sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

... eles lêem Foucault como homem...




Por Eder Amaral e Silva[1] & Morgana Barbosa Gomes[2]


Semana passada, na UESB, um evento se tornou para nós acontecimento. O I ENEDIS – Encontro de Estudos sobre o Discurso, do qual participamos apresentando o estranho trabalho intitulado “Das dicotomias feitas pó: estética da existência, devir, subjetividade” nos levou além das expectativas mais improváveis em relação a como uma coisa se torna o que ela é.
Ainda aqui, uma vez mais, falamos por códigos. Podemos ser mais simples. Sejamos: ocaso (sic) ocorreu no simpósio em que apresentamos o trabalho citado, numa comunicação oral de breves quinze minutos. Encerramos o ciclo de apresentações da manhã de 28 de novembro por volta de 12h15min. Daí em diante, teve início a série de pareceres dos dois professores presentes, Nilton Milanez e um colega seu (do qual não nos lembramos o nome), então responsáveis pelo simpósio. O curioso da estória é a transformação do parecer em julgamento no exato instante em que ambos os professores iniciam sua fala a respeito do nosso trabalho e da nossa apresentação, na qual experimentamos (e ainda com muita timidez) uma performance poética como condutora da proposta.

Entre outras coisas, ouvimo-los dizer que o nosso texto trazia notadamente um discurso de resistência. Resistência à ordem do discurso acadêmico, porque feito em tintas de apelo literário, resistência à norma por não se alinhar a certa padronização da escrita universitária, resistência, em fim, ao instituído. E que optar por tal modo de expressão na seara acadêmica, devíamos saber, implicava em não ser ouvido, na medida em que a ordem do discurso determina o que pode e o que não pode surgir como discurso, o que pode ou não ser dito numa determinada circunstância, a um determinado público, por determinado sujeito, em determinado tempo. Ou entramos nessa ordem do discurso, ou então...
Está lá, na aula inaugural de Michel Foucault no Collège de France, esta importantíssima constatação. Logo após parafraseá-lo (como o fazemos aqui), o professor Nilton arrematou: “não sou eu quem diz isso, é o discurso, é Michel Foucault!”
Sabe quando se tem a sensação de ter ouvido um canto de sereia? Não foi o que ocorreu. Sem entrar em mais detalhes (quem os quiser saber não terá dificuldade, havia outras pessoas participando do “Simpósio III – Discurso, Literatura e Autoria”), atenhamo-nos aqui apenas à situação já descrita, alem de alguns tragicômicos desdobramentos.
Desde o início da apresentação soubemos que seria aquele nosso primeiro e último momento no evento do prof. Nilton (palavras e possessiva advindas do próprio). Dissera que aquilo que propúnhamos estava fora de ocasião, destoava da proposta do Encontro, e que não apareceria em suas próximas edições, palavra. “Isto que vocês apresentaram não tem lugar nesta sala, neste espaço!”. Para não incorrermos em injustiça, salientamos que o mesmo professor afirmou ter sido favorável à aprovação do nosso resumo, não obstante esta ter sido opinião rara entre os pareceristas, o que resultaria na recusa de nosso trabalho não fosse sua intervenção e assunção da responsabilidade pela avaliação. Foi só depois de uma extremada benevolência, de um devir-socrático, de uma salvação talvez, que o professor entendeu haver a necessidade de um acerto de contas... toc, toc, toc... A ordem do discurso bate à nossa porta, pedindo um pouco de voz:
E a instituição responde: “Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém”.[3]
Duas páginas à frente, Foucault interroga: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” É ele mesmo quem responde:
(...) suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.[4]
Os trechos colados aqui são talvez os mais citados em trabalhos acadêmicos que fazem uso deste livreto. Se a quantidade de citações lhe garantisse compreensão, por certo Foucault (e Sade, e Nietzsche, e Heidegger, e tantos mais...) seria de domínio largo além dos círculos e catedrais.
Uma pesquisadora brasileira[5] dos estudos da cognição nos leva a pensar que dispomos de dois modos de subjetivação do conhecimento, aos quais ela define como “políticas cognitivas”. Por um lado, haveria a política cognitiva “realista”, sendo aquela que percebe o real como aquilo que está dado, desde sempre, e do qual apenas seleciona, coleta, assimila e faz circular informações, única matéria possível num tal regime cognitivo. Por outro, tem-se o que ela chama de política cognitiva “construtivista”, cuja característica fundamental é a de tomar o mundo como uma invenção, um engenho produzido na hora precisa em que atentamos para ele, em que agimos nele, o que implica inevitavelmente o problema ético do conhecimento.
A situação que vivenciamos no I ENEDIS nos remeteu imediatamente a este problema, porque nos vimos diante de uma nítida manifestação daquele tipo de “realismo”. Porque o problema não está em repetir constatações de um pensador a respeito da realidade que vivemos (e esse “viver” é necessariamente “criar”); o difícil é ver o desperdício da leitura que faz da afirmação crítica mera informação a ser armazenada no repertório técnico, mera unidade de informação; o que espanta é ver o que força os limites da norma ser convertido em regra a ser reproduzida ad eternum e por toda parte, como se estivesse diante de uma prescrição e não de uma análise.
Em função de quê é possível uma tal disposição ao uso de filosofias como a de Michel Foucault – um pensamento que tem por mote justamente a crítica aos poderes instituídos – para rebater o exercício do poder sobre o que quer que se manifeste à margem da ordem? Parodiando o cientista político Jacques Donzelot, seria necessário teorizarmos ainda sobre uma “Polícia do pensamento”?... toc, toc, toc... A ordem do discurso bate novamente à nossa porta, querendo fazer uma pergunta:
O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?[6]
Da forma que foi possível fazê-lo na ocasião, interpusemos o questionamento acima ao “parecer” que nos foi dado. Entre outras coisas (como, por exemplo, o alerta do outro professor/avaliador, ao fato de que Foucault não defendeu suas teses cantando nem declamando poemas...), surgiu como tréplica que estávamos “pulando o muro do vizinho para falar mal dele”, que ao nos apresentarmos daquele modo dentro de uma academia não podíamos nos furtar do lugar que ocupávamos na própria academia etc., etc... Sim, sim, tens razão, passemos a outra coisa, por gentileza, que essa cantilena já fala por conta própria de tão repetida! Para tranqüilizar quem se aterroriza, não queremos acabar com a academia, viveremos pouco, temos mais o que fazer (dentro dela inclusive). Só não temos esse estranho senso de pura pertença que transforma alguns em guardiães da ordem, incumbidos de controlar qualquer variação que surja ao seu redor para conservar o que já se alcançou, mesmo que seja pouco, mesmo que não seja. Pra quê exemplo maior da piedosa avareza que não cessamos de aprender, que não cessa de nos consumir?
Vai ficando difícil achar leitor com este tamanho de texto, que só quer expressar nossa gratidão pela receptividade. Pra não haver mais delongas, deixamos ao menos uma explicação, já que todo o resto dispensa: o título. Que papo é esse de “eles lêem Foucault como homem”? Quem tiver oportunidade e desejo, por prazer, leia um texto intitulado “A literatura e a vida”, de Gilles Deleuze[7]. Lá Deleuze tenta responder à questão do que faz valer a pena uma escrita... questão que responde, provocativamente, com outra pergunta: “A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?”. Esse “homem” de que Deleuze afirma se envergonhar não é outro senão a forma-Homem que nos atravessa, qualquer que seja nosso gênero (e se é que eles realmente existem), forma que planta o poder em nós, e nos faz querê-lo como se fosse o ar que respiramos. Dessa perspectiva, como entender que aquele que diz “Não se apaixonem pelo poder”[8] possa ser lido e posto em discurso como um homem? Não precisamos ir além dessa pergunta. Como dissemos no simpósio, fizemos aquela proposta como um jogo, não como uma missão de catequese; queríamos uma dança, não uma competição. Talvez Capoeira... Vale Tudo nunca!
De resto, convidamos Foucault e um seu parceiro saxão, que também não é homem (porque está para além dele, em qualquer sentido) para, agora sim, fazer uma prescrição: “Utilize a prática política como um intensificador do pensamento e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.”[9] Quanto a Nietzsche, trazemos um ensinamento que permeia seu trabalho, que faz da vida obra de arte (e não a deixa se tornar um trapo): é preciso muito amor para se fazer uma crítica. Eis aqui nosso exercício de amor (sem objeto e sem objetivo, mas nunca gratuito), ainda que cruel, como foi dito. Se chamamos filósofos ao texto é sempre para conversarmos, até falarmos juntos, ao mesmo tempo, sem muita educação. Não para abduzir nossa própria voz em função de petições de autoridade. Pois é justamente em Foucault que encontramos motivo para pensá-lo como amigo, produzir com ele uma política da amizade, e arriscar, sempre no limite do que agüentamos, sem ressentimento. Com efeito, “somos ainda demasiado competentes, e gostaríamos de falar em nome de uma incompetência absoluta”[10]. É que no Zaratustra gostamos mais da última figura da transmutação – a criança, demasiado inocente, jamais ingênua – do que da primeira – o carregador de fardos. Deste texto esperamos só uma coisa: que se dele surgir qualquer efeito, seja mais assunto de conversa que questão de julgamento.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos –
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim![11]

