quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Multidão e princípio de individuação, por Paolo Virno



As formas de vida contemporâneas testemunham a dissolução do conceito de “povo” e da renovada pertinência do conceito de “multidão”. Estrelas fixas do grande debate do Século XVII, e encontrando-se na origem de uma boa parte do nosso léxico ético-político, estes dois conceitos situam-se nas antípodas um do outro. O “povo” é de natureza centrípeta, converge numa vontade geral, é a interface ou o reflexo do Estado; a “multidão” é plural, foge da unidade política, não firma pactos com o soberano, não porque não lhe relegue direitos, mas porque é reativa à obediência, porque tem inclinação para certas formas de democracia não-representativa. Na multidão, Hobbes verá o maior perigo para o aparato do Estado (“Os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, representam a multidão contra o povo.” Hobbes, 1652: XI, I e XII, 8). Espinosa descobrirá precisamente aí, na multidão, a raiz da liberdade. Desde o Século XVII, e quase sem exceções, é o “povo” quem a obtém e gestiona. A existência política d@s múltipl@s, enquanto múltipl@s, foi afastada do horizonte da modernidade: não somente pelos teóricos do Estado absolutista, mas também por Rousseau, pela tradição liberal e pelo próprio movimento socialista. No entanto, hoje, a multidão desforra-se, ao caracterizar todos os aspectos da vida social: os hábitos e a mentalidade do trabalho pós-fordista, os jogos de linguagem, as paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva. Quando constatamos esta revanche, é necessário evitar ao menos duas ou três tolices. Não é que a classe trabalhadora tenha se dissipado com entusiasmo para deixar lugar aos “múltiplos”, mas bem mais — e a coisa resulta muito mais complicada e muito mais interessante — que os trabalhadores de hoje em dia, permanecendo trabalhadores, não têm a fisionomia do povo, mas são o exemplo perfeito do modo de ser da multidão. Além do mais, afirmar que @s “múltipl@s” caracterizam as formas de vida contemporâneas não tem nada de idílico: caracterizam-na tanto para o bem como para o mal, tanto no servilismo como no conflito. Trata-se de um modo de ser, diferente do modo de ser “popular”, é certo, mas, em si, não desprovido de ambivalência, com uma dose de venenos específicos.
A multidão não afasta com gesto brincalhão a questão do universal, do que é comum, compartilhado: a questão do Uno; bem mais, a redefine por completo. Temos, para começar, uma inversão da ordem dos fatores: o povo tende para o Uno, @s “múltipl@s” derivam-se do Uno. Para o povo, a universalidade é uma promessa; para @s “múltipl@s”, é uma premissa. Muda também a própria definição do que é comum, do que se compartilha. O Uno ao redor do qual gravita o povo é o Estado, o soberano, a vontade geral; o Uno que a multidão tem atrás de si é a linguagem, o intelecto como recurso público e interpsíquico, as faculdades genéricas da espécie. Se a multidão foge da unidade do Estado, é somente porque comunica com um Uno diferente, preliminar antes que concluído. E é sobre essa correlação que há que se perguntar mais profundamente.
A contribuição de Gilbert Simondon, filósofo muito querido por Deleuze, sobre esta questão, é muito importante. Sua reflexão trata dos processos de individuação. A individuação, isto é, o passo da bagagem psicossomática genérica do animal humano à configuração de uma singularidade única é, quem sabe, a categoria que, mais que qualquer outra, é inerente à multidão. Se prestarmos atenção à categoria de povo, veremos que se refere a uma miríade de indivíduos não individualizados, quer dizer, compreendidos como substâncias simples ou átomos solipsistas. Justo porque constituem um ponto de partida imediato, antes que o resultado último de um processo cheio de imprevistos, tais indivíduos têm a necessidade da unidade/universalidade que a estrutura do Estado proporciona. Ao contrário, se falamos da multidão, colocamos o acento precisamente na individuação, ou na derivação de cada um(a) d@s “múltipl@s” a partir de algo de unitário/universal. Simondon, tal como, por outras razões, o psicólogo soviético Lev Semenovitch Vigotski e o antropólogo italiano Ernesto de Martino, chamaram a atenção sobre semelhante desvio. Para esses autores, a ontogênese, quer dizer, as fases de desenvolvimento do “eu” [“yo”; “je”] singular, é consciente de si mesma, é a philosophia prima, única análise clara em tudo e para tudo com o “princípio de individuação”. A individuação permite modelar uma relação Uno/múltip@s diferente da que se esboça um pouco antes (diferente da que identifica o Uno com o Estado). Trata-se, assim, de uma categoria que contribui para fundar a noção ético-política de multidão.
