quinta-feira, 10 de julho de 2008

Aula de Gilles Deleuze sobre Spinoza, em 24/01/1978

Trechos:
[...] Quando eu faço um encontro de modo que a relação do corpo que me modifica, que age sobre mim, combina-se com minha própria relação, com a relação característica do meu próprio corpo, o que é que acontece? Eu diria que minha potência de agir é aumentada; ela é aumentada ao menos sob aquela relação. Quando, ao contrário, eu faço um encontro de modo que a relação característica do corpo que me modifica compromete ou destrói uma de minhas relações, ou minha relação característica, eu diria que minha potência de agir é diminuída, ou mesmo destruída. Nós voltamos a encontrar aqui nossos dois afetos - affectus - fundamentais: a tristeza e a alegria.
E todas as paixões, em seus detalhes, Spinoza irá engendrá-las a partir desses dois afetos fundamentais: a alegria como aumento da potência de agir, a tristeza como diminuição ou destruição da potência de agir. Isso equivale a dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por uma certa relação característica, complexa, mas eu também poderia dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por um certo poder de ser afetado.
Ora, um corpo deve ser definido pelo conjunto das relações que o compõe, ou, o que dá exatamente no mesmo, pelo seu poder de ser afetado. E enquanto vocês não souberem qual é o poder de ser afetado de um corpo, enquanto vocês o aprenderem assim, ao acaso dos encontros, vocês não estarão de posse da vida sábia, não estarão de posse da sabedoria.
O que distingue uma rã de um macaco? Não são caracteres específicos ou genéricos, diz Spinoza, mas o fato de que eles não são capazes das mesmas afecções. Assim, seria preciso fazer, para cada animal, verdadeiros mapas de afetos, os afetos dos quais um bicho é capaz. Para os homens é a mesma coisa: os afetos dos quais determinado homem é capaz. Nesse momento percebe-se que, segundo as culturas, segundo as sociedades, os homens não são capazes dos mesmos afetos.
Um poder de ser afetado é realmente uma intensidade ou um limiar de intensidade. O que Spinoza realmente quer é definir a essência de alguém de maneira intensiva, como uma quantidade intensiva. Enquanto vocês não conhecem suas intensidades, vocês se arriscam a ter um mau encontro, e poderão muito bem dizer que é belo o excesso, a desmedida... porém não há desmedida, não há senão fracasso, nada além do fracasso. Advertência quanto às superdoses [overdoses]. É precisamente o fenômeno do poder de ser afetado que é excedido com uma destruição total.
Mas eu ainda não defini o que é a potência de agir. As auto-afecções ou afetos ativos supõe que nós estejamos de posse de nossa potência de agir e que, neste ou naquele ponto, tenhamos saído do domínio das paixões para entrar no domínio das ações.
Vocês vêem que, à diferença da idéia de afecção, ao invés de ser a apreensão da mistura extrínseca de um corpo com outro, ou do efeito de um corpo sobre outro, a noção elevou-se à compreensão da causa, a saber: se a mistura produz este ou aquele efeito, é em virtude da natureza da relação entre os corpos considerados e da maneira pela qual a relação de um corpo se compõe com a relação do outro corpo.
Se vocês consideram-se afetados de tristeza, creio que tudo está arruinado, não há mais saída, por uma razão muito simples: nada na tristeza, que diminui sua potência de agir, nada na tristeza pode induzi-los a formar a noção comum de algo que seria comum ao seu corpo e aos corpos que os afetam de tristeza. Por uma razão muito simples: é que o corpo que os afeta de tristeza só os afeta de tristeza na medida em que ele os afeta sob uma relação que não convém com a sua. Spinoza quer dizer algo muito simples, que a tristeza não torna ninguém inteligente. Na tristeza estamos arruinados. É por isso que os poderes têm necessidade de que os súditos sejam tristes. A angústia jamais foi um jogo de cultura da inteligência ou da vivacidade. Quando vocês têm um afeto triste, é porque um corpo age sobre o seu, uma alma age sobre a sua em condições tais e sob uma relação que não convém com a sua.
Você é afetado de alegria. Sua potência de agir é aumentada, isso não quer dizer que você esteja de posse dela, mas o fato de que você esteja sendo afetado de alegria significa e indica que o corpo ou a alma que o afeta desse modo afeta você sob uma relação que se combina com a sua, e isso abrange desde a fórmula do amor até a fórmula alimentar. Num afeto de alegria, portanto, o corpo que o afeta é indicado como compondo a relação dele com a sua, ao invés da relação dele decompor a sua. Desde então, alguma coisa irá induzi-lo a formar a noção do que é comum ao corpo que o afeta e ao seu, à alma que o afeta e à sua. Nesse sentido, a alegria torna inteligente. Sentimos que aqui há um truque interessante porque, método geométrico ou não, estaremos plenamente de acordo, ele pode demonstrá-lo. Mas existe um apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver. É preciso ter desde já um tal ódio às paixões tristes, a lista das paixões tristes em Spinoza é infinita, ele chegará a dizer que toda idéia de recompensa envolve uma paixão triste, toda idéia de orgulho, a culpabilidade. É um dos momentos mais maravilhosos da Ética.
É como se os afetos de alegria fossem um trampolim, eles fazem vocês passarem através de alguma coisa pela qual jamais poderiam passar se só existissem tristezas. Eles nos solicitam a formar a idéia do que é comum ao corpo que afeta e ao corpo que é afetado. Isso pode fracassar, mas pode ter sucesso e tornar-me inteligente. [...]
Tradução: Francisco Traverso Fuchs
Leia a transcrição na íntegra clicando aqui (também disponível em TEXTOS NA REDE)

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