segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Privatização familiar

Favela de Paraisópolis faz divisa com prédio de luxo no bairro do Morumbi, em São Paulo. Foto de Tuca Vieira.

Uma das questões mais essenciais da nossa época refere-se à crescente degradação ambiental e social que caracteriza as sociedades modernas. Vemos uma enorme valorização de tudo que é privado, em detrimento do espaço público. O filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari, através da contundente obra “Capitalismo e Esquizofrenia”, nos dizem que a família moderna tornou-se um microcosmo, virando as costas para a produção social. O homem moderno passa a caracterizar-se por um desenfreado consumo de imagens de dois tipos: imagens de pessoa social e imagens de pessoa privada. O que ele conhece através das transmissões televisivas, das capas de revistas ou dos anúncios publicitários é sempre uma imagem idealizada de um sujeito bem-sucedido profissionalmente e pessoalmente. Interessante captura do desejo: o homem moderno deseja uma vida bem-sucedida que é restrita às imagens oferecidas no conforto do seu lar.

Portanto, tudo passa a ser privatizado, na medida em que as vantagens que são oferecidas apenas podem ser adquiridas de acordo com o poder de compra de quem recebe essas imagens. Resta à família, fechada em si mesma, consumir as imagens que são preenchidas pelo campo de imanência do capitalismo – o que reforça a fissura entre ela e o campo social. Tudo passa a ser privatizado: o carro, a casa, os seguranças, o cachorro. Como dizem os anúncios publicitários com imagens de famílias sorridentes: “Você e sua família terão segurança e vantagens!”. Miséria, desespero e violência tornam-se apenas imagens televisivas – já não nos assustamos mais com isso. Porém, quando os efeitos sociais produzidos por uma privatização do sujeito explodem ao nosso lado, constatamos que a realidade do que se vê na televisão é bem diferente daquela que se vê com um olhar já sem adornos.

Entendemos que os problemas sociais e ambientais não são distintos da privatização da família. E na medida em que isso cresce, o cinismo surge à tona: dizem que ainda se espera amenizar esses problemas, mas desde que não coloque em risco a permanência dos interesses econômicos em que tudo segue privatizado. Na esteira de Deleuze e Guattari, nos parece ser de absoluta importância um despertar da prática micropolítica, onde o desejo deixa de investir em um sujeito privado e passa a abrir-se aos agenciamentos coletivos, criando novos espaços territoriais afetivos. Isso faz romper com uma divisão estabelecida socialmente, ou seja, a rigidez nos horários, a rotina, os compromissos (já que tal divisão torna não somente a família, mas também o sujeito num microcosmo), e restabelece o investimento do desejo naquilo que faz com que o novo, o inédito, o diferente, tornem-se aliados em uma transformação social.
Amauri Ferreira, Dezembro de 2007

5 comentários:

Anônimo disse...

Olá Amauri, Válter e aliados. Vi esta postagem pelo Agregador da Escola Nômade. Eu conhecia a foto, deixo aqui o link do local no maps do google, está bem no centro da imagem.

Aproveito para convidá-los para tomarem parte da Lista de Discussão da Escola Nômade. Também para emitirem seus pensamentos por lá.

Abraços e vamo que vamo!

Valter A. Rodrigues disse...

Vamo que vamo, Julio, fazendo a rede se expandir em suas conexões.
Quando vi a foto, a sensação que me veio foi de dejà-vu. Claro... Aqui em Conquista a miséria também não tem seu fora, ao contrário, ela também se condensa em zonas cinza no coração da cidade: Pedrinhas, bairro considerado de alto risco no centro da cidade... Vila América, um assentamento popular da prefeitura ilhado numa região de expansão imobiliária de elite (que, como na foto, conta com um muro que o separa de um condomínio de luxo...).

Já houve outros momentos na história humana em que se construia um fora para a exclusão: a prisão, o asilo, a periferia... Hoje, com a sociedade de controle reconfigurando a sociedade disciplinar, sofisticamos a coisa: são mantidos os modos disciplinares de vigilância sob o novo regime de controle pela sustentação da separação público/ privado num plus de subjetivação. Se antes bastava, para reconhecer-se distinto e "indivíduo", saber que em outro lugar, do qual se estava protegido numa respeitável distância, havia modos "distintos/inferiores/primitivos" de existência, hoje é necessário, para que se se reconheça "realizado" e "distinto" ter sob os olhos e numa relação próxima de vizinhança aquilo em relação ao qual constituo minha distinção (mas também minha ameaça). Não à toa, crescem as "ações e responsabilidades sociais".
Lembrando Canetti em Massa e poder, penso nos rituais construídos para os mortos, que têm, conforme ele nos diz, o principal objetivo de assegurar que os mortos não retornem para nos buscar (essa angústia do sobrevivente...). Hoje o "privado" (identificado à riqueza)se envolve nas ações sociais para manter o "público" (identificado à miséria) em seu lugar. Assim, cria-se a figura da/do miséria/miserável assistida/o. Vade retro. Fique em seu lugar que eu cuido de você aí (para que você continue aí e não me perturbe aqui - esse meu terror!). O convite que se faz é que sejamos todos exorcistas!!!!

Valter A. Rodrigues disse...

(continuando)[exorcistas] ... à maneira dos evangélicos neopentecostais que desautorizam e desqualificam os cultos afro apropriando-se de seus ritos...

Filosofia Livre disse...

Júlio e Valter. Essa foto é assustadora... Imaginem a situação: abrir a janela do seu confortável apartamento e olhar, todos os dias, uma favela dessas... É um soco no estômago.

Valter A. Rodrigues disse...

Sem dúvida!! Ao mesmo tempo, fico pensando (algo sadeanamente...): como seria, para um sujeito perfeitamente ajustado ao ethos narcísico contemporãneo, abrir a janela de seu confortável apartamento e se deparar com um outro apartamento, em outro condomínio, mais belo e luxuoso que o seu? O quanto suportaria seu espelho (esse "espelho meu, espelho meu") choques desse tipo reafirmados cotidianamente? (E ao pensar estas singelas reflexões, não consegui evitar a lembrança de um romance dos anos 80 que transformou-se em filme nos anos 90, Psicopata americano, sobre os yuppies e seus modus vivendi...)