Vitória da Conquista, 1º de dezembro de 2008

[1] E-mail: eder_as@yahoo.com.br
[2] E-mail: morganabg1@yahoo.com.br
[3] Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 7. (Grifo nosso)
[4] Idem, p. 8-9. (Grifo nosso)
[5] Virgínia Kastrup. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo nos estudos da cognição. Campinas: Papirus, 1999.
[6] Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 44-5. (Grifos nossos)
[7] O texto faz parte da coletânea de textos de Deleuze chamada Crítica e Clínica, publicada no Brasil pela Editora 34. O texto também está disponível na internet e pode ser facilmente encontrado.
[8] Michel Foucault. Anti-Édipo: Uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. – v. 1, n. 1 (1993) – São Paulo, 1993 [páginas 197 a 200].
[9] Idem, Ibidem. (Grifo nosso)
[10] Gilles Deleuze & Félix Guattari. O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1.Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim, 2004. p. 399.
[11] Fernando Pessoa. Insônia. In: Poesia Completa de Álvaro de Campos. São Paulo: Cia. das letras, 2007. p. 325


As Esquizoanálises


por Félix Guattari
Tradução Nedelka Solís Palma & Eder Amaral e Silva
Revisão técnica Valter A. Rodrigues


(...)

Este seminário sobre “as esquizoanálises” não encontrará seu próprio regime a menos que ele mesmo se ponha a funcionar em um nível que eu qualificaria de “meta-modelização”. Dito de outra forma, se ele nos permitir cercar melhor nossos próprios agenciamentos de enunciação – seria melhor dizer: os agenciamentos de enunciação aos quais estamos adjacentes. Neste sentido, faço questão de repetir que nunca concebi a esquizoanálise como uma nova especialidade, que seria chamada a colocar-se nas fileiras do domínio psi. Em minha opinião, suas ambições deveriam ser, ao mesmo tempo, mais modestas e maiores. Modestas porque, se ela deverá existir um dia, é porque já existe um pouco por toda parte, de maneira embrionária, sob diversas modalidades; no entanto, ela não tem nenhuma necessidade de uma fundação institucional dentro da boa e velha regra. Maiores, na medida em que a esquizoanálise tem, do meu ponto de vista, uma vocação para tornar-se uma disciplina de leitura de outros sistemas de modelização. Não a título de modelo geral, mas como instrumento de deciframento de pragmáticas de modelização em diversos domínios. Poder-se-ia objetar que o limite entre um modelo e um meta-modelo não se apresenta sempre como uma fronteira estável. E que, em certo sentido, a subjetividade é sempre mais ou menos atividade de meta-modelização (na perspectiva proposta aqui: transferência de modelização, passagens transversais entre máquinas abstratas e territórios existenciais). O essencial torna-se então efetuar um deslocamento do acento analítico que consiste em fazê-la derivar de sistemas de enunciado e de estruturas subjetivas pré-formadas para agenciamentos de enunciação capazes de forjar novas coordenadas de leitura e de “pôr em existência” representações e proposições inéditas.

A esquizoanálise será, portanto, essencialmente excêntrica em relação às práticas psi profissionalizadas, com suas corporações, sociedades, escolas, iniciações didáticas, “passe”, etc. Sua definição provisória poderia ser: a análise da incidência dos agenciamentos de enunciação sobre as produções semióticas e subjetivas, em um contexto problemático dado. Eu voltarei a essas noções de “contexto problemático”, de cena e de “posto em existência”. Por enquanto, me limito a mostrar que eles podem referir-se a coisas tão diversas como um quadro clínico, um fantasma inconsciente, uma fantasia diurna, uma produção estética, um fato micropolítico... O que conta aqui é a idéia de um agenciamento de enunciação e de uma circunscrição existencial, que implica o desenvolvimento de referências intrínsecas, ou seja, de um processo de auto-organização ou de singularização.

Por que esse retorno, como um leitmotiv, aos agenciamentos de enunciação? Para evitar atolar-se, tanto quanto for possível, no conceito de “Inconsciente”. Para não reduzir os fatos da subjetividade a pulsões, afetos, instâncias intra-subjetivas e relações inter-subjetivas. Como é óbvio, esse gênero de coisas terá um lugar nas preocupações esquizoanalíticas, mas somente a título de componente e sempre em certos casos de enfoque. Destacamos, por exemplo, que existem agenciamentos de enunciação não comportando componentes semiológicos significacionais, agenciamentos que não têm componentes subjetivos, outros que não têm componentes conscienciais... O agenciamento de enunciação será levado, assim, a “exceder” a problemática do sujeito individuado, da mônada pensante conscientemente delimitada, das faculdades da alma (o entendimento, a vontade...), na sua acepção clássica. Parece-me importante sublinhar de passagem que, no início, sempre tratamos com conjuntos, com conjuntos que são, a princípio, indiferentemente materiais e/ou semióticos, individuais e/ou coletivos, ativamente maquínicos e/ou passivamente flutuantes. [continua...]


