sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A subjetividade no mundo moderno, por Cláudio Ulpiano

Transcrição de aula de Cláudio Ulpiano (1988) sobre os gregos, a cidade, as paixões, a razão, a lei, a sociedade jurídica e, em nossa modernidade, o complexo de Édipo. Imperdível.

Em um texto de J. P. Vernant, chamado “Esboço da vontade na tragédia grega”, é levantado como hipótese de trabalho que a categoria de vontade não seria uma categoria natural, mas histórica, o que quer dizer: colocar a categoria de vontade na história ao invés de colocá-la na natureza; o que significa que a categoria de vontade não esteve sempre presente no história do homem. Vocês vão encontrar determinadas formações sócio-políticas e históricas onde a categoria de vontade não atravessa. Vernant, então, desnaturaliza a categoria de vontade e a coloca na história, o que significa que mesmo que ela apareça em todas as formações históricas, ainda assim ela não é natural, somente histórica.
Vamos colocar a figura sujeito humano, e vamos ligar a noção de sujeito humano ao princípio de inércia que diz que alguma coisa só se move ou só repousa se receber uma força externa, que seria, então, diferente do sujeito humano que se supõe auto-movente. Quando colocamos a suposição de que o sujeito humano tem uma atividade, a questão que se coloca é: o que determina ou qual é a causa dessa atividade? De outra maneira, o sujeito humano possui dentro ou fora de si alguma coisa que o faz ter atividade? Então, existe um sujeito humano e um agente de ação.
Exemplo: O Elias está sentado. Eu chego atrás do Elias com um revólver e digo: − Elias, ande! − Neste caso, o agente de ação foi o revólver. Mas se eu colocasse o revólver atrás de uma cadeira e ordenasse a mesma coisa ordenada ao Elias, a cadeira não andaria. Então o que se supõe é que inicialmente o Elias é dotado de uma vontade e que essa vontade pode ser influenciada pela presença de um revólver. Nessa posição, a vontade tem seu agente de ação na exterioridade.
De outro lado, o Elias pode ter ódio de uma determinada pessoa e um dia se encontra com essa pessoa e lhe dá um soco. Nessa posição, a vontade de Elias é determinada por uma paixão. A paixão é também um agente externo à vontade. Tanto o revólver quanto a paixão são externos à vontade, não importando que esta paixão seja interior à subjetividade. Ela é interior à subjetividade, o revólver é exterior à subjetividade, mas tanto o revólver quanto a paixão são exteriores à vontade. Nesse segundo caso, o agente de Elias é a paixão.
Se colocarmos que o Elias tenha como agente de ação a vontade, sem que haja o revólver ou a paixão determinando a vontade, significa que o Elias tem vontade livre. Nas duas primeiras questões a vontade foi determinada por causas externas à vontade. No caso do ódio o agente de ação é a paixão, no caso do revólver o agente de ação é o revólver. Se ele tiver ação pela vontade, ele é livre, sem determinante externo.
Quando a vontade não tiver como determinante algo do exterior, ela é livre. Se nós encontrarmos um tipo de campo social em que os homens, ao agirem, ajam determinados pelas paixões, esses homens não são livres. Os gregos, por exemplo, em determinados momentos de sua história, achavam que o determinante da ação eram os deuses. Nesse momento se colocava que todas as ações implicariam nos deuses como agentes. Se os agentes são os deuses, aquilo que foi feito de errado para um homem terá como culpado, não o homem, mas a deus. Os gregos ao produzirem essa prática, ao inventarem essa colocação, estão extraditando deles mesmos a culpa em qualquer ato. A questão é eliminar a culpa.
Na hora em que se estabelece que o agente de ação determinante de seu ato são os deuses, você extrai de você a culpa e a responsabilidade individual pelo ato que você cometeu. Nessa posição, um homem comete um ato e não é responsável pelo ato, porque o culpado é o deus. A palavra “culpa", em grego, se mistura com a palavra “causa” (“aitia”). Então, a causa ou o agente de ação de minha atividade foi o deus. Isso tira de mim a responsabilidade individual.
