sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ressentimento em Nietzsche

Compilação de textos e comentários: Amauri Ferreira

“E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido [...] O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação.” Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6.

“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que novamente haja lugar para o novo.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
[As marcas duráveis, no estado de “digestão”, não penetram mais em uma consciência com “portas e janelas” fechadas. O esquecimento torna-se primordial para estabelecer essa saúde psíquica]

“Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[O deslocamento das marcas duráveis do inconsciente para a consciência é inevitável, em muitos casos. A diferença é que, para quem é ativo, as impressões alojadas na consciência não chegam a envenenar, o que não constitui um
tipo ressentido. Nietzsche, ao dizer que a vida saudável é aquela que sabe esquecer, não quer negar em absoluto que certas impressões estejam na consciência (por isso ele diz “fechar temporariamente” as portas e janelas da consciência). Embora essa questão não tenha sido abordada com profundidade por ele (o filósofo Henri Bergson, por exemplo, fez uma análise profunda sobre isso na obra “Matéria e Memória”), o problema se passa no uso das impressões alojadas na consciência: se for para julgar a vida, isso é nocivo; se for para a produção do futuro, aí já é um sintoma de uma vida saudável. Essa é uma reação imediata do homem ativo; o riso, também é uma outra reação imediata ativa]

“O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’...” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
[Analogia que Nietzsche faz com a assimilação psíquica (marcas duráveis no estado inconsciente) com a assimilação física (alimentos no estado de digestão, portanto, um processo inconsciente do corpo). O ressentimento estabelece-se como uma dispepsia, isto é, a ruminação constante das marcas na consciência, bloqueando as novas excitações que chegam ao nosso corpo. Tudo que é novo submete-se à marca durável alojada na consciência. A marca é re-sentida]

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[Aqui, Nietzsche utiliza a expressão “moral nobre” (como modo de vida ativo) apenas para contrapor à “moral dos escravos”, já que é evidente o sentido da palavra “moral” na filosofia de Nietzsche: sempre o lugar do “bem” e do “mal”. O ressentimento, já no seu segundo aspecto, passa a criar valores, ou seja, há uma inversão dos valores nobres pelos valores plebeus]

“[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele mesmo!...” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[Mau, pelo modo de valorar do ressentimento, é todo aquele que age de modo egoísta, sem pensar nas conseqüências. Portanto, mau é aquele que expressa a força que possui. Ora, tudo na natureza é um conflito de forças, de vontade de potência. Recebemos efeitos dos outros corpos sobre o nosso corpo, ou seja, inevitavelmente recebemos impressões de forças exteriores à nossa. Tudo que nos atinge é expressão de uma vontade de potência: a força do frio, do vento, do calor, da fome, da sede, etc. A impressão produzida em nós em um encontro com outra pessoa (voz, som, imagem, etc.), nada mais é do que o efeito de uma potência em choque com a nossa. Daí Nietzsche dizer que só há vontade de potência nas relações, que implicam, necessariamente, conflitos e resistências. Toda força está em relação com outra força. O tipo ressentido, já dominado por uma impressão, passa a acusar a “injustiça” da vida]

“’[...] sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, os pacientes, humildes, justos’.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13
[Neste trecho, Nietzsche nos diz sobre como a vingativa astúcia da impotência passa a inverter a imagem das coisas: o bom, agora, é aquele que degenera, que não efetua mais as suas forças]

“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências, triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força [...] apenas sob a sedução da linguagem [...] a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um ‘sujeito’ é que pode parecer diferente.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13.
[O tipo ressentido, ou homem reativo, encontra uma maneira de impedir a ação dos homens ativos: atribuir a culpa a eles por um dano sofrido. Isso significa que o homem ativo poderia não ter agido, poderia ter escolhido livremente não efetuar a força que possui. Ora, isso é uma ficção, já que não há um substrato anterior à ação. Não há livre-arbítrio. O homem ativo, quando deixa de agir, não é porque ele “escolheu” não ser mais ativo,
mas sim porque as forças ativas foram interiorizadas nele através da acusação realizada pelo homem do ressentimento. É somente assim que as forças reativas, e a moral do ressentimento, acabam triunfando: por subtração das forças ativas dos homens fortes]

“O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 11
[O homem ativo, por já efetuar a sua força, alegra-se com isso. Ele diz para si mesmo que é bom. Ele não precisa de um julgamento exterior que validaria a ação que efetua]

“São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doença, em algo deformante e ignominioso - elas nos induziram a crer que os pendores e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para com a nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo dessa imaginária ‘má essência’ da natureza!” A Gaia Ciência, 294.
[O padre (ou qualquer sistema de poder) ensina a antinatureza. Assim, os instintos são “maus” e devem ser controlados, vigiados]

Nenhum comentário: