segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A política das nuvens, por Luis Antônio Baptista


O gavião sobrevoa a jaqueira, mas lá embaixo alguém permanece duro como o muro. Só, no pátio, um homem imóvel veste um uniforme azul. Parece uma grade que congela a paisagem, sabotando o desassossego da cidade. Este homem está no mesmo lugar há vários anos. Quem o vê avalia que nada entra ou sai da sua solidez gradeada. Fora do pátio, olhos arrastam corpos, corpos arrastam olhos, palavras vão e vem, gestos desdobram-se, projéteis se perdem, pessoas se imobilizam e movem-se vivas ou quase mortas. Mas onde ele está nada acontece. O pátio que o acolhe insinua ser uma cidadela vazia, cercada por muralhas indiferentes aos marcos que delimitem o aqui e um fora, pois neste lugar nada passa, nada ultrapassa, nada acontece. O rapaz não fala e não se move, faça chuva ou faça sol. É indefinida a sua idade, o tempo da sua pele confunde-se com o silêncio da hera enraizada no cimento a sua volta. Nuvens acima do telhado do hospício onde ele habita escapam de um desenho único, mas ele não. Dizem que a solidez de seus nervos e músculos encarna a esquizofrenia catatônica. O suposto diagnóstico justifica sua indiferença a tudo e a todos. As nuvens sobre o velho telhado ganham a forma dos encontros com aquilo que as tocam ou as atravessam; tocadas pelo vento, ou por sua ausência, libertam-se do fardo de cristalizarem-se em único desenho. Para o homem duro como o muro, segundo o diagnóstico psiquiátrico, ninguém o perturba, o afeta, ou o impele a ser outro; falta-lhe a curiosidade pelo mundo, a vulnerabilidade para ser contagiado por algo vivo, talvez o próprio mundo. Diz o diagnóstico que o paciente sofre um déficit relacional irreversível; vive só entre dores e fantasias. No hospício do Engenho de Dentro, localizado no subúrbio do Rio de Janeiro, pássaros sobrevoam jaqueiras, nuvens escapam do isolamento, cachorros percorrem o pátio, mas ele mantém-se lá como uma janela fechada que asfixia a cidade, apagando o que ela possui de possível. Muros e nuvens fazem política no subúrbio carioca.

Quando, a cada manhã, levado pelo enfermeiro, o homem duro sai do quarto para o banho de sol, o vira-lata lambe a sua perna catatônica como se o conhecesse há muito tempo. O cão lambe a pele que cheira a remédio, pula, circula à sua frente, late, e o rosto do homem continua o mesmo, impassível. O vira-lata pulguento entra e sai do hospício; ignora muros e grades que sabotem a cidade decretando o seu fim; circula na calçada reta em ziguezague, corre ao lado do saco plástico soprado pelo vento, cheira tudo o que encontra, atravessa o portão do hospício à cata de restos de comida, e pára ao lado do homem de uniforme azul. O cão prenuncia que algo pode acontecer; o diagnóstico de seu parceiro não bloqueia a efusividade de seus atos. Este animal, conhecido por todos do bairro, também faz parte daquele lugar onde nada acontece. O vira-lata pulguento, entre muros e nuvens, parece com a cidade ocupada por um emaranhado de histórias com diferentes intensidades, impedindo-a de conclusão ou de ser fixada em natureza morta.

Certo dia, ao atravessar a rua, o cão foi atropelado por um carro. A notícia chegou ao pátio, e o homem duro começou a dissolver-se, a perder gradativamente o fardo da catatonia. Os músculos das mãos, das pernas, dos pés começaram a descongelar. Nervos amoleciam. O rosto perdia o semblante rijo e, com lentidão, descontraía as linhas da face sem prazer, sem medo, sem tristeza; apenas movia-se com a alegria do gesto despossuído do peso do eu. Nesta metamorfose, o corpo tremia, um tremor que se iniciava nos músculos dos olhos e logo após arrastava-o para fora do pátio. O cão na calçada, atropelado, convocava-o para que alguma coisa fosse feita. O ocorrido na rua percorria os seus nervos, interferindo drasticamente na sina do seu destino catatônico. Pouco a pouco, a imobilidade do diagnóstico transformava-se no peculiar movimento: movia-se saindo de si, desvencilhava-se da solidão do nome escapando da lógica que o definia. Descongelado, sem o peso da imobilidade, iniciava o percurso com outro corpo, produzido pelo acontecimento inesperado. O paciente psiquiátrico era agora inominável. O azul do uniforme se esmaecia, dando lugar a uma cor inclassificável. .Atravessado pela cidade, libertava-se do destino enraizado em seus músculos. O homem móvel abriu sem dificuldade o portão do hospício e foi ao encontro do cão que gemia na calçada, com a pata dianteira ferida – o cão, porém, era muito sagaz; o atropelamento não conseguiu causar-lhe maiores problemas. O homem móvel pegou o cão e levou-o para a enfermaria do hospital. Lá, pediu ao enfermeiro mercúrio cromo e esparadrapo e realizou sozinho o curativo. O vira-lata medicado fugiu para a rua em ziguezague, e o homem, caminhando vivo, contrastava com a paisagem muda a sua volta, seguia em direção ao seu velho posto; um outro corpo o esperava. A força do gesto que recusa a sina do eu era lentamente dissipada.