Vai aparecer a sociedade da polis, a polis grega, a cidade grega: o que marca a cidade grega é que o governo não é feito por um homem, nem vários homens, o governo da cidade grega é a LEI. Aparece na história uma organização política que é a polis onde o que a governa é a lei. Por isso o grego que, durante um ano, por exemplo, fizer práticas de servir ao desenvolvimento da cidade, fizer a cidade crescer com esta ajuda, fizer atos heróicos notáveis, for um notável orador, na assembléia tendo um ano de grande destaque dentro da cidade, esse grego, de repente, é condenado pelos outros cidadãos ao ostracismo, isto é, ao exílio, pois esse homem ameaçou, transformou-se num tirano, e o tirano é aquele que governa fora das leis.
Quando estamos numa cidade governada pelas leis, e a lei é aquilo que é produzido pelos homens que estão dentro daquela cidade, isso leva os outros homens que estão dentro daquela cidade, isso leva os outros homens que estão sob a organização daquelas leis a aceitarem ou não as leis. Por isso, dentro desta cidade, tem que aparecer a responsabilidade individual. No momento em que você não obedece a uma lei, você cometeu um crime, e por esse crime você tem que ser julgado, e não os deuses. O indivíduo se torna responsável pelos seus atos. Você pratica um ato, mas esse ato só tem um responsável, você. Nasce a noção de que você age segundo sua vontade. Se esse homem, que tem a vontade e a responsabilidade individual, de repente praticar uma ação e disser que praticou a ação por estar influenciado por uma paixão, isso significa que ele não praticou o ato pela vontade livre, foi a paixão que determinou o ato. Então, uma sociedade deste tipo tem que constituir os homens capazes de dominar as suas paixões, ou seja, a sociedade grega irá constituir a categoria de “arethê”, a categoria de virtude, que é daqueles que dominam as paixões. Está aparecendo o que se chama SOCIEDADE JURÍDICA. A Sociedade Jurídica pressupõe a vontade livre, mas admite que essa vontade recebe determinação das paixões, e sempre que no julgamento verificar que a ação do indivíduo foi determinada pelas paixões, o crime dele não é doloso, é culposo.
Em uma sociedade como a egípcia, onde o governo não é o governo das leis, mas o governo de um déspota, o processo não é o mesmo. Para se ter um processo onde a vontade é o agente da ação, tem que se estar instalado em uma sociedade governada pelas leis. Os gregos não só criaram a democracia, como também criaram a vontade livre.
Quando você pega o sujeito humano, você verifica que ele produz uma série de ações. Ele inventa o martelo, conquista a Índia, rouba, inventa o capitalismo financeiro, faz uma série de práticas, e a nossa questão é perguntar o que é que leva esse sujeito humano a agir, quais as forças reais que o conduzem à ação. É possível que, se nós estivéssemos em uma sociedade excessivamente religiosa, que se dissesse que a ação dos homens seria devida à influência dos deuses. Ou de uma maneira diferente: em determinadas sociedades religiosas você encontra o discurso que diz que determinado homem está tomado por uma magia, por uma magia negra, e, em função dessa magia, todas as ações daquele homem são determinadas. Então, a ação daquele homem, nesse momento, tem como determinante a magia. Se minha ação for determinada pelas paixões e eu amo o André, sempre que eu agir o determinante da minha ação será o amor. Agora, suponhamos que eu odeie essa parede, minha ação será determinada pelo ódio. Então, fica claro que a ação de um homem pode ser determinada pelas paixões. No momento em que isso ocorre, o homem não é culpado pela ação, porque o responsável pela ação é a paixão. É possível se dizer que se esse homem for curado de sua paixão, irá agir de outra maneira. O homem é um ser dotado de muitas paixões, e, sendo assim, pode em determinado momento ter sua ação determinada pela paixão do ódio, e, em uma sociedade desse tipo, o que se vai tentar é fazer com que a paixão do amor seja a paixão determinante, com o objetivo de se constituir uma cidade equilibrada.
