segunda-feira, 10 de março de 2008

Escrever...



Prescreve o bom senso (com o qual a academia caminha em acordo) que só devemos escrever quando temos algo a dizer (não necessariamente algo original, mas fundamentado). Que não devemos nos apressar a escrever, pois a escrita demanda uma longa preparação. Uma preparação que passa por muitos modos de organização. Primeiro, criar os sistemas de referência; encontrar os autores, os saberes, o método, o ordenador simbólico que irá funcionar como uma autorização capaz de conferir ao nosso dito uma espécie de validação, uma certificação de origem. Encontradas essas balizas, passa-se para o plano. Não aquele que, em sua imanência, constitui um território habitável, mas o que antecipa uma regra para a depositação de nossos saberes, ainda que mínimos. Desenhado o plano, que inclui o método (nem isso, basta uma metodologia, de preferência uma escolhida entre as disponíveis nos manuais...), passa-se aos esboços de escrita. Esses esboços, claro, não caminham por si mesmos, devem passar pelo clivo de um terceiro, não um qualquer leitor, mas aquele autorizado, competente para avaliar a pertinência (com todos os sistemas de referência devidamente codificados) da escrita...

Essa escrita, entretanto, não me encanta, nem é essa minha experiência de escrita. Só escrevo, só concebo algo a escrever quando não tenho, ao começar, o que dizer... A escrita do bom senso, invariavelmente, me paralisa. Não tenho o que dizer quando o que me convoca está nas alturas. Quando, o que me convoca, são as alturas.

Gosto de pensar que, ao escrever, nem sempre sabemos bem o que estamos fazendo ou dizendo. Há sempre um texto que se escreve ali onde algo escrevemos... Pois há (é necessário que) uma certa inocência na escrita, principalmente naquela que se faz fora das regras formais do bem-dizer acadêmico. É, aliás, essa inocência que confere ao texto um certo frescor, uma certa alegria, um certo inacabamento necessário para que ele se sustente. Um incitamento. Uma potência... Nada mais triste que um texto professoral, de alguém "que sabe" e se coloca na posição de expor seu saber a "quem não sabe". Textos dados de antemão...

Gosto desses textos que avançam sobre suas próprias incertezas, que fazem de seu inacabamento a possibilidade de continuarem. Eles são um modo de persistência... persistem em si mesmos, fazem-se lampejos, caminham intempestivos, arrastando tudo o que encontram pelo caminho, os portos, os sentidos, os nortes, prenhes de seu próprio excesso. Um excesso que é sua velocidade, sua parada repentina, sua alteração de ritmo. Pois tudo o que temos é isso, tempos, velocidades, afetos... Gosto desses textos que não se dão facilmente à compreensão, mas que entretanto ali estão, abertos, disponíveis a um leitor com o qual se construírem... Gosto desses textos nos quais tropeçamos, que nos fazem claudicar junto com eles, textos nos quais nos perdemos... ao mesmo tempo em que nos puxam, nos arrastam, nos impedem a parada, nos devolvem à deriva a cada vez que supomos ter conseguido uma ancoragem.

Quando leio, penso que não devo perguntar: "o que o autor quer dizer", pois estou já na imanência do dito, dos fluxos que arrastam as palavras, as frases, os sentidos. Estou na música, e se encontro uma paisagem, desejo que seja dessas que se desenham para rapidamente se dissolverem em outras paisagens. Esses são os textos com potência de me mover, de me pôr em movimento com eles...

Gosto desses textos que me convidam a inventar meus caminhos, textos que multiplicam meus próprios dizeres, minha própria escrita. É neles que encontro o que pensar, é com eles que meu corpo é forçado a pensar...

Valter A. Rodrigues, 10.03

2 comentários:

Filosofia Livre disse...

Isso me fez lembrar um cometário de Deleuze sobre os aforismos de Nietzsche: "Um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriores umas às outras. Um aforismo não quer dizer nada, não significa nada, não tem significante como não tem significado. Seriam maneiras de restaurar a interioridade de um texto. Um aforismo é um estado de forças, cuja última força, ou seja, ao mesmo tempo a mais recente, a mais atual e a provisória-última, é sempre a mais exterior. Nietzsche o diz muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a essa força. Desta maneira, não há problema de interpretação de Nietzsche, procurar com qual força exterior atual ele faz passar alguma coisa, uma corrente de energia." (Ilha Deserta, p. 323-324).

É isso: maquinar o texto, sem interpretações em busca do que um suposto sujeito quer dizer. Avaliar a vontade e interpretar o sentido das forças que estão em relação no texto. Se me interessa ou não, vai depender da RELAÇÃO que eu vou estabecer com o texto e, é evidente, do meu modo de vida, da qualidade da vontade e das forças que me constituem.

Valter A. Rodrigues disse...

Imagine minha irritação com os textos que DEVO dar aos meus alunos para ler (os ditos "textos acadêmicos", que supõem saber o que estão dizendo e se fazem redundantes em sua paixão explicativa que nada deixa à compreensão), ou, mais ainda, quando ofereço textos efetivamente legíveis (esses que se oferecem, afetivos, ao leitor para devoração) e os alunos queixam-se por considerá-los "difíceis"...