Clique aqui para ler o texto completo, publicado na Revista Ensaios (Universidade Federal Fluminense), n.1, v.1, ano 1, 2° sem. 2008.

domingo, 30 de novembro de 2008




Aqui não adianta latir, tem que morder!

domingo, 9 de novembro de 2008

"Onde havia sublimação, que advenha angústia..."[*], por Valter A. Rodrigues

Tomo como ponto de parti-da uma frase algo enigmática enunciada por Freud ao finalizar sua Conferência XXXI (Novas conferências introdutórias) que, em suas múltiplas possibilidades de tradução, me convida a pensar direções para os impasses que o trabalho com a subjetividade tem colocado neste presente tomado por um furor higienista, classificador, objetivante e tipicamente novecentista que, penso, deveria estar já superado pelas lutas e questionamentos que marcaram o século XX: Wo Es war, soll Ich werden.
Os que têm uma mínima familiaridade com a obra de Jacques Lacan conhecem seu gesto disruptivo em relação à ortodoxia freudiana de caráter normativo/adaptativo ao propor, em vez da tradução consagrada por James Strachey, "Where the id was, there the ego shall be" ["Onde estava o id, ali estará o ego"], esta outra, preciosística em sua atenção às possibilidades significantes do texto freudiano: "Là où c’était, [peut-on dire], là où s’était, [voudrions-nous faire qu’on entendit], c’est mon devoir que je vienne à être"[1]. Costumamos encontrar à guisa de tradução brasileira esta forma simplificada: "Lá onde isso era, eu devo advir" (ou mais extensa e próxima ao francês, como a proposta por Garcia-Roza: "Ali onde se estava, ali como sujeito devo vir a ser"[2]; ou, ainda, sinteticamente, afirmando plenamente a psicanálise como talking cure, “Ali onde Isso fala, devo advir”). Temos, nesta perspectiva posta por Lacan, o passe de uma psicanálise adaptativa, na qual "o ego deve ocupar o lugar do id" (aclimatada ao espírito anglo-saxão, poderíamos dizer), para outra que aspira operar, em seu curso, uma subversão do sujeito em sua tomada de posição quanto ao desejo [onde Isso fala, devo advir].
Não pretendo aqui, com estas observações, entrar nos desdobramentos que podem ser pensados a partir dessas traduções/traições/subversões do texto freudiano, nem dedicar-me a mais um ensaio sobre a problemática do eu tal como pensada por Freud ou Lacan, mas tão somente tomá-la como leitmotiv para trazer à cena inquietações que penso ser mais do que legítimas em um momento em que, graças a uma certa neurociência em aliança com a indústria [farmacêutica, mas não só] e a mídia, a normatização médico-psiquiátrica recupera seu esplendor dos escombros iluministas do século XIX, arrastando consigo uma multiplicidade de saberes psi que até recentemente persistiam - ou aparentavam persistir - em uma ainda que tênue afirmação de autonomia e resistência.
A referência a Freud e sua enigmática afirmação é mais do que um artifício entre outros possíveis. Após ter deslocado a hegemonia novecentista/iluminista do saber psiquiátrico com a invenção do inconsciente, levando os psiquiatras a uma busca dos saberes psicanalíticos como suporte para uma apreensão fenomenológica da doença, hoje é a psicanálise que, muitas vezes capturada numa ilusão objetivista e redutiva que acaba por negar a própria teoria freudiana e seus matizes, não cessa de ser seqüestrada pelo saber psiquiátrico de base biológica (e sua nosografia – representada pelo CID-10 e pelo DSM-IV –, que expressa um saber que chega a se afirmar a-teorético,[3] posto que fundado em "resultados", em "tratamentos", e, por conseqüência, na "verdade" do organismo e em uma concepção reducionista de sua "saúde" como "ausência de mal-estar"), reduzindo-se a uma máquina - ainda que um tanto emperrada, buscando afirmar-se ainda eficaz - de identificação e interpretação de sintomas. Uma ferramenta teórica que, ao reduzir-se a codificadora (ou decodificadora, via interpretação) dos quadros sintomáticos descritos pela nosografia psiquiátrica, em relação de exterioridade ao que se propõe conhecer, corre o risco de tornar-se ciência aplicada, em lugar de implicada[4].


CONTINUA! texto em construção.
[*] Este título foi roubado imaginária e literalmente de um artigo que não li: "Arte: onde havia sublimação, que advenha angústia", de M. Meiches e E. Alperowith, publicado, conforme referência, em Percurso, n. 15, 1995, pp. 82-88. O artigo consta das referências bibliográficas de FRAYZE-PEREIRA, João A. Arte, dor; inquietudes entre Estética e Psicanálise. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2005. Esse título remeteu-me imediatamente - por obviedade - à frase de Freud e ativou em mim o desejo de escrever sobre as inquietações a respeito dos impasses da clínica contemporânea que tenho manifestado persistente e insistentemente em palestras e em salas de aula. Espero que o desenvolvimento do texto justifique o roubo. Como o texto está sendo produzido "ao vivo", são bem-vindas as participações por meio de comentários.

[1] Que podemos traduzir, conservando a literalidade do texto: “Lá onde Isso estava, pode-se dizer, lá onde S’estava, deveremos fazer com que se entenda, é meu dever que eu venha a ser”.
[2] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1984. p. 209.
[3] Ver, a respeito, os artigos publicados em MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (org.) Psicofarmacologia e psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. Ver também Joel BIRMAN, Diagnósticos da contemporaneidade, in MACIEL JR., Auterives; KUPERMANN, Daniel; TEDESCO, Silvia (org.) Polifonias: clínica, política e criação. Rio de Janeiro: Contracapa/Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, 2005. p. 101-108.
[4] Esse é um cenário comum nos cursos de Psicologia, particularmente naqueles que se inscrevem como "Ciência da Saúde", afastando-se de seus pares das Ciências Humanas (a sociologia, a investigação etnográfica, a filosofia, as artes...). A Psicologia "alimenta-se" a bel prazer de conceitos freudianos (e, em menor grau, junguianos e reichianos e winnicotianos e... e...), particularmente quando se trata de instrumentar-se - para dar um exemplo dos mais gritantes - para a leitura de testes projetivos os mais diversos, sem que necessariamente implique-se com o fazer teórico da psicanálise (ou de qualquer outro campo de produção de conhecimento) e sua pragmática. Mas não só. Essa implicação, como veremos, é bem mais exigente e mais ampla.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

ARTIFÍCIOS PERROS. CARTOGRAFIA DE UM DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO, por Cynthia Farina


Saltando ou de quatro, eram as maneiras como se podiam cruzar as insólitas aberturas que conduziam à sala da instalação. Toda vermelha, a sala continha risos nervosos estirados sobre um colchão com almofadas no centro. Risos que não se desgrudavam de um vídeo caseiro projetado numa grande tela de TV, a um metro do colchão. Risos atentos a anatomias inverossímeis, a fotografias desconcertantes, expostas nas paredes da sala. A mesma pessoa havia fotografado, desenhado, filmado e projetado as imagens. A mesma pessoa que era também imagem, motivo, tema e personagem das cenas e do cenário: o artista. Ele compartilhava o protagonismo das imagens com dois mais, um deles que sobre as duas patas traseiras media mais ou menos a sua altura, e um filhote, talvez da mesma raça que o animal adulto. Os risos voyeurs acomodados no colchão apreciavam incômodos o despojamento e a sedução das aproximações corporais até o ato em si, até a relação sexual entre os dois machos adultos das duas espécies. O homem, de quatro, acolhia o cachorro que se sustentava em duas patas. Este, toda uma virilidade protagonista.
Para ler o texto na íntegra, clique aqui.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Agenciamento, por Luiz Fuganti