O acontecimento acabou. Nervos e músculos começam a enrijecer. A identidade dura como muro retorna. Gaviões sobrevoam as jaqueiras. Nuvens sobre o telhado transfiguram-se em inesgotáveis formas, praticando a política dos encontros. Projéteis perdidos atravessam o bairro. O gesto catatônico cumpre a missão do seu destino. No corpo do interno de uniforme azul reverbera a força do lugar onde nada acontece, nada ultrapassa, nada atravessa. O homem móvel que foi perpassado por afetos torna-se gradativamente imóvel. A vida institucionalizada daquele lugar afirma-se apenas como ausência de morte. A alegria do inominável é expurgada daquele corpo. Sai de cena a cidade.


Leia o texto na integra em Corpocidade


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Carta de Nietzsche sobre Spinoza

Nietzsche

A Franz Overbeck na Basiléia (cartão-postal).

[Sils-Maria, 30 de julho de 1881]


Estou inteiramente espantado, inteiramente encantado! Tenho um precursor e que precursor! Eu não conhecia quase nada de Espinosa; que eu agora ansiasse por ele foi uma “ação do instinto”. Não só, que sua tendência geral seja idêntica à minha — fazer do conhecimento o afeto mais potente — em cinco pontos capitais de sua doutrina eu me reencontro, este pensador, o mais fora da norma e o mais solitário, me é o mais próximo justamente nestas coisas: ele nega o livre-arbítrio —; os fins —; a ordem moral do mundo —; o não-egoísmo —; o mal —; se certamente também as diferenças são enormes, isso se deve mais à diversidade de época, de cultura, de ciência. In summa: minha solidão, que, como sobre montes muito altos, com freqüência provocou-me falta de ar e fez-me o sangue refluir, é ao menos agora uma dualidão. —Maravilhoso! Aliás, meu estado de saúde de forma alguma corresponde às minhas esperanças. Tempo excepcional também aqui! Eterna variação das condições atmosféricas! — isso me leva ainda a deixar a Europa! Preciso ter céu limpo durante meses, senão eu não consigo avançar. Já 6 acessos graves, com duração de dois a três dias!!—Afetuosamente

Seu amigo.

Tradução Homero Santiago


Publicado nos Cadernos Espinosanos, n. XVI, jan-jun 2007 – ISSN 1413-6651.

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sábado, 5 de setembro de 2009

Pela arte das paixões alegres, por Morgana Barbosa Gomes


Resumo: Partindo da teoria dos afetos esboçada geometricamente na Ética de Espinosa, este texto transita pela noção de corpo elaborada pelo filósofo, propondo a compreensão de nossos afetos a partir não apenas de seus efeitos, mas também de suas causas e essências. A partir de tais gêneros do conhecimento, alcançaríamos a arte de cultivar paixões alegres, premissa para a conservação do homem, sua virtude primordial.

Palavras-chave: ética; corpo; afeto.


No entanto, não é pelas armas, mas pelo amor e pela generosidade que se vencem as almas (Espinosa)


Este texto é um convite ao pensamento. Mas trata-se do pensamento despido de sua roupagem vulgar. Nada do que aqui for pensado está isento de sensação. Tão pouco são palavras tecidas estritamente por mãos e mente, mas também pelo estômago, pelo útero, pelo coração. Se pensamento é ação, trata-se, portanto, de um convite à liberdade. E a liberdade aqui é mais um exercício do que a aparência falsa que comumente lhe atribuímos.

Esta é a premissa básica sobre a qual se sustenta este texto: pensamento enquanto ação, enquanto liberdade. Para tanto, é preciso rompermos algumas noções limítrofes herdadas pelo pensamento moderno, e, mais que isso, é preciso nos desfazemos de nossa tão arraigada moral. Faremos um percurso sobre a noção espinosiana de corpo e afeto, rumo à construção de uma verdadeira ética, cuja natureza não lhe permite ser ditada por nenhum Código, senão por equívoco conceitual. Os nossos Códigos de Ética já nascem estéreis.

Dentre os dualismos propostos pelo pensamento moderno, temos o que antagoniza corpo e alma, propondo ainda uma hierarquia entre eles, uma supremacia do primeiro pelo segundo. O racionalismo de Descartes acreditava que a razão era a melhor maneira de se alcançar o conhecimento. Alma e mente se equivaleriam, e as manifestações perceptivas do corpo seriam extensões inapropriadas para se chegar à verdade. A filosofia de Espinosa rompe com esta dicotomia, não fazendo distinções entre os afetos constituídos em um ou em outro. Pela tese do paralelismo, não há uma relação de causalidade entre mente e corpo, havendo, antes, uma relação de concomitância entre os dois, sendo, respectivamente, séries paralelas de Modos de Pensamento e de Modos de Extensão, ambas expressões equivalentes da essência da Substância. (cont.)


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MORGANA BARBOSA GOMES é jornalista (UESB – campus Vitória da Conquista), atriz e membro do Coletivo Usina.