Gaston Bachelard, epistemólogo entre os maiores do Século Vinte, escreveu que a Física Quântica é um “sujeito gramatical” em relação ao qual parece oportuno empregar os mais heterogêneos predicados filosóficos: se a um problema singular adapta-se bem um conceito filosófico, a um outro pode convir, por que não, um plano da lógica hegeliana ou uma noção extraída da psicologia gestaltista. Da mesma maneira, o modo de ser da multidão há de qualificar-se com atributos que se encontram em contextos muito deferentes, por vezes inclusive excludentes entre eles: Reparemos por exemplo na Antropologia Filosófica de Gehlen (indigência biológica do animal humano, falta de um “meio” [“medio”; “milieu”] definido, pobreza dos instintos especializados); nas páginas de Ser e tempo consagradas à vida cotidiana (falatórios, curiosidade, equívoco, etc.); na discussão dos diversos jogos de linguagem efetuados por Wittgenstein nas Investigações filosóficas. Exemplos todos discutíveis. Ao contrário, incontestavelmente, duas teses de Simondon são absolutamente importantes enquanto que “predicados” do conceito de multidão:
1) o sujeito é uma individuação sempre parcial e incompleta, consistente bem mais nos traços cambiantes de aspectos pré-individuais e de aspectos efetivamente singulares;
2) a experiência coletiva, longe de assinalar sua desintegração ou eclipse, persegue e afina a individuação. Se esquecermos muitas outras considerações (incluída a questão, evidentemente central, de como se realiza a individuação, segundo Simondon) vale a pena aqui se concentrar nestas teses, enquanto que contrárias à intuição e inclusive escabrosas.

Pré-individual

Voltemos ao começo. A multidão é uma rede de indivíduos. O termo “multidão” indica um conjunto de singularidades contingentes. Estas singularidades não são, no entanto, uma circunstância sem nome, mas, ao contrário, o resultado complexo de um processo de individuação. Resulta evidente que o ponto de partida de toda verdadeira individuação é algo ainda não individual. O que é único, não reprodutível, passageiro, provém, de fato, do que é mais indiferenciado e genérico. As características particulares da individualidade enraízam-se em um conjunto de paradigmas universais. Já, falar de principium individuationis significa postular uma inerência extremamente sólida entre o singular e uma forma ou outra de potência anônima. O individual é tal, não porque se sustenta no limite do que é potente, como um zumbi débil e rancoroso, mas porque é potência individuada; e é potência individuada porque é tão somente uma das individuações possíveis da potência.
Para estabelecer o que precedeu à individuação, Simondon emprega a expressão, bem pouco crítica, de realidade pré-individual. A cada um(a) d@s “múltipl@s”, lhe é familiar esse plano antitético. Mas, o que é exatamente o pré-individual? Simondon escreve: “Poder-se-ia chamar natureza a esta realidade pré-individual que o indivíduo leva consigo, tratando de encontrar na palavra natureza o significado que lhe davam os filósofos pré-socráticos: os Fisiólogos [Físicos, na tradição tradutória e filosófica brasileira] jônicos encontravam aí a origem de todas as espécies de ser, anterior à individuação: a natureza é realidade do possível que, sob as espécies do ápeiron de que fala Anaximandro, faz surgir toda forma individuada; a Natureza não é o contrário do Homem, mas a primeira fase do ser, sendo a segunda a oposição entre o individuo e o entorno [milieu]”. Natureza, ápeiron (indeterminado), realidade do possível, ser ainda desprovido de fases; poderíamos continuar com diferentes variações sobre o tema. No entanto, aqui parece oportuno propor uma definição autônoma do “pré-individual”, não contraditória a respeito da de Simondon, mas independente dela. Não é difícil reconhecer que, sob a mesma etiqueta, existem contextos e níveis muito diferentes.