O conceito de agenciamento opera um duplo ultrapassamento em relação ao modo de pensar da tradição inaugurada pelo humanismo moderno. Por um lado, destitui a idéia dominante de uma natureza humana a priori - cuja forma legitimaria o senso comum do sujeito do conhecimento, a partir da constituição de um modo superior de desejar, neutro e desinteressado; por outro, desqualifica a verdade dos valores universais extraídos ou descobertos a partir de um plano de objetos ideais em si, constitutivo do bom senso - plano pretensamente superior ao plano de natureza e das forças de produção das formações sociais (ainda banhado de paixões humanas interessadas e parciais por natureza), - como fundamento que torna possível o conhecimento verdadeiro, imparcial e universal.

Essa dupla ilusão, a de um fundamento neutro formal da subjetividade e a do fundamento ideal como valor em si constituinte da universalidade dos valores humanos, engendra a insípida idéia de autonomia moral e racional como liberdade e conhecimento possíveis do homem. Operar sua desconstrução ao mesmo tempo em que se destitui a idéia de uma interioridade como instância unitária e primeira da vontade ou do desejo, mesmo e sobretudo de caráter natural, suposta como separada e como primeira natureza do homem, juntamente com a destituição da idéia de intencionalidade ou finalidade do desejo, mesmo e sobretudo quando seu objeto se interioriza na pura forma do Dever, é uma tarefa de primeira ordem para quem quer realmente criar um novo conceito e uma prática de educação que invistam na potencialização das capacidades criativas do homem.

Para Deleuze e Guattari, criadores do conceito de agenciamento, a Natureza é Fábrica. Como em Spinoza, fábrica de si mesma e de tudo que dela decorre. E o que produz essa fábrica? Real, nada mais, nada menos do que o próprio real como produto de sua Potência absoluta de Acontecer. Ora, se a natureza não é algo dado, mas uma realidade que não pára de produzir-se a si mesma, também as partes que a compõem e dela participam não param de ser produzidas e de participar da produção de si mesmas. E se nós somos partes efetivas dela, não há sujeito ou natureza humana natural já pronta, nem mesmo em progresso ou processo de melhoramento ou reforma de uma essência original, como querem moralistas, racionalistas e humanistas. Também não podem haver objetos ideais ou valores universais que permaneceriam imutáveis num plano que a transcenderia. A natureza humana, seu meio específico e seus objetos estão em processo ininterrupto de modificação e produção de si nos devires, tempos e movimentos reais que atravessam a existência desse animal que se autodenomina homem.

A idéia de uma forma humana espiritual e superior à natureza emerge como uma ilusão de consciência, a qual pressupõe um plano de realidade separado como origem da representação do real e que legitimaria o corte homem/natureza, cultura/natureza, industria/natureza. A virtude dessa forma se manifestaria ao longo de sua história, no desenvolvimento de suas relações internas, desdobrando-se em uma prática moral cada vez mais desinteressada e em um conhecimento racional e científico cada vez mais universal, apesar de cada vez mais especializado. Essa forma racional de conhecer e modo moral de se conduzir tornam-se suportes de uma suposta autonomia formal, constitutiva do lugar da autoridade, autorizada e autorizante, que fariam das forças mais nobres da vida função de valores de progresso, desenvolvimento e aperfeiçoamento da Forma-homem, cujo sentido é em última instância determinado pelas forças constitutivas do tipo de poder que ela integra: nesse sentido, a organização de um corpo eficiente e a formação para uma capacitação de um sujeito competente tornam-se o horizonte comum das práticas do homem sobre si mesmo. Ora, se a educação é a porta de entrada para a inserção da vida humana nesse processo de formação, já adivinhamos sob quais pressupostos ela opera.

Na verdade, todo esse plano de organização de uma formação social pressupõe um diagrama virtual e não formal de relações de forças que trabalha de modo microfísico e micrológico, atualizando-se ou concretizando-se através de agenciamentos de poder, que constituem-se como dispositivos ou máquinas concretas sociais de produção de subjetividade e de produção de individualidade. Uma verdadeira fabrica de modos de subjetivação, de individuação e de objetivação. Esses a priori formais em verdade são resultados de compostos de forças, produzidos a posteriori. Em outras palavras, foi preciso antes que essa Forma ou Estrutura humana fosse produzida ou inventada (não por Deus ou por uma Natureza natural ou Humana em evolução espontânea ou inteligente) e constituída como condição de produção de pessoas ou sujeitos (morais e de conhecimento). E conforme a natureza ou qualidade das relações de forças que a compõem e que ela integra, ou conforme a natureza ou qualidade do conjunto afetivo (ações e paixões) que tece uma formação de um corpo social que a sustenta e que ela unifica, essa Forma regula o grau de captura ou de soltura do desejo. Por aqui se pode avaliar a qualidade dos modos de viver que essa formação de poder necessita produzir e/ou é capaz de suportar, que se constitui nela e que ela constitui como legítimos modos de desejar e pensar normais.

Durante demasiado tempo a modernidade permaneceu prisioneira da idéia de uma consciência em si como entidade fundante do conhecimento, da verdade científica, e também da noção de uma consciência universal do homem capaz de ultrapassar e se sobrepor aos modos ideológicos de saber e aos seus interesses sempre parciais de poder, com suas armadilhas e modos de ocultar, manipular e usurpar.

Deixamos nos aprisionar por esquecimento do que nos torna cúmplices, cegueira, ilusão ou covardia? Porque insistimos em não perceber que a verdade objetiva tanto quanto o sujeito do conhecimento, seu lugar e forma de emissão de verdade, autorizado e autorizante, são produtos de um agenciamento maquínico que serve de função a algo que captura a vida de fora? Será que nosso modo de viver não está ligado a um agenciamento de poder que ao mesmo tempo nos captura e separa de nossas potências próprias de criar realidade, mas também nos sustenta e liga nossa impotência ao poder de reproduzir e transmitir ordens? Qual vantagem recebemos como recompensa pela concessão que fazemos?

Quando Foucault, inspirado em Nietzsche, veio nos mostrar que formas de discursos e formas de sensibilidade constituíam-se como verdadeiros dispositivos de produção de corpos submetidos e mentes assujeitadas, que operavam fabricando subjetividades e corporeidades, nas famílias, escolas, quartéis, fábricas, hospitais, prisões, universidades etc., logo quis-se reduzir o alcance dessa desconstrução e do papel desses dispositivos a modos econômicos de produção ou a aparelhos ideológicos de Estado, sequer supondo que ao contrário, eram os modos econômicos e regimes políticos que em certo sentido dependiam de regimes de sensibilidade e regimes de linguagem.

