domingo, 9 de novembro de 2008

"Onde havia sublimação, que advenha angústia..."[*], por Valter A. Rodrigues

Tomo como ponto de parti-da uma frase algo enigmática enunciada por Freud ao finalizar sua Conferência XXXI (Novas conferências introdutórias) que, em suas múltiplas possibilidades de tradução, me convida a pensar direções para os impasses que o trabalho com a subjetividade tem colocado neste presente tomado por um furor higienista, classificador, objetivante e tipicamente novecentista que, penso, deveria estar já superado pelas lutas e questionamentos que marcaram o século XX: Wo Es war, soll Ich werden.
Os que têm uma mínima familiaridade com a obra de Jacques Lacan conhecem seu gesto disruptivo em relação à ortodoxia freudiana de caráter normativo/adaptativo ao propor, em vez da tradução consagrada por James Strachey, "Where the id was, there the ego shall be" ["Onde estava o id, ali estará o ego"], esta outra, preciosística em sua atenção às possibilidades significantes do texto freudiano: "Là où c’était, [peut-on dire], là où s’était, [voudrions-nous faire qu’on entendit], c’est mon devoir que je vienne à être"[1]. Costumamos encontrar à guisa de tradução brasileira esta forma simplificada: "Lá onde isso era, eu devo advir" (ou mais extensa e próxima ao francês, como a proposta por Garcia-Roza: "Ali onde se estava, ali como sujeito devo vir a ser"[2]; ou, ainda, sinteticamente, afirmando plenamente a psicanálise como talking cure, “Ali onde Isso fala, devo advir”). Temos, nesta perspectiva posta por Lacan, o passe de uma psicanálise adaptativa, na qual "o ego deve ocupar o lugar do id" (aclimatada ao espírito anglo-saxão, poderíamos dizer), para outra que aspira operar, em seu curso, uma subversão do sujeito em sua tomada de posição quanto ao desejo [onde Isso fala, devo advir].
Não pretendo aqui, com estas observações, entrar nos desdobramentos que podem ser pensados a partir dessas traduções/traições/subversões do texto freudiano, nem dedicar-me a mais um ensaio sobre a problemática do eu tal como pensada por Freud ou Lacan, mas tão somente tomá-la como leitmotiv para trazer à cena inquietações que penso ser mais do que legítimas em um momento em que, graças a uma certa neurociência em aliança com a indústria [farmacêutica, mas não só] e a mídia, a normatização médico-psiquiátrica recupera seu esplendor dos escombros iluministas do século XIX, arrastando consigo uma multiplicidade de saberes psi que até recentemente persistiam - ou aparentavam persistir - em uma ainda que tênue afirmação de autonomia e resistência.
A referência a Freud e sua enigmática afirmação é mais do que um artifício entre outros possíveis. Após ter deslocado a hegemonia novecentista/iluminista do saber psiquiátrico com a invenção do inconsciente, levando os psiquiatras a uma busca dos saberes psicanalíticos como suporte para uma apreensão fenomenológica da doença, hoje é a psicanálise que, muitas vezes capturada numa ilusão objetivista e redutiva que acaba por negar a própria teoria freudiana e seus matizes, não cessa de ser seqüestrada pelo saber psiquiátrico de base biológica (e sua nosografia – representada pelo CID-10 e pelo DSM-IV –, que expressa um saber que chega a se afirmar a-teorético,[3] posto que fundado em "resultados", em "tratamentos", e, por conseqüência, na "verdade" do organismo e em uma concepção reducionista de sua "saúde" como "ausência de mal-estar"), reduzindo-se a uma máquina - ainda que um tanto emperrada, buscando afirmar-se ainda eficaz - de identificação e interpretação de sintomas. Uma ferramenta teórica que, ao reduzir-se a codificadora (ou decodificadora, via interpretação) dos quadros sintomáticos descritos pela nosografia psiquiátrica, em relação de exterioridade ao que se propõe conhecer, corre o risco de tornar-se ciência aplicada, em lugar de implicada[4].