O pré-individual é, em primeiro lugar, a percepção sensorial, a motricidade, o fundo biológico da espécie. É Marleau-Ponty, em seu Phénoménologie de la perception, quem observa que “Eu não tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito de minha sensação que [a que tenho] de meu nascimento ou de minha morte”. (Marleau-Ponty, 1945, p. 249). E também: “A visão, a audição, tocar, com seus campos que são anteriores e permanecem estranhos à minha vida pessoal.” (Marleau-Ponty, 1945, p. 399). A sensação escapa à descrição em primeira pessoa: quando percebo, não é um indivíduo singular que percebe, mas a espécie como tal. À motricidade e à sensibilidade se lhe acrescenta tão somente o pronome anônimo “se”: vê-se, ouve-se, experimenta-se prazer ou dor. É certo que a percepção tem às vezes uma tonalidade auto-reflexiva: basta pensar em tocar, nesse tocar que é também sempre ser tocad@ pelo objeto que se manipula. Quem percebe, percebe-se a si mesm@ avançando para a coisa. Mas trata-se de uma auto-referência sem individuação. É a espécie quem autopercebe-se da conduta e não uma singularidade autoconsciente. Equivocamo-nos e identificamos, se vemos relação entre dois conceitos independentes, se mantemos que aí onde há auto-reflexão podemos também constatar uma individuação; ou, inversamente, que se não há individuação já não podemos falar de auto-reflexão.
O pré-individual, no nível mais determinado, é a língua histórico-natural de sua própria comunidade de pertencimento. A língua é inerente a todos os locutores da comunidade dada, como o é um “meio” [milieu] zoológico ou um líquido amniótico, há um tempo envolvente e indiferenciado. A comunicação lingüística é intersubjetiva e existe muito antes que se formem verdadeiros “sujeitos” propriamente ditos: está em tod@s e em ninguém, também para ela reina o anônimo “se”: fala-se. Foi sobretudo Vigotski quem assinalou o caráter pré-individual, o imediatamente social, da locução humana: o uso da palavra, primeiramente é interpsíquico, quer dizer, público, compartilhado, impessoal. Contrariamente ao que pensava Piaget, não se trata de evadir-se de uma condição original autista (quer dizer, hiper-individual) tomando a via de uma socialização progressiva; ao contrário, o essencial da ontogênese consiste, para Vigotski, no passo de uma sociabilidade completa à individuação do ser falante: “o movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento da criança não se realiza do individual ao social, mas do social ao individual” (Vigotski, 1985*). O reconhecimento do caráter pré-individual (“interpsíquico”) da língua, possibilita que, de algum modo, Vigotski antecipe-se a Wittgenstein na refutação de “uma linguagem privada”, do tipo que seja. Por outro lado, e é o que mais importa, isso lhe permite inscrever-se na curta lista de pensadores que trataram a questão do principium individuationis. Tanto para Vigotski como para Simondon, a “individuação” (quer dizer, a construção do Eu [“Yo”; Moi] consciente) sobrevém no terreno lingüístico, e não no da percepção. Em outros termos: enquanto que o pré-individual inerente à sensação parece destinado a permanecer para sempre qual é, o pré-individual que corresponde à língua é suscetível de uma diferenciação interna que desemboca na individualidade. Não se trata, aqui, de examinar de maneira crítica o modo em que, para Vigotski e para Simondon, realiza-se a singularização d@ falante; e menos ainda de acrescentar hipótese suplementar alguma. O importante é unicamente estabelecer a diferença entre o domínio perceptivo (bagagem biológica sem individuação) e o domínio lingüístico (bagagem biológica como base da individuação).
