lo como nosso igual.

* Trechos da primeira parte d’O POEMA DO HAXIXE, de Charles Baudelaire.


Parte II

A FILOSOFIA

Abro a página 1344 do Houaiss, mui respeitado dicionário da língua portuguesa, e desconfio que o mesmo habitante da lua não iria se interessar muito pela possibilidade de desbravar as abóbadas da filosofia. Ouso escrever o que segue no verbete: “Amor pela sabedoria, experimentada apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância...investigação da dimensão essencial e ontológica do mundo real, ultrapassando a mera opinião irrefletida do senso comum que se mantém cativa da realidade empírica e das aparências sensíveis”.

Que mais? Por consider(ação) ao Lavater, prefiro nem registrar o resto! Não aparece ali o nome de Espinosa, Bergson, Nietzsche, Deleuze, Foucault, Ulpiano, Fuganti, Valter e outros tantos que não ousaram definir a arte de criar conceitos. Uma máquina de guerra serve para ser utilizada (vivida nas mais minúsculas práticas cotidianas), não para ser conceituada, definida e compreendida...para tal função já existem as máquinas acadêmicas.


Mas neste momento lembro-me de não esquecer a canção do Zeca (o que distribui balas): “Eu vou pra lua...lá tem mais calor humano...que o cinema americano”! Fica a esperança de que o habitante da lua não marginalizará as aparências sensíveis, mas não por causa da quantidade de calor humano presente por lá. O que pode valer, talvez, é o fato deste suposto calor humano ser demasiadamente permeado por uma camada grossa e superficial de gelo, o mesmo gelo que os integrantes das Quadrilhas colocam no copo de Whisky após um longo e cansativo dia de caça.

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Profundas alegrias da Filosofia, quem não vos conheceu? Todo homem que tenha tido que pentear os cabelos no momento mais perigo do dia - já que pensamentos são como cabelos, segundo Caio Fernando Abreu – e escovar o olhar...conheço uma porrada de pessoas que correm pelas avenidas cheias de remelas nos olhos. Todos que delicadamente se preparam para viver (e vivem) este século deleuziano, enfim vos invocaram.

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A Filosofia é semelhante ao Vinho. Assim como existem inúmeras vinícolas desprezíveis prontas para envenenar e embriagar cada porção do corpo, há uma série de escritos filosóficos preparados com amor pela sabedoria prontos para envenenar os corpos daqueles que ainda não tiveram (com)tato com as vísceras da SUBVERSIVIDADE (inter-zona autônoma entre a prática subversiva e a apropriação dos modos de produção pós-capitalísticos).

** Trechos da primeira parte d’O POEMA DA FILOSOFIA.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Prefácio do Tratado Teológico-Político, por Baruch de Espinosa

Tradução: Diogo Pires Aurélio

PREFÁCIO

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro, ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas, como se encontram freqüentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja o que for; se tem dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperança e pelo medo em simultâneo, ainda é pior; porém, se estão confiantes, ficam logo inchados de orgulho e presunção. Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convicto de que a maioria dos homens se ignoram a si próprios. Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não sigam. Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de novo a esperar melhores dias ou a temer desgraças ainda piores. Se acontece, quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de já terem se enganado centenas de vezes. Se vêem, pasmados, algo de insólito, crêem que se trata de um prodígio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númem sagrado, pelo que não aplacar com sacrifícios e promessas tais prodígios constitui um crime aos olhos desses homens submergidos na superstição e adversários da religião, que inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles. Tanto assim é, que quem nós vemos ser escravo de todas as superstições são sobretudo os que desejam sem moderação os bens incertos. Todos eles, designadamente quando correm perigo e não conseguem por si próprios salvar-se, imploram o auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem que a razão é cega porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às coisas vãs que desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas. Até julgam que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos não estão inscritos na mente, mas sim nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro divino os revela.