Nesse tipo de sociedade, tem-se que admitir, primeiramente, que as paixões são as determinantes da ação. Mas, como nessa sociedade o que se visa é a uma boa organização, procura-se produzir uma paixão equilibrada, para ser a dominante, o que seria, no caso, uma boa paixão. Há, mesmo, a criação de uma pedagogia, visando ao apaziguamento das paixões.
É o mesmo problema da nossa cidade, o Rio. Porque os homens da nossa cidade estão tomados das paixões mais loucas, devido a uma instituição política que enlouquece as paixões. A pedagogia pretende fazer que domine na sociedade a paixão do amor. Quando você encontra escrito aí “Sou contra a violência”, isso significa: “Sou contra as paixões violentas”. O que se pretende é a constituição da dominação da paixão apaziguada.
Numa sociedade onde as paixões estão passando com a maior violência, procura-se verificar o que teria, na subjetividade humana, que pudesse comandar as paixões: o amor, o ódio, a tristeza etc. A sociedade grega descobre a razão. A razão seria a paixão mais apaziguada. Então, haverá uma preocupação, nesse campo social, de produzir homens que tenham os seus atos determinados pela razão. O ideal de uma cidade seria a racionalidade (que é, inclusive, o ideal de Espinosa).
Tomada essa questão, nós vamos verificar que através do domínio da razão se procura construir uma cidade racional. Mas, como a razão grega é uma razão geométrica, o objetivo deles é construir uma cidade geométrica. Então, se verá uma cidade arquitetonicamente geométrica, uma astrologia comandada pela geometria, e se verão, também, as relações entre os homens sendo geométricas (uma vez que existe a predominância da paixão apaziguada da razão, sendo essa razão, geométrica). Portanto, o cidadão grego é igual a outro cidadão grego, pois a igualdade é elemento da geometria.
Se passarmos para a sociedade do déspota, o processo não é o mesmo. Na sociedade do déspota, não há a pretensão de que a razão seja a paixão dominante, pois no mundo do déspota só existe um corpo apaixonado, o do déspota. O resto é zero. Por isso que a cidade antiga não é geométrica.
O escravo não está na sociedade racional. É negada ao escravo a posição de humano. O escravo está mais próximo do animal. Ele não é um homem livre, pois um homem livre tem sua ação determinada pela razão; sendo assim, o escravo tem que se deixar determinar pela razão do senhor. Por isso, se o escravo cometer um crime, o senhor estará envolvido.
A justiça no mundo do faraó é feita pelo próprio faraó. No mundo grego a justiça é feita pela razão (lei).
A razão seria uma forma da subjetividade humana. A subjetividade humana teria, entre outras formas, a forma racional. Há uma preocupação do grego em saber com quais objetos essa razão lida. Ela se relaciona com as idéias. Para Platão, essas idéias, com as quais a forma razão se relaciona, estão fora da razão. Mas acontece que essas idéias, que são os objetos da razão, não podem habitar no mesmo mundo que os objetos das outras formas da subjetividade. Essas idéias têm que receber um território próprio, que é chamado o mundo das idéias ou essências. Em Aristóteles, essa forma da razão não tem objetos fora dela.
Os objetos da razão aristotélica estão dentro da própria razão, pelo processo de abstração. A razão seria a forma superior para a organização da sociedade, da cidade e, simultaneamente, através da razão, se produziria conhecimento. Conhecer, em Platão, é contemplar as idéias. Mas como podem-se contemplar as idéias, vivendo em um mundo sensível?
A razão humana não traz as idéias com ela. A razão humana atinge as idéias. A razão habita o corpo humano e no mundo dos corpos não existem idéias. As idéias habitam um território superior. Por isso, a razão, para conhecer essas idéias, tem que ter o seu corpo morto. É o que se chama “a alma se separa do corpo para conhecer as idéias”. A teoria do conhecimento principia pela morte. Em Aristóteles, não é preciso morrer para conhecer.
No século XIX surge Kant. Kant constitui uma teoria da razão diferente da platônica e da aristotélica. A razão kantiana literalmente não tem objeto (em Platão, há objeto no mundo das idéias; em Aristóteles, há objeto dentro da própria razão). Surge uma razão que é forma pura, sem objetos.