Finalmente, o pré-individual é a relação de produção dominante. No capitalismo desenvolvido, o processo de trabalho requer as qualidades de trabalho mais universais: a percepção, a linguagem, a memória, os afetos. Papéis e funções, no marco do pós-fordismo, coincidem profundamente com a “existência genérica”, com o Gattungswesen de que falam Feuerbach e o Marx dos Manuscritos econômicos e filosóficos, a propósito das faculdades mais elementares do gênero humano. O conjunto das forças produtivas é, certamente, pré-individual. No entanto, o pensamento tem uma importância particular entre essas forças; atenção: o pensamento objetivo, sem relação com tal ou tal “eu” [“yo”; moi] psicológico, o pensamento no qual a verdade não depende do assentimento dos seres singulares. Com respeito a isso, Gottlob Frege utilizou uma fórmula quem sabe pouco hábil, mas que não carece de eficácia: “pensamento sem suporte” (cf. Frege, 1918). Ao contrário, Marx forjou a célebre e controvertida expressão do General Intellect, intelecto geral: o General Intellect (quer dizer, o saber abstrato, a ciência, o conhecimento impessoal) é também o “pilar principal da produção de riqueza”, aí onde por riqueza devemos entender, aqui e agora, mais-valia absoluta e relativa. O pensamento sem suporte ou General Intellect deixa sua marca no “processo vital da própria sociedade” (Marx, 1857-1858), ao instaurar hierarquias e relações de poder. Resumindo: é uma realidade pré-individual historicamente qualificada. Sobre este ponto não vale a pena insistir mais. Tão somente reter que ao pré-individual perceptivo e ao pré-individual lingüístico é necessário acrescentar um pré-individual histórico.

Sujeito anfíbio

O sujeito não coincide com o indivíduo individuado, porém, contém em si, sempre, uma certa proporção irredutível de realidade pré-individual; é um precipitado instável, algo composto. É esta a primeira das duas teses de Simondom sobre a qual gostaria de chamar a atenção. “Existe nos seres individuados uma certa carga de indeterminado, isto é, de realidade pré-individual, que passou através da operação de individuação sem ser efetivamente individuada. Podemos chamar natureza a esta ‘carga de indeterminado.’” (Simondon, 1989, p. 210). É completamente falso reduzir o sujeito ao que é, nele, singular: “o nome de indivíduo é abusivamente dado a uma realidade muito mais complexa, a do sujeito completo, que comporta nele, além da realidade individuada um aspecto inindividuado, pré-individual, natural.” (Simondon, 1989, p. 204). O pré-individual é percebido antes de tudo como uma espécie de passado não resolvido: a realidade do possível, de onde surge a singularidade bem definida, persiste ainda nos limites desta última: a diacronia não exclui a concomitância. Por outro lado, o pré-individual, que é o tecido íntimo do sujeito, constitui o meio [milieu] do indivíduo. O contexto (perceptivo, lingüístico ou histórico) no qual inscreve-se a experiência do indivíduo singular é, com efeito, um componente intrínseco (se se quiser, interior) do sujeito. O sujeito não é um entorno [milieu]. De Locke a Fodor, os filósofos que desconsideram a realidade pré-individual do sujeito, ignorando assim o que nele é meio [milieu], estão condenados a não encontrar via de acesso entre “interior” e “exterior”, entre o Eu [“Yo”; Moi] e o mundo. Desse modo entregam-se ao erro que Simondon denuncia: assimilar o sujeito ao indivíduo individuado.