O conceito de agenciamento torna-se então um operador de primeira ordem, uma vez que remete ao modo concreto de produção de realidade, em qualquer dimensão, material ou imaterial, e não à uma verdade que representaria o real. O agenciamento é antes de tudo um ACONTECIMENTO multidimensional. Todo agenciamento incide sobre uma dupla dimensão: 1) uma dimensão relativa às modificações corporais (ações e paixões) ou estados de coisas que efetuam um acontecimento, remetendo-os a uma formação de potências; 2) uma outra dimensão relativa às transformações incorporais ou enunciados de linguagem (atos) que efetuam o acontecimento na sua face incorporal e que remetem a um regime coletivo de enunciação. Estas duas dimensões são necessariamente atravessadas por um duplo processo e um duplo movimento: processo de descodificação das formas (forma própria do regime corpóreo e da forma própria do regime de signos ou da linguagem); e um movimento de desterritorialização ou de dessubstancialização das substâncias (das substâncias corporais ou coisas - estados do movimento - e das substâncias incorporais ou palavras - estados do sentido ou do tempo). A forma dos corpos e seus estados remete a lição das coisas. A forma do discurso remete à lição das palavras. As duas dimensões estão em pressuposição recíprocas e se atravessam e se conjugam, apesar de suas formas próprias heterogêneas manterem-se irredutíveis e autônomas. Esse atravessamento é provocado pela variação dos movimentos de desterritorialização e processos de descodificação do desejo, e faz mudar ora o estado das coisas e a condição de sensibilidade, ora o sentido de mundo e a condição de dizibilidade. Nessa medida, compreendemos que uma linha de fuga (ou de acontecimento) absoluta e virtual atravessa toda experiência real, pondo em variação permanente suas condições, e portando condicionando todo o processo de apreenção e produção do real. Assim também coloca-se em variação as condições de ensino e aprendizado: essa linha de variação virtual acaba por constituir, conforme o agenciamento que a efetua, os limites do que pode ser sentido, movido, dito ou pensado.

Se um agenciamento liga, conecta, conjuga, compõe, combina, produz, fabrica, reveza, distribui e consome corpos e mentes, movimentos e pensamentos, então podemos colocar assim o problema da educação: a qual tipo de agenciamento acoplamos a vida que queremos ensinar e criar e a nossa que pretende ensinar? Se as ligamos a um agenciamento negativo de poder, nossa educação será uma EDUCAÇÃO PARA A OBEDIÊNCIA. Se as ligamos a um agenciamento afirmativo de potência, a educação que teremos será uma EDUCAÇÃO PARA A POTÊNCIA.

Fonte: www.escolanomade.org

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A vida de Spinoza, por Colerus


Tradução: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

Trecho:

De resto, se sua maneira de viver era bem regrada, sua conversação não era menos suave e agradável. Sabia admiravelmente bem ser o mestre de suas paixões. Não foi jamais visto nem muito triste nem muito alegre. Ele sabia se dominar na cólera e nas contrariedades que lhe sobrevinham, e não os deixava transparecer; a menor demonstração de seu pesar por algum gesto ou por algumas palavras, ele não hesitava em se retirar no mesmo instante, para nada fazer que fosse contra a conveniência. Ele era muito afável e de um trato fácil, falava freqüentemente com sua hospedeira, particularmente nos períodos de seus partos, e aos da casa quando lhes sobrevinha alguma aflição ou doença; ele não deixava então de consolá-los e de exortá-los a sofrer com paciência dos males, que eram como uma parte que Deus lhes havia designado. Prevenia as crianças de assistir freqüentemente na igreja ao serviço divino, e lhes ensinava o quanto elas deviam ser obedientes e submissas a seus pais. Quando as pessoas da casa retornavam do sermão, perguntava-lhes sempre que proveito tinham alcançado e o que haviam retido para seu aperfeiçoamento Ele tinha uma grande estima pelo meu predecessor, o doutor Cordes, que era um homem sábio, bom naturalmente e de uma vida exemplar; o que dava ocasião a Spinoza de fazer-lhe sempre o elogio. Ele ia mesmo algumas vezes ouvi-lo pregar, e destacava sobretudo a maneira sábia com que explicava a Escritura e as aplicações sólidas que lhe dava. Ele advertia ao mesmo tempo, o seu hospedeiro e aos da casa, a não faltar jamais a nenhuma pregação de tão hábil homem.

Uma vez sua hospedeira perguntou-lhe se acreditava que ela pudesse salvar-se com a religião que professava; ao que respondeu: Vossa religião é boa, vós não deveis procurar outra nem duvidar que vós não obtenhais vossa salvação, contanto que ao vos dedicar à piedade, vós leveis ao mesmo tempo uma vida agradável e tranqüila.

Enquanto permanecia em casa não incomodava a ninguém, passava a maior parte de seu tempo tranqüilamente em seu quarto. Quando lhe acontecia de se encontrar fatigado por ser muito dedicado a suas meditações filosóficas, ele descia para se distrair, e falava aos da casa de tudo o que pudesse servir de matéria a um entretenimento ordinário, mesmo de frivolidades. Entretinha-se também algumas vezes a fumar um cachimbo; ou então, quando queria relaxar o espírito um pouco mais longamente, ele procurava aranhas e as fazia brigarem entre si, ou as moscas que ele jogava na teia de aranha, e olhava em seguida esta batalha com tanto prazer que às vezes caía na risada. Observava também ao microscópio as diferentes partes dos menores insetos, de onde tirava depois as conseqüências que lhe pareciam mais convenientes as suas descobertas.

De resto, ele não tinha nenhum apego ao dinheiro, como nós tínhamos dito, e se contentava em ter, sem se preocupar com o futuro, o que lhe era necessário para sua alimentação e para sua subsistência. Simon de Vries, de Amsterdã, o qual testemunhou muita afeição por ele na Carta vigésima sexta e que o chama ao mesmo tempo seu fidelíssimo amigo (amice integerrime) [NT39], lhe deu um dia de presente uma soma de dois mil florins, para que pudesse viver com um pouco mais de bem-estar; porém Spinoza, em presença de seu hospedeiro, escusou-se polidamente a receber este dinheiro, com o pretexto de não ter necessidade de nada, e que tanto dinheiro, se ele o recebesse, o desviaria infalivelmente de seus estudos e de suas ocupações.

O mesmo Simon de Vries, aproximando-se de seu fim e vendo-se sem mulher e sem crianças, quis fazer seu testamento e o instituir herdeiro de todos os seus bens; porém Spinoza não quis jamais consentir, e demonstrou a seu amigo que não deveria pensar em deixar seus bens, a outro que não fosse o seu irmão que morava em Schiedam, visto que era o mais próximo de seus parentes, e devia ser naturalmente seu herdeiro.

Isto foi executado como ele havia proposto; entretanto, o foi com a condição de que o irmão e herdeiro de Simon de Vries, desse a Spinoza uma pensão vitalícia suficiente para sua subsistência; e esta cláusula foi também fielmente executada. Porém, o que há de particular, é que em conseqüência ofereceu-se a Spinoza uma pensão de quinhentos florins, a qual ele não aceitou porque considerou-a excessiva, de forma que a reduziu a trezentos. Esta pensão lhe foi paga regularmente durante sua vida, e após sua morte, o mesmo Vries de Schiedam se ocupou, ainda, em pagar ao Sr. Van der Spyck o que pudesse lhe ser devido por Spinoza, como aparece na carta de Jean Rieuwertz, impressor da cidade de Amsterdã, encarregado dessa tarefa: ela está datada a 6 de março de 1678 [NT40] e endereçada a Van der Spyck.