CONTINUA! texto em construção.
[*] Este título foi roubado imaginária e literalmente de um artigo que não li: "Arte: onde havia sublimação, que advenha angústia", de M. Meiches e E. Alperowith, publicado, conforme referência, em Percurso, n. 15, 1995, pp. 82-88. O artigo consta das referências bibliográficas de FRAYZE-PEREIRA, João A. Arte, dor; inquietudes entre Estética e Psicanálise. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2005. Esse título remeteu-me imediatamente - por obviedade - à frase de Freud e ativou em mim o desejo de escrever sobre as inquietações a respeito dos impasses da clínica contemporânea que tenho manifestado persistente e insistentemente em palestras e em salas de aula. Espero que o desenvolvimento do texto justifique o roubo. Como o texto está sendo produzido "ao vivo", são bem-vindas as participações por meio de comentários.

[1] Que podemos traduzir, conservando a literalidade do texto: “Lá onde Isso estava, pode-se dizer, lá onde S’estava, deveremos fazer com que se entenda, é meu dever que eu venha a ser”.
[2] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1984. p. 209.
[3] Ver, a respeito, os artigos publicados em MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (org.) Psicofarmacologia e psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. Ver também Joel BIRMAN, Diagnósticos da contemporaneidade, in MACIEL JR., Auterives; KUPERMANN, Daniel; TEDESCO, Silvia (org.) Polifonias: clínica, política e criação. Rio de Janeiro: Contracapa/Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, 2005. p. 101-108.
[4] Esse é um cenário comum nos cursos de Psicologia, particularmente naqueles que se inscrevem como "Ciência da Saúde", afastando-se de seus pares das Ciências Humanas (a sociologia, a investigação etnográfica, a filosofia, as artes...). A Psicologia "alimenta-se" a bel prazer de conceitos freudianos (e, em menor grau, junguianos e reichianos e winnicotianos e... e...), particularmente quando se trata de instrumentar-se - para dar um exemplo dos mais gritantes - para a leitura de testes projetivos os mais diversos, sem que necessariamente implique-se com o fazer teórico da psicanálise (ou de qualquer outro campo de produção de conhecimento) e sua pragmática. Mas não só. Essa implicação, como veremos, é bem mais exigente e mais ampla.

10 comentários:

Anônimo disse...

nesse mundo de dinheiro, só de dinheiro, dinheiro,dinheiro..queria saber se existe alguma possibilidade de entendimento da etica do conhecimento, da claridade que esse discurso nos traz, e a angustiante sensação que a conclusão financeira captura a todos e nos deixa viver confortavelmente parados...muito dolorido. quanta merda..puxem a discarga!!

Valter A. Rodrigues disse...

Esse mundo do dinheiro, do mercado, da lógica do mercado, do bem-estar a qualquer preço, está fundado numa moral utilitária, para a qual felicidade reduz-se ao menor sofrimento possível (como já preconizava Jeremy Bentham, o idealizador do modelo de prisões que Foucault apresenta como protótipo da sociedade disciplinar...). Passearei por aí, neste texto.

Unknown disse...

"Baladas recheadas de garotas lindas, com roupas cada vez mais micro e transparente, danças e poses em closes ginecológicos, chegam sozinhas.Empresários, advogados, engenheiros que estudaram, trabalharam, alcançaram sucesso prifissional e, sozinhos.
Tem mulher contratando homem para dançar com elas em bailes, os novíssimos "personal dance", incrível. E não é só sexo não, se fosse, era resolvido fácil, alguém duvída?
Estamos é com carência de passear de mãos dadas, dar e receber carinho sem necessariamente ter que depois mostrar performances dignas de um atleta olímpico, fazer um jantar pra quem você gosta e depois saber que vão "apenas" dormirem abraçados, sabe essas coisas simples que perdemos nessa marcha de uma evolução cega. Pode fazer tudo, desde que não interrompa a carreira, a produção.
Tornamos-nos máquinas e agora estamos desesperados por não saber como voltar a "sentir", só isso, algo tão simples que cada dia fica tão distante de nós...Fabiano.