Os cristãos reinventaram uma figura que já havia sido inventada antes pelos gregos: o anjo. Na Grécia, o anjo era um emissário, e, para os cristãos, o anjo era algo entre Deus e o homem, como numa escala: animal-homem-anjo-Deus. O anjo cristão é eterno e sem corpo. Ele é governado pela razão, é razão pura. Uma pulga difere do anjo por possuir um organismo. Há todo um movimento corporal na pulga.
O anjo age, tem atividade, assim como a pulga. A pulga só age determinada pelos órgãos, o anjo apenas pela razão. Surge então o homem, que é metade pulga, metade anjo. Um ser que age pelos órgãos e pela razão. A razão do anjo determina a vontade do anjo, e a vontade então age. Toda a vontade do anjo é racional. Os órgãos determinam a vontade, na pulga.
O homem tem a razão e os órgãos, ambos determinantes de vontade. Kant então faz a tese de que o homem é constituído de um corpo orgânico e uma razão, e dotado de uma vontade (Nietzsche fica apavorado com essa idéia. Ele irá se opor a que a vontade seja UNA. Nietzsche diz que existem múltiplas vontades).
O organismo do homem é diferente do organismo de outros animais. Existem corpos organicamente diferentes, o que gera a categoria de espécies. Agora, na espécie humana, todos têm organismos, idênticos, mas há, ainda assim, algumas diferenças entre os organismos da espécie humana. Contudo, a razão é igual em todos os homens. A razão é, então, UNIVERSAL.
Pode haver determinados momentos em que a vontade humana seja determinada pela razão e momentos em que seja determinada pelo organismo. O ideal é constituir o homem determinado de sua vontade pela razão. Na hora que se constituir um homem que age pela razão determinando a vontade, você estará criando a noção de Homem. Homem é aquilo que age determinado pela razão. Se a razão é universal, o ideal seria que todos os homens fossem determinados pela razão. Essa posição nos torna piedosos. Por exemplo: se pegarmos um primitivo, vamos achar que esse primitivo é determinado pelos órgãos, mas, se nós o educarmos, ele será determinado pela razão. Por isso é que o homem moderno não mata mais o primitivo, ele o reeduca. Está nascendo o que se chama humanidade. A humanidade existe quando todas as ações do homem forem determinadas pela razão.Quando se pega Kant, se verifica que toda a questão de Kant é a humanidade. No momento em que a razão determina a vontade, a vontade é livre. O homem só assim tem a liberdade.
A revolução industrial cria o capitalismo financeiro industrial. Há uma mudança no regime de trabalho, e na distribuição de riquezas. A riqueza, que até então estava no campo, nas mãos dos proprietários, vai se transportar para a cidade, e fica na mão dos trabalhadores. A fábrica Ford é habitada pelos trabalhadores. Nasce o regime de trabalho assalariado. Agora, ao invés de se venderem os produtos manufaturados, vende-se o próprio corpo. O trabalhador conduz o seu corpo para o mercado para vendê-lo (Marx).
Se se vai vender o próprio corpo, aparece a questão de saber se, ao vender o próprio corpo, se está fazendo essa prática porque se está sendo forçado, ou porque se quer. Isso quer dizer que simultaneamente ao nascimento do capitalismo industrial, está emergindo a democracia liberal, cujo fundamento é a liberdade. Aparece a categoria de trabalhador livre. Está estabelecido que a venda do corpo não é por um processo de constrangimento externo, você vende por liberdade própria. Juntando tudo isso, esse homem vende seu próprio corpo porque ele é um homem, e o homem é livre, porque é dominado pelas forças da razão. Então, se você espalha o capitalismo, não haverá um homem que não queira a liberdade; todos nós vamos lutar até a morte pela liberdade, sem saber que estamos lutando pelo capitalismo. Essa categoria de humanidade se espalhará pelo planeta, porque é desse modo que se gerarão os trabalhadores livres.
Toda a questão de Deleuze e Foucault, que entenderam isso, é a de devolver ao homem moderno a sua vida, sair desses modelos e esquemas de morte.
