sábado, 22 de março de 2008

Schopenhauer Educador (trecho), de Nietzsche

...Mas, ainda que o futuro não nos deixasse qualquer esperança, a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa própria lei e conforme a nossa própria medida: quero falar sobre este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dispomos da extensão infinita do tempo para nascer, quando não possuímos senão o curto lapso de tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele, por que razões e para que fins, aparecemos exatamente agora. Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa existência, por conseguinte, queremos agir como os verdadeiros timoneiros desta vida e não permitir que nossa existência pareça uma contigência privada de pensamento. Esta existência quer que a abordemos com ousadia e também com temeridade, até porque, no melhor ou pior dos casos, sempre a perderemos. Por que se agarrar a este pedaço de terra, a esta profissão, por que dar ouvidos aos propósitos do vizinho? É igualmente provinciano jurar obediência a concepções que, em centenas de outros lugares, já não obrigam mais. O Ocidente e o Oriente são linhas imaginárias que alguém traça com um giz diante dos nossos olhos, para enganar a nossa pusilanimidade. Vou tentar alcançar a liberdade, diz para si a jovem alma. Não obstante, seria ela disso impedida pelo fato de o acaso querer que duas nações se odeiem e entrem em guerra, ou pelo fato de um mar separar dois continentes, ou pelo fato ainda de se ensinar em torno dela uma religião que já não existia há milhares de anos? Tu não és propriamente nada disso, diz ela para si. Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida - ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o qual ninguém, exceto tu, poderia trilhar. Para onde leva ele? Não perguntes nada, deves seguir este caminho. Quem foi então que anunciou este princípio: 'Um homem nunca se eleva mais alto senão quando desconhece para onde seu caminho poderia levá-lo'?


Friedrich Nietzsche, Terceira Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador (pág. 140), Trad. Noéli C. de Melo Sobrinho. Edições Loyola.

Um comentário:

Morena Sebadelhe disse...

“E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...”
Florbela Espanca


Perder –me...
Do dito, do não dito...
Desse maldito e vasto rio de imposições, rotulações e malversações que nos é trazido contracorrente da vida.
Esta sim, afirmada e confirmada, em detrimento de qualquer linha imaginária que nos fizeram acreditar.
Prefiro eu, de cá, crer no real que me compõe, e nos versos que me impulsionam.
A vida pela vida, pelo sentir, pelos sentidos, os nossos e os que nos encontram, nos afetam.
O caminho é tão belo, por que deixá-lo de lado, cegos por uma recompensa que talvez nem exista?
De que me adianta restringir o hoje-vivo, pelo amanhã-talvez, que quiçá conheço ou do qual apenas ouço falar...
Desenhemos nossas próprias cartilhas, de preferência sem letras, apenas rabiscos coloridos, multiformes, ou melhor, sem formas, só o sonho, só o desejo, só o alegre, só em ti me componho...
Nada mais, nada além, nada adiante, nada distante...
Composições em notas, suaves e alegres, reais e concretas, composições de nós mesmos, afirmados, potencializados, vivos!