A noção de subjetividade é anfíbia: o “Eu falo” co-habita com o “fala-se”, o que não podemos reproduzir está estreitamente mesclado com o recursivo e com o serial. Mais precisamente: no tecido do sujeito encontram-se, como partes integrantes, a tonalidade anônima do que é percebido (a sensação enquanto que sensação da espécie), o caráter imediatamente interpsíquico ou “público” da língua materna, a participação no General Intellect impessoal. A co-existência do pré-individual e do individuado no seio do sujeito está mediada pelos afetos; emoções e paixões assinalam a integração provisória dos dois aspectos, mas também seu eventual desapego: não faltam crises, nem recessões nem catástrofes. Há medo, pânico ou angústia quando não se sabe compor os aspectos pré-individuais de sua própria experiência com os aspectos individuados: “Na angústia, o sujeito sente-se existir como problema gasto por ele mesmo e sente sua divisão em natureza pré-individual e em ser individuado. O ser individuado é aqui e agora, e este aqui e este agora impedem a uma infinidade de outros aqui e agora virem à luz; o sujeito toma consciência dele mesmo como natureza, como indeterminado (ápeiron) que nunca poderá atualizar-se hic et nunc, que não poderá jamais viver” (Simondon, 1989, p. 111). Há que constar aqui uma extraordinária coincidência objetiva entre a análise de Simondon e o diagnóstico sobre os “apocalipses culturais” propostos por Ernesto de Martino. O ponto crucial, tanto para de Martino como para Simondon, reside no fato de que a ontogênese, quer dizer, a individuação, não está garantida de uma vez por todas: pode regressar sobre seus passos, fragilizar –se, explodir. O “Eu penso”, além do fato de que possua uma gênese imprevisível é parcialmente retráctil, está transbordado pelo que o supera. Para de Martino, o pré-individual, parece, às vezes, inundar a singularidade: esta última é como aspirada no anonimato do “se”. Outras vezes, de maneira oposta e simétrica, força-nos em vão a reduzir todos os aspectos pré-individuais de nossa experiência à singularidade pontual. As duas patologias — “catástrofes da fronteira eu-mundo nas duas modalidades da irrupção do mundo no ser-aí e do refluxo do ser-aí no mundo” (E. de Martino, 1977) — são os extremos de uma oscilação que, sob formas mais contidas é, no entanto, constante e não suprimível.
Com demasiada freqüência o pensamento crítico do Século Vinte (pensamos em particular na Escola de Frankfurt) entoou uma cantilena melancólica acerca do suposto afastamento do indivíduo com respeito às forças produtivas e sociais, assim como com respeito à potência inerente às faculdades universais da espécie (linguagem, pensamento, etc.). A desgraça do ser singular foi atribuída precisamente a esse afastamento ou a essa separação. Uma idéia sugestiva, mas falsa. As “paixões tristes”, para dizê-lo com Espinoza, surgem bem mais da máxima proximidade, e inclusive simbiose, entre o indivíduo individuado e o pré-individual, aí onde essa simbiose apresenta-se como desequilíbrio e desgarramento. Para o bem e para o mal, a multidão mostra a mescla inextricável de “eu” [“yo”; je] e de “se”, singularidade não reprodutível e anônima da espécie, individuação e realidade pré-individual. Para o bem: ao ter, cada um(a) d@s “múltipl@s”, atrás de si o universal, a modo de premissa ou de antecedente, não tem a necessidade desta universalidade postiça que constitui o Estado. Para o mal: cada um(a) d@s múltipl@s, enquanto que sujeito anfíbio, pode sempre distinguir uma ameaça em sua própria realidade pré-individual, ou ao menos uma causa de insegurança. O conceito ético-político de multidão funda-se tanto sobre o princípio de individuação como sobre sua incompletude constitutiva.

Marx, Simondon, Vigotski: o conceito de “indivíduo social”

Em uma passagem célebre dos Grundrisse (que intitula-se “Fragmento sobre as máquinas”), Marx designa ao “indivíduo social”, como o verdadeiro protagonista de qualquer transformação radical do estado de coisas presente (cf. Marx, 1857 – 1858). Em um primeiro momento, o “indivíduo social” parece-se a um oxímoro rebuscado [coqueto], à unidade desalinhada dos contrários; em suma, a um maneirismo hegeliano. É possível, ao contrário, tomar esse conceito ao pé da letra, até convertê-lo em um instrumento de precisão, para fazer que ressurjam formas de ser, as inclinações e as formas de vida contemporâneas. Mas isso é possível, em boa medida, justamente, graças à reflexão de Simondon e de Vigotski sobre o princípio de individuação.