MÉTIS é o nome de uma deusa grega, em certo ponto obscura, e, simultaneamente, o nome de uma prática. Em Esparta há a prática da constituição do guerreiro hoplita. Os jovens gregos (efébos) são preparados para se tornarem hoplitas. Quando os efébos têm 16-17 anos são liberados para fazerem caçadas, movimentos pelas florestas e perseguições terríveis aos hilotas (mais ou menos o meteco, em Atenas). Então, se verão efébos caçando e matando hilotas, mas, para fazerem isso, os efébos têm que usar de uma astúcia excepcional. O que se está constituindo com isso é a criação de uma habilidade, de uma capacidade para passar por momentos dificílimos. Quando a efebia grega entrar no grupo dos hoplitas, os efébos vão esquecer tudo isso, porque a organização dos hoplitas é inteiramente disciplinadora, mas lá, enquanto efébo, é astúcia e habilidade.
No momento em que nasce a razão grega, as práticas de Métis vão ser consideradas práticas transgressoras, e nós vamos acreditar nisso, e vamos deixar de ser hábeis, astutos, e de enfrentar as florestas. Vai se criar uma subjetividade tendente e apaixonada pelas disciplinas. O que se objetiva, escondendo a Métis, é uma subjetividade que acredite piamente na disciplina, na ordem das legiões guerreiras, na ordem das ordens etc. Por isso que se você for muito hábil, muito astuto, percorrer as florestas e conquistar coisas por estas habilidades, a razão ocidental irá persegui-lo.
O que eu peço para vocês é que tenham Métis, tenham habilidade, porque o pensamento é uma floresta terrível, que se você não entrar com muitas habilidades, você irá chamar por um tenente-coronel para dirigir a sua vida. Isso ocorre em Universidade Federal, em turma de História; não resiste à posição de ser o único responsável pela própria vida, pelo fato de estarmos organizados por essa razão disciplinar das coisas.
A filosofia se tornou no século XX em uma empregadinha de 2ª categoria; isso é que são as epistemologias. Mas a filosofia é um campo de força, de luta. A filosofia vai servir o tempo inteiro (ou então não serve para nada) ao pensamento. O que acontece é que no reino da filosofia atual é capaz de um professor europeu te ensinar com uma perícia incrível, você vai aprender aquilo, mas o que você vai entender é que aquilo está articulado com o campo político e histórico. Ou seja, eles dão para você a ideologia, mas não lhe dão o campo de poder. Então não há como pensar filosofia desarticulada do campo de poder, porque quem fizer isso está caindo na morte (isso serve para a literatura também).
A teoria de que nós temos uma vontade única não é propriamente uma tolice, como Nietzsche disse. Porque tem-se toda uma tese sobre a categoria tolice. Não há tolice no mundo. Os objetivos de produzir a idéia de que há uma vontade única são exatamente para produzir um tipo de subjetividade. Quando Nietzsche for pensar, ele vai pensar a mesma coisa − corpo e razão − mas vai pensar uma multiplicidade de vontades para começar a entender o que é exatamente natureza.
A partir do século XIX, surgiu uma grande investigador no ocidente, que, sem brincadeira nenhuma, é o Freud. Ele pensou a questão que o ocidente nunca havia pensado, que é a questão do inconsciente. Ele fez uma relação entre inconsciente e desejo, e em seguida se preocupou em explicar o que é o desejo. Quando ele começa a explicar o desejo, ele articula o desejo a um mito, Édipo, e começa a explicar o desejo dizendo que o desejo é edipiano. Ser edipiano é ser edipiano em qualquer homem, o que significa que nosso desejo é originalmente incestuoso e parricida. Isso se chama complexo de Édipo.