Pode-se ainda julgar o desinteresse de Spinoza pelo que ocorreu depois da morte de seu pai. Havia que dividir a herança entre suas irmãs e ele, divisão que lhes haviam imposto judicialmente, apesar de elas terem feito todo o possível para excluí-lo. Porém no momento de repartir, lhes deixou tudo, e não reservou para o seu uso mais do que uma cama, que era realmente muito boa, e as suas sanefas.

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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Má consciência em Nietzsche

Compilação de textos e comentários: Amauri Ferreira

“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem. [...] Todo o mundo interior [...] foi se expandindo e se extendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. [...] esse animal que querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente [...] esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da ‘má consciência’. Com ela, porém foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.
[Interiorização das forças ativas: impedidas de serem vazadas, as forças ativas tornam-se reativas, voltando-se para dentro do próprio homem, multiplicando as dores. Esse primeiro aspecto da má consciência é uma operação efetuada através dos castigos impostos pelo Estado – castigos realizados pela vingança, pelo ódio. Através dos castigos produziu-se uma memória: a da obrigação pessoal. Somente assim o homem tornou-se domesticado, culminando no homem civilizado moderno. Diagnóstico de Nietzsche: o homem moderno degenera porque ainda não se curou da má consciência – essa sinistra doença. É através da interiorização dessas forças ativas que o homem faz uma concepção fictícia de um desejo como falta. Ora (como é evidente), separado da capacidade de afirmar a sua natureza, o homem moderno continua a ser movido por uma vontade de potência, porém, sob o signo da carência. É a potência como representação, como objetivo, como alvo, como solução para os tormentos]

Neles [os fundadores de Estado] não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.

“[...] pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar os seus afetos [...] pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie.” Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15.
[Como as forças ativas, interiorizadas, não cessam de multiplicar as dores, o sofredor precisa de um alívio, por isso quer encontrar um culpado. O sacerdote judaico realiza o ressentimento como tipo, como forma, como criação de valores, ao apontar o indivíduo “mau”, que age de modo egoísta, feliz por si mesmo, como objeto de ódio do seu rebanho impotente. Já o sacerdote cristão realiza a má consciência também como tipo - ou forma - ao interpretar a dor do sofredor como uma falta, um pecado, ou seja,
o sofredor mesmo é culpado pela dor que sente]

“De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o defende também de si mesmo [...] ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento.” . Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15.

“Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma – e que forma! O ‘pecado’ – pois assim se chama a interpretação sacerdotal da ‘má consciência’ animal (da crueldade voltada para trás) – foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa” Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 20.

“[...] com Paulo, o sacerdote quis mais uma vez o poder – e só podia utilizar conceitos, doutrinas, símbolos, por meio dos quais se tiranizam as multidões e se formam rebanhos”. O Anticristo, 42

“Paulo [...] contra Roma, contra o ‘mundo’, o judeu, o judeu errante par excellence... O que ele adivinhou foi o modo como poderia atear um ‘incêndio universal’ com a ajuda do pequeno movimento sectário dos cristãos, à parte do judaísmo; como com o símbolo ‘Deus na cruz’ conseguira reunir num poder imenso tudo quanto era inferior.” O Anticristo, 58.

“[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 21.
[O golpe de gênio do cristianismo, diz Nietzsche. Paulo de Tarso estabelece uma interpretação da crucificação de Jesus como um ato de amor... aos fracos, oprimidos, amargurados, pisoteados, enfermos. O ódio judeu dá lugar ao “amor” cristão (‘Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem’). Mas esse “amor” é abastecido por um imenso ódio à vida, aos indivíduos fortes e saudáveis; ódio tornado explícito como nessa frase de Tomás de Aquino (que Nietzsche cita na Genealogia da Moral, primeira dissertação, 15): ‘Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação’. O ‘Juízo Final’, reino dos céus e inferno como armadilhas sacerdotais que servem para capturar a massa enferma. A dor interna passa a ser espiritualizada, encontra-se até benefícios ascéticos para continuar a experimentá-la, pois, desse modo, a alma enferma será curada no ‘além’ e será finalmente feliz - é sempre por vontade de potência que essas sandices são investidas...]

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

ESQUIZOANÁLISE: CURSOS AGOSTO/DEZEMBRO

Coordenação: Valter A. Rodrigues

A constituição da modernidade enquanto projeto social, histórico, político e cultural, se sustenta num conjunto de proposições articuladas entre si para a produção de uma maneira específica de organização dos modos de vida, a saber, aquele amparado no princípio da racionalidade humana e seus desdobramentos (identidade, ordem, perfeição, saúde etc.). Disso decorre o desenvolvimento de saberes e práticas hegemônicos, responsáveis por forjar um novo modelo político (democracia representativa), uma nova economia (capitalista), um novo conhecimento (as ciências humanas) e, particularmente, a fabricação do sujeito (individual, interior, racional etc.), talvez a invenção mais contundente e importante desse arcabouço.
Se por um lado a psicanálise, também resultante deste processo, promove uma ruptura nas bases do projeto moderno - ao desvelar a aparência de verdade erigida em torno do sujeito da razão -, por outro ela institui um novo lugar de verdade, inscrevendo o sujeito moderno no registro inflexível da triangulação edipiana como inexorável determinação, totalmente respaldada pelo discurso psicanalítico, instrumento privilegiado de exercicio de poder na contemporaneidade. Assim, a psicanálise opera um deslocamento do saber e da prática que vai da ruptura à institucionalização, passando, com Lacan, por uma releitura dos textos freudianos em composição com o pensamento estruturalista.
Uma contrapartida crítica se apresenta com o surgimento da esquizoanálise, um modo de pensamento que se compõe a partir de conversações entre filosofia, ciência e arte, ultrapassando e mesmo diluindo as fronteiras convencionalmente supostas entre estes campos do saber. Estabelecendo conversações com a filosofia dos pré-socráticos (principalmente dos estóicos e de Epicuro), de Espinosa, Leibniz, Hume, Nietzsche, Bergson, Foucault e outros que têm como traço comum a oposição à tradição racionalista/transcendente na história da filosofia, tal postura crítica se expande e se multiplica rizomaticamente (sem origem, sem hierarquia... em transversalidade) ao incorporar a produção científica cujo paradigma já se desloca da tradição moderna (biologia molecular, física quântica...) e, num movimento mais ousado, o diálogo sempre aberto com a arte, da literatura ao cinema.
Resultante do encontro entre o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista/militante político Félix Guattari, a esquizoanálise produz suas questões em meio às problemáticas do presente, com uma preocupaçao ética, estética e política sobre a existência, tensionada pela idéia de que o desejo - entendido aqui como produção, e não como falta - efetua o impulso criativo de subjetivações outras, potencializando a vida em múltiplas direções, sem o apelo a sobredeterminações normativas ou a essencialidades naturalizantes, mas sempre ligada ao imanente pensamento da diferença. Daí emerge uma nova sensibilidade estética (a vida como obra de arte), uma nova possibilidade ética (a ética do acontecimento) e, sobretudo, uma atenção à expressão de modos de vida singulares em sua processualidade.
Em parte pela relativa "novidade" das idéias, propostas e articulações, mas principalmente pela marcada resistência - recíproca, diga-se - existente entre este novo modo de pensar e a academia tradicional, a esquizoanálise ainda é pouco difundida nas instituições universitárias, o que não tem impedido sua difusão crescente no Brasil e na América Latina como um todo. Suas contribuições têm sido cada vez mais notadas nas práticas desenvolvidas no sentido da promoção da autonomia e da produção de modos de vida ativos, seja no âmbito social, comunitário, grupal, individual etc. A esquizoanálise é uma maneira outra de pensar, sentir e fazer. Uma nova ética.