Anônimo disse...

Esse fragmento textual me remete subitamente a um comentário tecido a partir de um texto escrito por Amauri Ferreira. Naquele momento apareceu uma palavrinha interessante para pensarmos algumas coisas: higieniilistas! Falávamos da polícia psi, em suas mais variadas especialidades, e da incapacidade contemporânea de vivenciar a tristeza. O higienismo e o niilismo se entrelaçam nessa saga psicotécnica. E agora esse policiamento parece bem mais sofisticado.

Filosofia Livre disse...

Falando em policiamento e, também, em Jeremy Bentham, comecei a ler "O Panóptico" (ed. Autêntica, trad. Tomaz Tadeu), do utilitarista-paranóico inglês. Eis um trecho: "Para dizer tudo em uma palavra, ver-se-á que ele [o plano da Casa de inspeção] é aplicável, penso eu, sem exceção, a todos e quaisquer estabelecimentos, nos quais, num espaço não demasiadamente grande para que possa ser controlado ou dirigido a partir de edifícios, queira-se manter sob inspeção um certo número de pessoas. Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos: seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no caminho da educação. [...] É obvio que, em todos esses casos, quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se esse fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo. Sendo isso impossível, a própria coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver razão para acreditar nisso e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que está nessa condição" (pgs. 19 e 20)

Valter A. Rodrigues disse...

Caminhamos bem: cultura do bem-estar e felicidade pret-à-porter; controle disciplinar; higieniilismo. Estou lendo, para alimentar o texto (que só posso elaborar em finais de semana...) a História da psiquiatria no Brasil; um corte ideológico, de Jurandir Freire Costa. Livro dos anos 70 reeditado, mais do que oportunamente, no ano passado. Higienismo e eugenia andaram de mãos dadas nos anos 30. Retornam, com nova face, mais "científica", no séc. XXI.

Unknown disse...

Nunca a sociedade humana tinha conhecido massacres de amplitude como os das duas guerras mundiais.
Nunca o progresso da ciência tinha sido utilizado em tal escala para provocar a destruição, os massacres dos homens.Nunca tal acumulação de riquezas havia costeado, nem havia provocado tanta fome e tanto sofrimento como esses que desencadearam nos países do terceiro mundo desde décadas. Mas parece que a humanidade ainda não tinha "atingido o fundo". A decadência do capitalismo significa a agonia desse sistema. Mas, essa agonia por si mesma tem uma história. Hoje nós atingimos a sua fase final, esta da decomposição geral da sociedade, essa de seu apodrecimento pela base. Pois é o apodrecimento mesmo da sociedade que está acontecendo agora. De fato, é o conjunto da vida social que parece ter-se completamente desarranjado, que se afunda no absurdo, na lama e no desespero.É toda a sociedade humana que, sobre todos os continentes, de maneira crescente, transpira a barbaria por todos os seus poros.
Se deixarmos o capitalismo dominar a sociedade ele terminará, mesmo na ausência de uma guerra mundial, por destruir a humanidade: através da acumulação das guerras locais, das epidemias, das degradações, do meio ambiente, da fome, e outras catástrofes que nos são apresentadas como "naturais".
Será que só quando for cortada a última árvore, pescado o último peixe, poluido o último rio, que o homem vai perceber que não pode comer dinheiro.

Valter A. Rodrigues disse...

Descubro, por acaso (num daqueles passeios incidentais por estantes em uma livraria) um livrinho que promete muitos encantos: "Raízes errantes", de Mauro Maldonato (psiquiatra e filósofo italiano). Seu tema privilegiado: as fronteiras, os limites...
Aguardem, ele logo aparecerá alimentando este texto...

Anônimo disse...

E quando o artigo vai continuar? Neste final de semana fiquei esperando por mais texto...

Valter A. Rodrigues disse...

Depois de várias derivas e tropeços, estou voltando a acercar-me deste texto iniciado em novembro. Um tempo de fermentação...