No adjetivo “social” há que reconhecer os traços desta realidade pré-individual que, segundo Simondon, pertence a todos os sujeitos. Como no substantivo “indivíduo”, reconhecemos a singularização advinda de cada componente da multidão atual. Quando Marx fala de “indivíduo social”, refere-se ao emaranhado entre “existência genérica” (Gattungswesen) e experiência não reprodutível, que é a marca da subjetividade. Não é por acaso que o “indivíduo social” aparece nas mesmas páginas dos Grundrisse nas quais introduz-se a noção de General Intellect, de um “intelecto geral” que constitui a premissa universal (ou pré-individual), assim como a partitura comum universal para os trabalhos e os dias d@s “múltipl@s”. A parte social do “indivíduo social” é, sem nenhuma dúvida, o General Intellect, ou bem, com Frage, o “pensamento sem suporte”. No entanto, não só: consiste também no caráter de conjunto interpsíquico, quer dizer, público, da comunicação humana, posto em relevo muito claramente por Vigotski. Além do mais, se traduzirmos corretamente “social” por “pré-individual”, teremos que reconhecer que o indivíduo individuado de que fala Marx perfila-se também sobre um fundo de percepção sensorial anônimo.
Em sentido forte, são sociais tanto o conjunto das forças produtivas historicamente definidas como a bagagem biológica da espécie. Não se trata de uma conjunção extrínseca, ou de uma simples superposição: o capitalismo plenamente desenvolvido implica a plena coincidência entre as forças produtivas e os dois outros tipos de realidade pré-individual (o “se percebe” e o “se fala”). O conceito de força de trabalho permite ver esta fusão perfeita: enquanto que capacidade física genérica e capacidade intelectual-lingüística de produzir, a força de trabalho é, decididamente, uma determinação histórica, mas contém em si mesma, completamente, esse ápeiron, essa natureza não individuada da qual fala, assim como o caráter impessoal da língua, que Vigotski ilustra em vários lugares. O “indivíduo social” marca a época na qual a co-habitação entre singular e pré-individual deixa de ser uma hipótese heurística, ou um pressuposto oculto, para devir fenômeno empírico, verdade lançada à superfície, estado de fato pragmático. Poder-se-ia dizer: a antropogênese, isto é, a constituição mesma do animal humano, chega a manifestar-se no plano histórico-social, devém finalmente visível, a descoberto, conhece uma sorte de revelação materialista. O que se chamam “as condições transcendentais da experiência”, em lugar de permanecerem ocultas atrás da tela, apresentam-se em primeiro plano e, o que é mais importante, devêm, também elas, objetos de experiência imediata. Uma última observação, aparentemente marginal. O “indivíduo social” incorpora as forças produtivas universais, não obstante decliná-las segundo modalidades diferenciadas e contingentes; ao contrário, está efetivamente individuado justo porque lhes dá uma configuração singular ao convertê-las em uma constelação muito especial de conhecimentos e de afetos. É por isso que, toda tentativa de circunscrever o indivíduo pela negativa, fracassa: não é a amplitude do que nele se exclui o que chega a caracterizá-lo, mas a intensidade do que converge. E não se trata de uma positividade acidental, desajustada e, finalmente, inefável (seja dito de passagem, nada é mais monótono e menos individual que o inefável). A individuação acompanha-se de especificação progressiva, assim como pela especificação excêntrica de regras e paradigmas gerais: não é o agulheiro da rede, mas o ponto em que as malhas estão mais apertadas. A propósito da singularidade não reprodutível, poder-se-ia falar de um sobre-valor de legislação. Para dizê-lo com a fraseologia da epistemologia, as leis que qualificam o individual não são nem “asserções universais” (quer dizer, válidas para todos os casos de um conjunto homogêneo de fenômenos) nem “asserções existenciais” (relações de dados empíricos fora de qualquer realidade ou de um esquema conectivo); trata-se bem mais de verdadeiras leis