1 - ESQUIZOANÁLISE - Módulo I: UMA INTRODUÇÃO
Vejo o inconsciente como algo que se derramaria um pouco em toda a parte ao nosso redor, tanto nos gestos, nos objetos cotidianos, na tevê, no clima do tempo e mesmo, e talvez principalmente, nos grandes problemas do momento. Logo, um inconsciente trabalhando tanto no interior dos indivíduos, na sua maneira de perceber o mundo, de viver seus corpos, seu território, seu sexo, quanto no interior do casal, da família, da escola, do bairro, das usinas, dos estádios, das universidades [...] Um inconsciente cuja trama não seria senão o próprio possível, o possível à flor da pele, à flor do socius, à flor do cosmos... [Felix Guattari]

O curso tem como objetivo principal apresentar aos participantes o panorama contextual em que surge a esquizoanálise, a partir do cenário histórico e conceitual que se desenha na modernidade, bem como uma introdução aos fundamentos e proposições que delineiam o território de expressão deste pensamento. Com isso, abre-se aos participantes uma primeira via de estudo e discussão da produção do pensamento micropolítico de Deleuze e Guattari.

Início: 16 de agosto de 2008 / Horário: todos os sábados, das 9 às 12 horas / Carga horária: 60 h/a (20 encontros de 3h/a) / Certificação: FTC - Colegiado de Psicologia / Valor: 1 + 4 de R$ 90,00. / Vagas: 25 [vinte e cinco] / Local: FTC - Faculdade de Tecnologia e Ciências, campus Vitória da Conquista Rua Ubaldino Figueira, no. 200, Exposição - Vitória da Conquista - BA

2 - ESQUIZOANÁLISE - Módulo II: MICROPOLÍTICAS DO DESEJO
O dualismo conservar/transformar ocupa todo o espaço da percepção política comum; dificilmente se concebe uma atitude política que não vise nem a conservar nem a transformar, tampouco – como no caso do reformismo – a transformar o que se conserva ou a conservar o que se transforma, quer dizer, a adaptar. [...] Deleuze sempre evitou propor o que quer que fosse, embora essa abstenção tranqüila não exprimisse, a seus olhos, nenhum vazio, nenhuma carência. Em política, como em arte ou em filosofia, ele via em uma certa “decepção” a condição subjetiva propícia para algo de efetivo (um “devir”, um “processo”) [F. Zourabichvili]

Início: 09 de agosto de 2008 / Horário: todos os sábados, das 15 às 18 horas / Carga horária: 60 h/a (20 encontros de 3h/a) / Certificação: FTC - Colegiado de Psicologia / Valor: 1 + 4 de R$ 90,00 / Vagas: 20 [vinte] - fechado / Local: Av. Expedicionários, 798 - Recreio.

3 - A DIMENSÃO ÉTICO-AFETIVA DA CLÍNICA [estudos e supervisão]
O trabalho da clínica é acompanhar os movimentos afetivos da existência, construindo cartas de intensidade ou cartografias existenciais que registram menos os estados que os fluxos, menos as formas que as forças, menos as propriedades de si que os devires para fora de si. Traçamos, então, as linhas sedentárias, nômades, de fuga. Estas são as que se evadem dos territórios, que desmancham estados pelo efeito do aumento dos quanta afectivos de uma dada existência. Linhas de fuga que correm o risco constante de se tornar linhas de abolição e, nesse caso, os saltos qualitativos, as fendas criadas no contínuo de uma existência, podem nos precipitar em um buraco negro improdutivo. [...] [Eduardo Passos e Regina Benevides, Passagens da clínica]

No. vagas: 8 [oito] / Duração: indeterminado / Periodicidade: encontros semanais de 2:30 h / Valor: R$ 250,00 mensais / Público-alvo: psicoterapeutas, médicos e demais profissionais que se dedicam à clínica / Início: data e horário a definir com o grupo / Local: Centro Médico Itamaraty - Av. Octavio Santos, 381, sala 502.Tel.: (77) 8817-5456 e (77) 9136-6808

INSCRIÇÕES: Preencha a FICHA DE INSCRIÇÃO, indicando o curso escolhido, e envie para usinagrupodetudos@gmail.com
Maiores informações, ligue (77) 8817-5456 e (77) 9136-6808

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ressentimento em Nietzsche

Compilação de textos e comentários: Amauri Ferreira

“E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido [...] O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação.” Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6.

“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que novamente haja lugar para o novo.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
[As marcas duráveis, no estado de “digestão”, não penetram mais em uma consciência com “portas e janelas” fechadas. O esquecimento torna-se primordial para estabelecer essa saúde psíquica]

“Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[O deslocamento das marcas duráveis do inconsciente para a consciência é inevitável, em muitos casos. A diferença é que, para quem é ativo, as impressões alojadas na consciência não chegam a envenenar, o que não constitui um
tipo ressentido. Nietzsche, ao dizer que a vida saudável é aquela que sabe esquecer, não quer negar em absoluto que certas impressões estejam na consciência (por isso ele diz “fechar temporariamente” as portas e janelas da consciência). Embora essa questão não tenha sido abordada com profundidade por ele (o filósofo Henri Bergson, por exemplo, fez uma análise profunda sobre isso na obra “Matéria e Memória”), o problema se passa no uso das impressões alojadas na consciência: se for para julgar a vida, isso é nocivo; se for para a produção do futuro, aí já é um sintoma de uma vida saudável. Essa é uma reação imediata do homem ativo; o riso, também é uma outra reação imediata ativa]

“O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’...” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
[Analogia que Nietzsche faz com a assimilação psíquica (marcas duráveis no estado inconsciente) com a assimilação física (alimentos no estado de digestão, portanto, um processo inconsciente do corpo). O ressentimento estabelece-se como uma dispepsia, isto é, a ruminação constante das marcas na consciência, bloqueando as novas excitações que chegam ao nosso corpo. Tudo que é novo submete-se à marca durável alojada na consciência. A marca é re-sentida]

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[Aqui, Nietzsche utiliza a expressão “moral nobre” (como modo de vida ativo) apenas para contrapor à “moral dos escravos”, já que é evidente o sentido da palavra “moral” na filosofia de Nietzsche: sempre o lugar do “bem” e do “mal”. O ressentimento, já no seu segundo aspecto, passa a criar valores, ou seja, há uma inversão dos valores nobres pelos valores plebeus]

