domingo, 9 de março de 2008

Falar...

“Porque alguém tem sempre que falar? Muitas vezes não deveria falar, e sim ficar em silêncio.
Por
mais que alguém fale, menos as palavras significam.
Palavras devem expressar apenas o que queremos dizer.”

“Viver a vida”, de Jean-Luc Godard


Falar, falar, falar. Certamente falamos demais por termos pouca coisa – ou nada – a dizer. A tagarelice parece não ter fim. As palavras são excessivamente desperdiçadas e mutiladas porque perdemos o que as fazem viver: a dilatação das experiências que não são faladas. Uma pausa para o burburinho das ruas, da televisão, do trabalho. Passamos, então, a permitir que o tempo, através de nós, gere palavras vivas. Agora, em cada palavra dita, um rasgo é feito. O desejo passa, atravessa a palavra, toca e modifica o ouvinte: estranhamento, hilaridade, repulsa, medo, amor... De qualquer modo, algo vai ser produzido em quem é tocado por palavras impulsionadas por um desejo livre... É livre porque destrói tudo aquilo que a moral, a religião e a razão querem limitar ao estabelecerem o que pode e o que não pode ser dito - o efeito dessa limitação não poderia ser mais nocivo: as palavras mortas passam a dominar a nossa vida. Precisamos encontrar o nosso tempo próprio de processar o que nos atinge, a nossa maneira singular de sermos tocados por elementos da vida que não são falados... Mas também podemos privilegiar as palavras faladas que expressam algo novo, diferente – e isso existe. Basta selecionarmos aquelas que nos tocam com uma força que nos impulsiona – para aonde? Pouco importa. Uma palavra, bem utilizada, pode fortalecer. Núpcias e não morte, já que as palavras mortas não têm, de fato, algo a nos dizer.

A. Ferreira, 09.03


4 comentários:

Eder Amaral disse...

Isso me fez lembrar um trecho do Conversações, sob o título "O casal transborda" (entre "Os intercessores"):

"Às vezes se age como se as pessoas não pudessem se exprimir. Mas de fato, elas não param de se exprimir. Os casais malditos são aqueles em que a mulher não pode estar distraída ou cansada sem que o homem diga: “O que você tem? Fala...”, e o homem sem que a mulher..., etc. O rádio, a televisão fizeram o casal transbordar, dispersaram-no por toda parte, e estamos trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens. A besteira nunca é muda nem cega. De modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas forçam a se exprimir. Suavidade de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo raro ou rarefeito, que merecesse um pouco ser dito. Do que se morre atualmente não é de interferências, mas de proposições que não tem o menor interesse... Por isso é tão difícil discutir, por isso não cabe discutir, nunca. Não se vai dizer a alguém: “o que você diz não tem o menor interesse”. Pode-se dizer: “está errado”. Mas o que alguém diz nunca está errado, não é que esteja errado, é que é bobagem ou não tem importância alguma. É que isso já foi dito mil vezes. As noções de importância, de necessidade, de interesse são mil vezes mais determinantes que a noção de verdade. De modo algum porque elas a substituem, mas porque medem a verdade do que digo. Mesmo em matemática: Poincaré dizia que muitas teorias matemáticas não têm importância alguma, não interessam. Não diziam que eram falsas, era pior."

(Gilles Deleuze, Conversações, p. 161-2)

abraço!

Filosofia Livre disse...

Obrigado, Eder. Eu ainda não tinha lido esse texto do Deleuze. Ressonância total!

Maria Soledade disse...

"São as palavras mais silenciosas que semeiam tempestades; os pensamentos que dirigem o mundo caminham com pés de pomba." (Nietzsche, Zaratustra).

Um contraponto?

Valter A. Rodrigues disse...

Olá, Maria Soledade. Creio que vc esteve no encontro que fizemos na livraria Letras&Prosa, uma semana antes de iniciarmos o curso, certo? Pois é, nosso mundo é tagarela ali onde nada ou pouco tem a dizer/fazer. Entretanto, são as palavras plenas e os silêncios que nos levam a produzir mundos, a nos produzirmos... Mas são essas palavras (ou os silêncios) que mais medo e queixas e angústias produzem. Pois sempre se espera que tenhamos o que dizer, e que isso que DEVEMOS ter o que dizer seja apaziguador, confirme o mundo tal como concebido e esperado. Daí a tagarelice dos manuais de auto-ajuda, que sempre estão ali onde são esperados...