quarta-feira, 28 de maio de 2008

4. A compaixão dos fortes e o cuidado de si mesmo, por Amauri Ferreira

Um povo doente não conhece o sentimento elevado que as palavras amizade e amor podem expressar. Pela ótica vulgar, quem verdadeiramente ama (ou quem é verdadeiramente amigo) é o sujeito que abastece o outro somente com afetos alegres. Seja nos momentos de alegria e de tristeza, a presença do outro é uma exigência, como se sua prontidão para amar, para ser atencioso, fosse a prova do seu amor e amizade. O cristianismo bebeu muito dessa fonte, ao transformar o amor ao próximo em um bem supremo.
Mas quem não é causa da sua própria alegria, que não ama a si mesmo, exige que alguém lhe ame. De fato, é importante distinguir a diferença entre uma aliança de fortes e uma união de fracos: no primeiro caso, a relação de aliança não deixa escapar o surgimento da dor, pois o que também os mantém juntos é a grandeza de suportar a dor, de fazer um uso interessante dela, não reagindo de modo baixo, com acusações e exigências, mas entendendo que a dor é apenas um “mau jeito” que emerge no encontro dos corpos; já no segundo caso, quando a dor aparece, surge uma inimizade, que pode até transformar-se em ódio: o outro vira um inimigo. Ou seja, pelo campo de visão do ressentido, o outro torna-se um grande companheiro se continuar provando a sua capacidade de gerar somente afetos alegres; mas se na relação surgir também afetos tristes, o seu “verdadeiro” amor (ou sua “verdadeira” amizade) é colocado em dúvida: “Não, você não me ama”. A prova desse “não amor” é justamente o afeto de tristeza que surgiu, em um determinado momento, na relação. Submetido à ficção do “eu”, o sujeito que ressente imagina que o outro o ama por ter-lhe proporcionado prazer... Mas também pode imaginar que o outro não o ama por ter-lhe proporcionado desprazer. Então, imagina-se que o outro pode ter sempre boas ou más intenções... As suas exigências nunca acabam: logo após uma efêmera satisfação, segue uma insatisfação perturbadora. O amor ideal, o amigo ideal, ou uma espécie de “amor-amigo” ideal: o homem perfeito e a mulher perfeita são apenas ícones engendrados por uma carência afetiva que varre todo o campo social. O interessante é que quando se descobre que o parceiro ideal não existe, muitos não querem mais sofrer por um amor “imperfeito”: a saída, então, é não “amar” mais ninguém, tornar-se cético, ter “coração de pedra”, fechar-se numa redoma de vidro e separar o sexo do amor. Paga-se caro por isso: vive-se, então, um sexo mecânico, pueril, sem sabor, quantitativo. Uma vida sexual triste é o que resta aos que perderam a capacidade de expressar livremente os seus sentimentos. E o pior: por não viverem uma relação sexual ligada ao amor, querem acreditar que experimentam o “melhor sexo possível”, já que “todo mundo age assim”. O máximo de prazer, a qualquer preço. As relações são niveladas por baixo, as noções de amor e amizade tornam-se extremamente superficiais.
[...]

Leia (na íntegra) este e outros textos em O anjo exterminador (também disponível em TEXTOS NA REDE)

2 comentários:

Anônimo disse...

A velha noção ilusória de um “eu” imutável, uno, seguro, segue produzindo inúmeros “desinvestimentos” relacionais/afetivos. Essa incapacidade de experienciar a tristeza vai esculpindo seres pedregosos, inanimados, inertes, que no primeiro sinal de tristeza, correm para os super-especialistas psi. “Prozaczação”! É isso. Os novos “higieniilistas” sonham com o extermínio dos afetos tristes. E não medem esforços para conseguir tal façanha.

Valter A. Rodrigues disse...

Maicon, perfeita a palavra HIGIENIILISTAS. Esses especialistas/ascetas do afeto proliferam como moscas em torno das vidas putrefatas..