quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O VINHO E A FILOSOFIA

João Filipe Sebadelhe

Parte I

O VINHO

Um homem muito famoso que também era um grande imbecil, coisa que, ao que parece, combinam muito bem entre si como talvez tenha o doloroso prazer de demonstrá-lo mais de uma vez, num livro sobre a Gastronomia, elaborado do duplo ponto de vista da saúde e do prazer, ousou escrever o que segue no verbete VINHO: “O patriarca Noé passa por ser o inventor do vinho; é um licor feito com o fruto da videira.”

Que mais? Mais nada: é só. Por mais que folheiem o volume, o manuseiem em todos os sentidos, o leiam de trás para frente, de cabeça para baixo, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, não encontrarão mais nada sobre o vinho na Physiologie du Goût do mui ilustre e mui respeitado Brillat-Savarin: “O patriarca Noé...” é um licor”.

Suponhamos que um habitante da Lua ou de algum planeta longínquo, viajando no nosso mundo e cansado de longas etapas, queira refrescar a goela e esquentar o estômago. Faz questão de inteirar-se dos prazeres e dos costumes da nossa terra. Ouviu falar por alto de licores deliciosos nos quais os cidadãos dessa bola encontravam fonte inesgotável de coragem e alegria. Para acertar na escolha, o habitante da lua abre o oráculo do gosto, o célebre e infalível Brillat-Savarin e encontra, no verbete VINHO, esta preciosa informação: O patriarca Noé...e este licor é feito... Isto é extremamente digestivo. Isto é muito explicativo. Impossível, após a leitura desta frase, não ter uma idéia justa e clara de todos os vinhos, das diferentes qualidades, de seus inconvenientes, de seu poder sobre estômago e cérebro.

Ah! Caros amigos, não leiam Brillat-Savarin. Deus preserve aqueles aos quais quer bem das leituras inúteis; está é a primeira máxima de um livrinho de Lavater, um filósofo que amou os homens mais do que todos os magistrados do mundo antigo e moderno.

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Profundas alegrias do vinho, quem não vos conheceu? Todo homem que tenha tido que amenizar um arrependimento, evocar uma lembrança, afogar uma tristeza, construir um castelo de vento, todos enfim vos invocaram, deusas misteriosas escondidas nas fibras da videira. Como são grandes os espetáculos do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e ardente, esta segunda juventude que o homem nele encontra! Mas quão temíveis também suas volúpias fulgurantes e seus encantos exasperantes.

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O vinho é semelhante ao homem: nunca saberemos até que ponto podemos prezá-lo e desprezá-lo, amá-lo e odiá-lo, nem de quantas ações sublimes ou de delitos monstruosos ele é capaz. Não sejamos pois mais cruéis com ele que com nós mesmos, e tratemo-lo como nosso igual.

* Trechos da primeira parte d’O POEMA DO HAXIXE, de Charles Baudelaire.


Parte II

A FILOSOFIA

Abro a página 1344 do Houaiss, mui respeitado dicionário da língua portuguesa, e desconfio que o mesmo habitante da lua não iria se interessar muito pela possibilidade de desbravar as abóbadas da filosofia. Ouso escrever o que segue no verbete: “Amor pela sabedoria, experimentada apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância...investigação da dimensão essencial e ontológica do mundo real, ultrapassando a mera opinião irrefletida do senso comum que se mantém cativa da realidade empírica e das aparências sensíveis”.

Que mais? Por consider(ação) ao Lavater, prefiro nem registrar o resto! Não aparece ali o nome de Espinosa, Bergson, Nietzsche, Deleuze, Foucault, Ulpiano, Fuganti, Valter e outros tantos que não ousaram definir a arte de criar conceitos. Uma máquina de guerra serve para ser utilizada (vivida nas mais minúsculas práticas cotidianas), não para ser conceituada, definida e compreendida...para tal função já existem as máquinas acadêmicas.


Mas neste momento lembro-me de não esquecer a canção do Zeca (o que distribui balas): “Eu vou pra lua...lá tem mais calor humano...que o cinema americano”! Fica a esperança de que o habitante da lua não marginalizará as aparências sensíveis, mas não por causa da quantidade de calor humano presente por lá. O que pode valer, talvez, é o fato deste suposto calor humano ser demasiadamente permeado por uma camada grossa e superficial de gelo, o mesmo gelo que os integrantes das Quadrilhas colocam no copo de Whisky após um longo e cansativo dia de caça.

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Profundas alegrias da Filosofia, quem não vos conheceu? Todo homem que tenha tido que pentear os cabelos no momento mais perigo do dia - já que pensamentos são como cabelos, segundo Caio Fernando Abreu – e escovar o olhar...conheço uma porrada de pessoas que correm pelas avenidas cheias de remelas nos olhos. Todos que delicadamente se preparam para viver (e vivem) este século deleuziano, enfim vos invocaram.

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A Filosofia é semelhante ao Vinho. Assim como existem inúmeras vinícolas desprezíveis prontas para envenenar e embriagar cada porção do corpo, há uma série de escritos filosóficos preparados com amor pela sabedoria prontos para envenenar os corpos daqueles que ainda não tiveram (com)tato com as vísceras da SUBVERSIVIDADE (inter-zona autônoma entre a prática subversiva e a apropriação dos modos de produção pós-capitalísticos).

** Trechos da primeira parte d’O POEMA DA FILOSOFIA.


Um comentário:

Marx de Sá disse...

Ousemos interpretar ou classificar aquilo que nos vem ao encontro
reduzindo o que relamente é importante [da coisa] e cairemos na distancia dos acontecimentos e transformações...

Bela sacada e belo texto!