A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Se, depois do que já dissemos, alguém quiser ainda exemplos, veja-se Alexandre, que só se tornou supersticioso e recorreu aos adivinhos, quando, às portas de Susa, começou pela primeira vez a temer por sua sorte (vide Q. Cúrcio, Livro V, §7); assim que venceu Dario, desistiu logo de consultar os adivinhos e arúspices. Até ao momento em que, uma vez mais aterrado pela adversidade, abandonado pelos Bactrianos, atacado pelos Citas e imobilizado devido a uma ferida, recaiu (como diz o mesmo Q. Cúrcio, Livro VII, §7) na superstição, esse logro das mentes humanas, e mandou Aristandro, em quem depositava uma desconfiança cega, explorar por meios de sacrifícios a evolução futura dos acontecimentos. Poderíamos acrescentar muitos outros exemplos que provam com toda a clareza o mesmo: os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo: todas essas coisas que já alguma vez foram objetos de um fútil culto religioso não são mais do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado triste; finalmente, é quando os Estados se encontram em maiores dificuldades que os adivinhos detém maior poder sobre a plebe e são mais temidos pelos seus reis. Mas como tudo isto, ao que presumo, é suficientemente conhecido de todos, não insistirei mais no assunto.

Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que todos os homens lhe estão naturalmente sujeitos (digam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de os mortais terem todos uma qualquer idéia, mais ou menos confusa, da divindade); em segundo lugar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões da mente e os acessos de furor; e, por último, que só a esperança, o ódio, a cólera e a fraude podem fazer com que subsista, pois não provém da razão, mas unicamente da paixão, e da paixão mais eficiente. Daí que seja tão fácil os homens acabarem vítimas de superstição de toda espécie quanto é difícil conseguir que eles persistam numa só e na mesma superstição. Precisamente porque o vulgo persiste na sua miséria é que nunca está por muito tempo tranqüilo e só lhe agrada o que é novidade e o que ainda não lhe enganou, inconstância essa que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras atrozes. Na verdade (como se prova pelo que já dissemos e como Cúrcio muito bem observou, no livro IV, cap. X), não há nada mais eficaz que a superstição para governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião. ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo gênero humano. Foi, de resto para prevenir este perigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo a que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por todos. Entre os turcos, isto foi tão bem sucedido que até o simples discutir eles consideram crime, deixando a inteligência de cada um ocupada com tantos preconceitos que não há mais lugar na mente para a reta razão, nem sequer para se duvidar.

Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhes interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem, em contrapartida, numa República livre, seria impossível conceber ou tentar algo de mais deplorável, já que repugna em absoluto à liberdade comum sufocar com preconceitos ou coarctar de algum modo o livre discernimento de cada um. E no que diz respeito aos conflitos desencadeados a pretexto da religião, é evidente que eles surgem unicamente porque se estabelecem leis que concernem matéria de especulação e porque as opiniões são consideradas crime e, como tal, condenadas. Os seus defensores e prosélitos são, por isso, imolados, não ao bem público, mas apenas ao ódio e à crueldade dos adversários. Porque se o direito estatal fosse de modo a que os fatos fossem incrimináveis, mas as palavras fossem impunes, semelhantes conflitos não poderiam jamais invocar qualquer espécie de direito, nem as controvérsias se converteriam em sedições. E já que nos coube em sorte esta rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata ou inútil mostrar que esta liberdade não só é compatível com a liberdade e paz social, como inclusivamente, não pode ser abolida, sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a piedade. Foi sobretudo isto o que decidi demonstrar nesse tratado. Para tanto, foi necessário, antes de mais, apontar os maiores preconceitos em matéria religiosa, isto é, os vestígios da antiga servidão, bem como se referem aqueles que se referem ao direito das autoridades soberanas, direito que muitos se esforçam, com descarado atrevimento, por lhes usurpar em boa parte, tentando, a pretexto da religião, pôr contra elas o ânimo das multidões, submetido ainda à superstição dos gentios, para que todos caiam de novo na servidão. Direi a seguir, em breves palavras, qual a ordem pela qual são apresentados os assuntos; mas antes, vou expor as razões que me levam a escrever.

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