Vamos agora unir essa tese com o que foi exposto na aula: vamos pensar em uma criança humana de cinco meses de idade. Essa criança tem vontade-desejo (são sinônimos) cujos determinantes são o organismo e a razão. Essa criança, contudo, não tem capacidade, pela própria constituição biológica do homem, de atingir, por ela mesma, o objetivo que realize os desejos do organismo. Então ela precisa de uma outra pessoa, que é no nosso mundo, a mãe. Essa criança necessita que a mãe faça por ela o que ela não pode fazer. A mãe faz o que a criança deseja se quiser. Então, essa criança está dependente da mãe. O desejo da criança procura se associar ao desejo da mãe.
E se essa mãe resolve dar as coisas para essa criança, o corpo dessa mãe se torna o território do organismo da criança. Essa criança, que é determinada pelo organismo, na hora que sente fome, sente dor, a fome dá a dor e a criança grita. A mãe que se predispôs a desejar o desejo dessa criança, vai dar-lhe o alimento. A mãe vai tirar essa criança da dor e jogar essa criança no prazer, o que imediatamente torna o corpo da mãe no corpo do prazer. Essa criança de imediato se associa à mãe e não quer sair dali, porque ali está o prazer. Mas nós estamos numa sociedade constituída pela família conjugal, e aquele que separa essa criança da mãe, é o papai. Na psicanálise, papai se chama literalmente o desmancha-prazeres. Então essa criança ama mamãe e odeia papai. Ela é parricida e incestuosa. Mas se essa criança prosseguir naquela posição, ela não poderia entrar na cultura, porque toda e qualquer cultura pressupõe a interdição do incesto. Toda cultura pressupõe a separação da criança da mãe. É o que se chama complexo de castração. Essa criança tem que ser castrada (separar-se da mãe) e entrar na cultura. E entrar na cultura é entrar na razão.
Essa sociedade precisa produzir corpos edipianos. Produzir um tipo de família que funcione com uma criança inteiramente dependente da mãe, para ela se tornar edipiana. Tornar-se edipiano é real, só não é estrutural. O Édipo que Freud explicou como sendo estrutura de desejo, é o componente do nosso poder atual. É preciso produzir edipianos, e se a família fracassar, o psicanalista edipianiza.
O complexo de Édipo seria uma espécie de pecado original (o modelo do complexo de Édipo é judaico), ou seja, nós já nascemos entupidos de culpas. A nossa sociedade tenta familiarizar o desejo, pois, quanto mais edipianos se produzirem, mais humanidade se produzirá, porque entre Édipo e humanidade não há diferença. Todos os edipianos são humanistas, são pura humanidade. Por isso Foucault é detestável. Ele alerta para a preocupação de nossa sociedade em produzir esse tipo de família conjugal, centrar a família na criança e jogá-la na dependência da mamãe, que é o território do prazer, para constituir a partir daí um homem inteiramente fraco.
Esse processo dificilmente se dá na favela. As crianças faveladas percorrem desde cedo todo o campo social. Por isso é muito difícil fazer um ser-humano na favela. Mas o esforço é muito grande. O Mascarenhas [psicanalista atuante na época] pregava todos os dias − “Precisamos levar a psicanálise na favela pra humanizar essa gente”. − Eu “chorava” de emoção. Mas todo mundo chora, pois o humanista é bom, ele nunca faz uma maldade, ele só faz bondade, porque ele é a favor das paixões apaziguadas!
Nós somos constituídos setorizados, nós não somos constituídos para fazer diversos campos de pensamento, o que é inteiramente falso. O pensamento atravessa qualquer coisa. Quando vamos à universidade é aquela linha dura sobre você, e quando você vai escutar o pensamento aquela linha dura não lhe permite. Então a minha aula tem que passar o pensamento transitando em qualquer lugar. E com esse esforço do pensamento você vai começar a entender. A subjetividade moderna, para os que afirmam o pensamento setorizado, tem que ficar quietinha num canto − “Você já entendeu matemática? Ótimo! Vai prà NASA”. − O que ocorre no nosso tempo.
Você pega Jacques Monod, você se espanta, porque é biologia, física, química, matemática, ele não quer saber, ele vai embora. E agora há esse mito de que brasileiro não pode. Pode sim. E nós temos que fazer esse esforço aqui dentro da universidade, produzir uma universidade que traga para nós algo que vá servir às nossas vidas.

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