POLÍTICAS ESQUIZOTRANS
EM BUSCA DO QUE É TRANS
Esta coluna quer percorrer o poder subversivo do desejo de irromper as ruas com o corpo errado, com a roupa errada, com o gesto errado, com a velocidade errada. Ali há desejos de romper amarras, de balançar os fascismos estabelecidos, há desejo mais forte do que a disciplina e o controle
Eu expliquei para o doutor Grinder, com a voz que eu uso para explicar como fazer para que o mingau de maizena não fique embolotado:
— Meu distúrbio de identidade de gênero? É que eu não consigo ser nem só homem e nem só mulher, qualquer um parece pouco. Não parece razão suficiente para uma dysphoria?
Para alguém que sempre quis ser uma super-heroína, ser a femme fatale, ou ser o amante de todas as femmes fatales, ou de todas as velhas que ainda ardem de vontade, e os estranhos de sexualidade duvidosa, e também estar com os homens indiscriminados — eu queria ser tudo isso, tudo. Parecia que para alguém como eu, que sempre quis ser poderosa e preparada, era evidente que qualquer das duas opções sexuais postas no mercado era pouco, pouco demais. Assim como eu levantava alterado todos os dias e passava duas horas tentando fazer meu tornozelo se acostumar com as sapatilhas de ponta, eu queria minha genitália com tudo o que eu decidira na tora que eu tenho direito — e mais peitos e tira peitos e pierce nos peitos e nos glúteos – e o doutor Grinder era quem botava barreiras entre meu desejo de ter o corpo que eu precisava para viver a minha vida e a cirurgia:
— Bi, ele falou, você já experimentou ser uma pessoa bissexual?
— Uma mulher bissexual? Uma mulher bissexual é uma mulher, não é?
Eu nasci com os trejeitos de heroína incontida, anatomia é destino e no meu destino quem manda, bem, sou eu mesma e não tem pra ninguém. Eu e o bisturi do doutor Grinder; eu disse: não é sobre o que eu faço, é sobre o que eu sou e eu não tenho medo do perigo e nem da angústia de ultra-ser um corpo envaginado, de sobre-ser um corpo com tromba, quero me enfiar e ser enfiado. Quero poder ser bicha, poder ser toda lésbica e passar noites lambendo e esfregando tratando meu pinto ereto como se fosse um clitóris e com meus dois sexos passar anos no celibato se eu quiser e sem espelhos. Quero uma genitália com direito a tudo e esta volúpia merece encontrar a faca.
— Você não acha que está querendo demais?
Agora ele ficava fominha, meu desejo é muito pra faca dele? Meu desejo ele não dá conta, o bisturi dele broxa com tanto tesão de "dar" uma "enfiada"!! O que fazer? Procurar um mago polonês cavalgando pelo Atacama com os trechos mais judaicos da bíblia no dorso e uma matula com tâmaras secas e um bisturi de condão?
O mercado suga a força dos desejos. O poder subversivo do desejo trans é o poder de escapar da ordem estabelecida e invoca a força daquilo que rompe. Política, política, política
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Riki Wilchins (em Birth of the Homosexual, em Read My Lips) imagina uma pessoa de nariz grande querendo uma cirurgia para diminuir o nariz. O médico pergunta por que: eu sempre me senti uma pessoa de nariz pequeno aprisionada no corpo de uma pessoa de nariz grande. O médico não pode fazer a cirurgia enquanto não tiver um diagnóstico de um psiquiatra que ateste que aquela é, apesar das aparências, uma pessoa de nariz grande. A política dos corpos é a política da viabilidade da vida – da aceitabilidade de certas formas de vida. Muitas vezes a política dos corpos é pensada em termos de identidades: corpos implicam identidades, genitálias implicam identidades sexuais (melanina implica identidades raciais etc.). As identidades permitem um reticulado de nós contra eles. Promovem a política das torcidas, a política das filiações: agir em nome de um grupo que é demarcado mais ou menos antes de qualquer política. Identidades são uma forma de política entre muitas: uma forma de biopolítica, uma forma de manejo de corpos, uma forma de controle de sexualidades.
Esta coluna gira em torno de políticas da sexualidade e da sexualidade das políticas. Aqui surgem discussões sobre intersexo e toda a interface entre o pessoal, o biológico e o político. Nos interessa o que é trans: transgressor, transexual, transformista, transitório, transviado, excessivo. Aqui aparecerão feminismos, gêneros, diferenças sexuais, troca de órgãos, troca de corpos, troca de desejos. Transformações, cirurgias, esculturas hormonais — e o confinamento dos desejos pela medicalização, pela precarização que bloqueia os excessos, pelo medo. Os desejos pertencem à ordem dos contatos, dos contágios, das contingências que perpassam os corpos — cada poro de cada corpo está em disputa. Políticas as células, políticos os hormônios, políticas as dobras, políticos os neurônios. O que constitui um órgão sexual? Não acreditamos mais no esgoto a céu aberto que separa a alma da genitália. Queremos imaginar uma genitália sem órgãos, uma genitália que, como quis a Alex, do filme XXY, não precisa decidir: não precisa ser submetida aos contornos de nenhum órgão pré-imaginado. Nesse espaço surgem as distopias, as utopias e as heterotopias das constituições sexuais: os paus lésbicos, os prazeres minúsculos, as bucetas contrácteis, as máquinas de fazer orgasmo. Esbarramos com cyborgues, com mutantes, com nomadismos sexuais, as Dasputas e outras que fazem valer o zarô, cada centavo do eqüe. Não estamos à procura de novas identidades – queremos o esquizo que fica posto em baixo do tapete de todas as formas de sexo. Nos interessam as identidades que surgem: nem aquelas que se mantêm e nem aquelas que se corróem. A política dos corpos está contaminada de devires: aquilo que ainda não é, mas desponta, aquilo que coabita no emaranhado ecológico que forma os desejos, aquilo que pode vir a ser – a potência empapuçada de ato. Corpos podem ser usados, interferidos, operados, simulados, desviados. E só quando encontramos órgãos é que a anatomia é destino.
Esta coluna quer percorrer o poder subversivo do desejo de irromper as ruas com o corpo errado, com a roupa errada, com o gesto errado, com a velocidade errada. Ali há desejos de romper amarras, de balançar os fascismos estabelecidos, há desejo mais forte do que a disciplina e o controle – é a força da singularização que escapa das matrizes de inteligibilidade, das expectativas das interpretações e dos cálculos de qualquer mercado. E se liga! É um instante. O poder subversivo do desejo trans é o poder de escapar da ordem estabelecida e invoca a força daquilo que rompe. Política, política, política. O mercado suga a força dos desejos, cria um perfil do consumidor – que é sua matriz de inteligibilidade. Sem a matriz não há ordem, não há expectativa. A matriz é a política: dela sai a heterosexualidade compulsória, a vontade de família e propriedade (não necessariamente nessa ordem) e a binaridade dos sexos.
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