singulares. Leis, porque, dotadas de uma estrutura formal, compreendem virtualmente uma “espécie” inteira: singulares, enquanto regras de um só caso, não generalizáveis. As leis singulares representam o individual com a precisão e a transparência em princípio reservadas a uma classe “lógica”; mas atenção, uma classe de um só indivíduo. Chamamos multidão ao conjunto dos “indivíduos sociais”. Há uma sorte de encadeamento semântico preciso entre existência política d@s múltipl@s enquanto múltipl@s, a velha obsessão filosófica em torno do principium individuationis e a noção marxiana de “indivíduo social” (decifrada, com a ajuda de Simondon, como a mescla inextricável de singularidade contingente e de realidade pré-individual). Este encadeamento semântico permite redefinir, desde sua base, a natureza e as funções da esfera pública e da ação coletiva. Uma redefinição que põe abaixo o cânon ético-político baseado no “povo” e na soberania estática. Poder-se-ia dizer — com Marx, mas longe e em oposição a uma boa parte do marxismo — que a “substância das coisas esperadas” encontra-se no fato de conceder o máximo de relevância e de valor à existência não reprodutível de cada membro singular da espécie. Por paradoxal que isso possa parecer, a teoria de Marx deveria, hoje em dia, compreender-se como uma teoria rigorosa, quer dizer, realista e complexa, do indivíduo. Assim como uma teoria da individuação.

O coletivo da multidão

Examinemos agora a segunda tese de Simondon. Não tem precedente. Vai contra a intuição, viola as convicções mais arraigadas do sentido comum (como, quanto ao mais, é o caso de muitos outros “predicados” conceituais da multidão). Habitualmente, considera-se que o indivíduo, desde o momento em que participa de um coletivo, deve desfazer-se de algumas de suas características individuais, renunciando a certos signos distintivos que nele entremesclam-se e que são impenetráveis. Parece que no coletivo a singularidade se dilui, que é desvantagem, regressão. Pois bem, segundo Simondon, isso é uma superstição: obtusa, desde o ponto de vista epistemológico, e equívoca, desde o ponto de vista da ética. Uma superstição alimentada por quem, tratando com desenvoltura o processus de individuação, supõe que o indivíduo é um ponto de partida imediato. Se, ao contrário, admitimos que o indivíduo provém do seu oposto, quer dizer, do universal indiferenciado, o problema coletivo toma outro aspecto. Para Simondon, contrariamente ao que afirma um sentido comum disforme, a vida de grupo é o momento de uma ulterior e mais complexa individuação. Longe de ser regressiva, a singularidade burila-se e alcança seu apogeu no atuar conjuntamente, na pluralidade de vozes; em uma palavra, na esfera pública.
O coletivo não prejudica, não atenua a individuação, mas que a persegue, aumentando desmesuradamente sua potência. Essa continuação, concerne à parte da realidade pré-individual que o primeiro processo de individuação não havia logrado resolver. Simondon escreve: “Não devemos falar de tendências do indivíduo que levam-no para o grupo, já que falar dessas tendências não é falar propriamente de tendências do indivíduo enquanto indivíduo: elas são a não-resolução dos potenciais que precederam a gênese do indivíduo. O ser que precede ao indivíduo não foi individuado sem mais, não foi totalmente resolvido em indivíduo e meio [milieu]; o indivíduo conservou com ele o pré-individual, e todo o conjunto de indivíduos tem também uma espécie de fundo não estruturado a partir do qual uma nova individuação pode produzir-se.” (Simondon, 1989, p.193). E mais adiante: “Não é certo que enquanto indivíduos, os seres estejam atados uns aos outros no coletivo, mas enquanto que sujeitos, quer dizer, enquanto que seres que contêm o pré-individual.” (Simondon, 1989, p. 205). O fundamento do grupo é o elemento pré-individual (se percebe, se fala, etc.) presente em cada sujeito. Mas no grupo, a realidade pré-individual, intrincada na singularidade, individualiza-se, mostrando, por sua vez, uma particular fisionomia.