“[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele mesmo!...” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[Mau, pelo modo de valorar do ressentimento, é todo aquele que age de modo egoísta, sem pensar nas conseqüências. Portanto, mau é aquele que expressa a força que possui. Ora, tudo na natureza é um conflito de forças, de vontade de potência. Recebemos efeitos dos outros corpos sobre o nosso corpo, ou seja, inevitavelmente recebemos impressões de forças exteriores à nossa. Tudo que nos atinge é expressão de uma vontade de potência: a força do frio, do vento, do calor, da fome, da sede, etc. A impressão produzida em nós em um encontro com outra pessoa (voz, som, imagem, etc.), nada mais é do que o efeito de uma potência em choque com a nossa. Daí Nietzsche dizer que só há vontade de potência nas relações, que implicam, necessariamente, conflitos e resistências. Toda força está em relação com outra força. O tipo ressentido, já dominado por uma impressão, passa a acusar a “injustiça” da vida]

“’[...] sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, os pacientes, humildes, justos’.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13
[Neste trecho, Nietzsche nos diz sobre como a vingativa astúcia da impotência passa a inverter a imagem das coisas: o bom, agora, é aquele que degenera, que não efetua mais as suas forças]

“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências, triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força [...] apenas sob a sedução da linguagem [...] a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um ‘sujeito’ é que pode parecer diferente.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13.
[O tipo ressentido, ou homem reativo, encontra uma maneira de impedir a ação dos homens ativos: atribuir a culpa a eles por um dano sofrido. Isso significa que o homem ativo poderia não ter agido, poderia ter escolhido livremente não efetuar a força que possui. Ora, isso é uma ficção, já que não há um substrato anterior à ação. Não há livre-arbítrio. O homem ativo, quando deixa de agir, não é porque ele “escolheu” não ser mais ativo,
mas sim porque as forças ativas foram interiorizadas nele através da acusação realizada pelo homem do ressentimento. É somente assim que as forças reativas, e a moral do ressentimento, acabam triunfando: por subtração das forças ativas dos homens fortes]

“O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 11
[O homem ativo, por já efetuar a sua força, alegra-se com isso. Ele diz para si mesmo que é bom. Ele não precisa de um julgamento exterior que validaria a ação que efetua]

“São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doença, em algo deformante e ignominioso - elas nos induziram a crer que os pendores e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para com a nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo dessa imaginária ‘má essência’ da natureza!” A Gaia Ciência, 294.
[O padre (ou qualquer sistema de poder) ensina a antinatureza. Assim, os instintos são “maus” e devem ser controlados, vigiados]

domingo, 3 de agosto de 2008

Cartografias da diferença: vida, pensamento e invenção.



O grupo de leitura Cartografias da diferença: vida, pensamento e invenção se propõe a discutir a constituição do pensamento ocidental a partir da emergência da filosofia no mundo grego e dos desdobramentos práticos deste processo na contemporaneidade, percebendo as relações entre poder e saber daí resultantes. A idéia é criar possibilidades para um modo de pensar que desvie do paradigma da transcendência, tecendo um plano de pensamento autônomo, que dispense a exigência de qualquer referente que esteja além das práticas que estabelecemos na vida cotidiana. Esse grupo emerge numa atmosfera de inventividade para propiciar articulações com a filosofia da diferença, modo de pensar e viver à maneira do artista, criador de outros conceitos, outras idéias, outras sensibilidades, outras práticas. Esse coletivo deseja ativar o encontro com a potência singular da vida alegre.

Coordenador: Maicon Barbosa
Início: 3o de agosto
Local: FTC (módulo II, sala 204) - Rua Ubaldino Figueira, 200 - Exposição
Funcionamento: 20 encontros, com 2 h de duração cada, aos sábados.
Certificação: carga horária de 40 horas.
Valor: R$ 20,00 mensais.
Inscrições: neste blog [preencha a FICHA DE INSCRIÇÃO e envie para usinagrupodetudos@gmail.com] ou na Letras & Prosa Livraria e Café.
Informações: 8104-3984

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Curso "trans_form_ações do cotidiano: artes políticas pra moçada"
















Proposta

O curso trans_form_ações do cotidiano: artes políticas pra moçada tem por propósito constituir um espaço de formação crítica para jovens estudantes de ensino médio, pré-universitários e estudantes recém-chegados às instituições de ensino superior, com o intuito de criar outras perspectivas para o que chamamos de política no cotidiano. Trata-se de um curso prático de experimentação das dimensões políticas da vida diária, que pouco tem a ver com a política institucional/partidária presente nos noticiários e nos períodos eleitorais. Este curso tem por objetivo ampliar a compreensão do que de fato se faz político no dia-a-dia, mesmo e principalmente nas relações mais sutis que estabelecemos uns com os outros. Com isso, o que se pretende é apresentar ferramentas teórico-práticas úteis para a experiência política na formação acadêmica, construindo-a com arte e alegria, aquilo que torna vivo o espaço das escolas, das universidades e das ruas. Artes políticas pra moçada é uma tentativa de articular pessoas interessadas em fazer do cotidiano o território de invenção para outros modos de vida.

Coordenador
Eder Amaral

Período
de 16 de agosto a 22 de novembro de 2008.

Certificação
Carga horária de 60 horas

Vagas
25 [vinte e cinco]

Local
Faculdade de Tecnologia e Ciências (campus Vitória da Conquista)
Rua Ubaldino Figueira, nº 200, Exposição (próximo ao Parque de Exposição Teopompo de Almeida) – Módulo 2, Sala 203.

Funcionamento do curso
15 encontros de 2 horas de duração cada, sempre aos sábados e 30 horas de atividades práticas distribuídas ao longo do período de curso.


Inscrições
As inscrições para o curso trans_form_ações do cotidiano: artes políticas pra moçada são gratuitas. Como as vagas são limitadas, haverá uma entrevista no dia 09/08/2008 com os candidatos que enviarem sua ficha de pré-inscrição (disponível no blog do USINA: http://usinagrupodetudos.blogspot.com) até o dia 08/08/2008 para o e-mail do coletivo (usinagrupodetudos@gmail.com). Após a entrevista, será divulgada no blog do coletivo a lista dos candidatos selecionados para participar do curso, que começará no dia 16 de agosto de 2008, no horário e local divulgados na lista de candidatos.


PROGRAMA

1º ato – no lugar da ladainha, o grito

- Por que política[s]?
- Poder: a que[m] serve?
- Macropolítica e micropolítica
- Política e transformação do cotidiano
- “Casa de ferreiro, espeto de pau”: como sair dessa dificuldade?

2º ato – do estudante artista

- Arte e política
- Resistência e invenção
- O papel das mídias e o discurso da “era da informação”
- Ética e moral: qual é a diferença?
- Est/éticas da r/existência: a vida como obra de arte

3º ato – por um movimento estudantil que seja outro

- Que fazer?
- “Vivemos numa democracia”... ãn?
- Territórios políticos na escola
- Territórios políticos na universidade
- “Sejamos realistas, (((criemos))) o impossível”


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FOLDER
CARTAZ
FICHA DE PRÉ-INSCRIÇÃO