A instância do coletivo é ainda uma instância de individuação: o que está em jogo é dar uma forma contingente e impossível de confundir com o ápeiron (o indeterminado), quer dizer, com a “realidade do possível” que precede à singularidade; dar forma ao universo anônimo da percepção sensorial, ao “pensamento sem suporte” ou general intellect. O pré-individual, inamovível no interior do sujeito isolado, pode adquirir um aspecto singularizado nas ações e nas emoções d@s múltipl@s: como um violoncelista que, interatuando dentro de um quarteto com o restante dos interpretes, encontra algo de sua partitura que justo aí lhe havia escapado. Cada um(a) d@s múltipl@s personaliza (parcial e provisoriamente) sua própria componente impessoal através das vicissitudes características da experiência pública. Expor-se à consideração d@s outr@s, à ação política sem garantias, à familiaridade com o possível e com o imprevisto, à amizade e à inimizade, tudo isso alerta ao indivíduo e lhe permite, em certa medida, apropriar-se deste anônimo “on” do qual provém, para transformar o Gattungswesen, a “existência genérica da espécie”, em uma biografia absolutamente particular. Ao contrário do que sustentava Heidegger, é somente na esfera pública que podemos passar do “se” ao “si mesmo”.
A individuação de segundo grau, que Simondon chama também a “individuação coletiva” (um oxímoro próximo àquele que contém a locução “indivíduo social”), é uma peça importante para pensar de maneira adequada a democracia não representativa. Posto que o coletivo é o teatro de uma singularização acentuada da experiência, constitui-o o lugar no qual pode finalmente explicar-se o que, em uma vida humana, resulta incomensurável e impossível de reproduzir; nada disso presta-se para ser explorado e, menos ainda, “delegado”. Mas cuidado: o coletivo da multidão, enquanto que individuação do General Intellect e do fundo biológico da espécie, é exatamente o contrário de qualquer anarquismo ingênuo. Frente a ele, é bem mais o modelo da representação política, com sua vontade geral e sua “soberania popular”, o que se converte em intolerável (e às vezes feroz) simplificação. O coletivo da multidão não delega direitos ao soberano, não já que não pactue porque se trata de um coletivo de singularidades individuadas: para ele, repitamo-lo, o universal é uma premissa e não uma promessa.



Tradução para o português: Leonardo Retamoso Palma
(com base na tradução para o espanhol, realizada por Beñat Baltza [muxuilunak@sindominio.net; http://www.sindominio.net/arkitzean/multitudes/multitudes5], do texto de Paolo Virno [virno@micanet.net] escrito originalmente em francês: Multitude et principe d’individuation. Enviado por Beñat para a lista multitudes-infos [multitudes-infos@samizdat.net; da revista http://www.samizdat.net/multitudes], em 4 de fevereiro de 2002, segunda-feira, 12:33 PM.)
Texto publicado na Revista Reichiana, no. 11, 2002, p. 76-88, do Departamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae (SP).

* VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem (Texto integral, traduzido do russo Pensamento e linguagem). Tradução: Paulo Bezerra; São Paulo: Martins Fontes; 2000. Em 1989, a mesma editora publicou um resumo do livro de Vigotski, sob o título Pensamento e linguagem, a partir da publicação preparada por E. Hanfmann e G. Vakar para o inglês, que por muito tempo passou por ser correspondente ao texto integral de Vigotski. Justamente o capítulo 2, onde Vigotski analisa a teoria de Piaget, apresenta-se insuficientemente transposto no resumo referido. O que é mais que lamentável é o fato de que Piaget conheceu do pensamento de Vigotski apenas tal resumo, para o qual escreveu o prefácio. Do principal livro de Piaget abordado por Vigotski, A linguagem e o pensamento da criança, no Brasil só possuímos a tradução do primeiro volume[nota de L.R.Palma]

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