quarta-feira, 2 de abril de 2008

Entrevista de Carlos Castañeda em 1972


"Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações. Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível muito baixo".
A seguir, trechos da entrevista para a revista Psychology Today, em 1972.

T
radução de Miguel Duclós



Sam Keen:
Como eu acompanhei Don Juan através de seus três livros, suspeitei, às vezes, que ele era uma criação de Carlos Castaneda. Ele é quase bom demais para ser verdade . Um índio velho e sábio cujo conhecimento da natureza humana é superior ao de quase todo mundo.

Carlos Castañeda:
A idéia de que eu forjei uma pessoa como Don Juan não é convincente. Ele dificilmente seria o tipo de figura que minha tradição intelectual européia levaria a conceber. A verdade é sempre algo muito estranho. Eu não estava sequer preparado para fazer as mudanças na minha vida que a minha associação com Don Juan requisitou.

Sam Keen:
Algumas das técnicas que os feiticeiros usam é amplamente usada também por outros grupos secretos. As pessoas às vezes usam os sonhos para encontrar objetos perdidos, e vão para jornadas fora-do-corpo durante seu sono. Mas quando você diz como Don Juan e seu amigo Don Genaro fizeram o carro desaparecer durante a plena luz do dia, eu poderia apenas coçar a cabeça. Eu sei que um hipnotista pode criar a ilusão de presença ou ausência de um objeto. Você acredita que foi hipnotizado?

Carlos Castañeda:
Talvez, alguma coisa deste tipo. Mas temos que começar por perceber, como diz Don Juan, que existe muito mais no universo do que normalmente confessamos conhecer. Nossas expectativas usuais acerca da realidade são criadas por um consenso social. Nos ensinam como ver e perceber o mundo. A truque da socialização consiste em nos convencer que as descrições que estamos de acordo definem os limites do mundo real. O que chamamos de realidade é apenas um modo de ver o mundo, um modo que é sustentando pelo consenso social.

Sam Keen:
Então um feiticeiro, como um hipnólogo, cria um mundo alternativo construindo diferentes expectativas e fornecendo pistas premeditadas para produzir um consenso social.

Carlos Castañeda:
Exatamente. Eu comecei a entender feitiçaria nos termos da idéia de .interpretação. [glosses] de Talcott Parsons. Uma interpretação [gloss] é um sistema completo de percepção e linguagem. Por exemplo, esta sala e é uma interpretação. Nós reunimos juntos uma série de percepções isoladas . chão, teto, janela, luzes, tapete, etc . para compor uma totalidade. Mas nós temos que ser ensinados a dispor o mundo junto desta forma. Uma criança experimenta o mundo com poucos pré-conceitos até que é ensinada a vê-lo de uma forma que corresponde à descrição que todos compartilham. O sistema de interpretações parece um pouco com caminhar. Nós temos que aprender a caminhar, mas uma vez que aprendemos ficamos sujeitos à sintaxe da linguagem e ao modo de percepção que ela contém.

Sam Keen:
Wittgenstein é um dos poucos filósofos que poderia ter entendido Don Juan. Sua noção de que existem muitos tipos diferentes de jogos de linguagem . ciência, política, poesia, religião, metafísica, cada um com sua própria sintaxe e regras . poderia ter permitido a ele entender a feitiçaria como um sistema alternativo de percepção e entendimento.

Carlos Castañeda:
Mas Don Juan pensa que o que ele chama de .ver. é apreender o mundo sem nenhuma interpretação. Este é o fim almejado pela feitiçaria. Para quebrar a certeza do mundo que sempre lhe foi ensinado, você deve aprender uma nova descrição do mundo . feitiçaria . e então manter a velha e a nova juntas. Então você percebe que nenhuma das duas é final. No momento que você desliza entre as descrições; você para o mundo e vê. Você é deixado com o assombro, o verdadeiro assombro de ver o mundo sem nenhuma interpretação.

Sam Keen:
Existe uma realidade normal que nós, ocidentais, pensamos que é o único mundo, e existe também a realidade a parte do feiticeiro. Quais as diferenças essenciais entre elas?

Carlos Castañeda:
Na sociedade européia o mundo é construído em grande parte pelo que os olhos informam à mente. Na feitiçaria o corpo todo é usado como percipiente. Como europeus vemos o mundo ao redor de nós e falamos sobre ele. Nós estamos aqui e o mundo está lá. Os nossos olhos alimentam a razão e não temos conhecimento direto das coisas. De acordo com a feitiçaria esta sobrecarga dos olhos é desnecessária.
Nós percebemos com o corpo total.

Sam Keen:
Ocidentais partem do pressuposto que sujeito e objeto são separados. Nós existimos a parte do mundo e temos de cruzar o vácuo para chegar até ele. Para Don Juan e a tradição dos feiticeiros, o corpo já está no mundo. Nós estamos unidos ao mundo, e não alienados dele.

Carlos Castañeda:
Isso mesmo. A feitiçaria tem uma teoria diferente de personificação. O problema da feitiçaria é o de harmonizar e arrumar seu corpo para ser um bom receptor. Os europeus lidam com seus corpos como se eles fossem um objeto. Nós os enchemos de álcool, comida ruim e inquietações. Se alguma coisa está errada nós pensamos que germes de fora invadiram o corpo e então importamos algum medicamento para curá-lo. A doença não é parte de nós. Don Juan não acreditava nisso. Para ele a doença é a desarmonia entre um homem e seu mundo. O corpo é consciente e deve ser tratado impecavelmente.

Sam Keen:
Isto parece similar à idéia de Norman O. Brown's onde as crianças, esquizofrênicos e aqueles com loucura divina da consciência dionisíaca estão cientes das coisas e das outras pessoas como extensões de seu corpo. Don Juan sugere algo do tipo quando diz que os homens de conhecimento têm fibras de luz que conectam seu plexo solar ao mundo.

Carlos Castañeda:
Minha conversa com o coiote é um bom exemplo das diferentes teorias de personificação. Quando ele chegou para mim eu disse: Olá, pequeno coiote. Como você está? E ele respondeu de volta: Estou bem. E você?... Aqui eu não escutei as palavras da forma normal.
Mas meu corpo sabia que o coiote estava dizendo alguma coisa e eu traduzi isto em um diálogo. Como um intelectual, minha relação com o diálogo é tão profunda que meu corpo automaticamente transpôs para palavras o sentimento que o animal estava comunicando a mim. Nós sempre vemos o desconhecido nos termos do conhecido.

Sam Keen:
Quando você estava no modo mágico de consciência onde os coiotes falam e tudo é adequado e entendido parece que o mundo todo está vivo e o ser humano está em comunicações que incluem animais e plantas. Se abandonarmos nossas concepções arrogantes de que somos a única forma de vida que conhece e comunica talvez conseguíssemos perceber toda a sorte de coisas se comunicando conosco. John Lilly falava com os golfinhos. Talvez nos sentíssemos menos alienados se pudéssemos acreditar que não somos a única forma inteligente de vida.

Sam Keen:
Os índios americanos tem crenças similares sobre os animais que eles matam. Se você não agradece o animal por dar a vida para que você possa viver, seu espírito pode lhe causar problemas.

Carlos Castañeda:
Nós temos uma associação com toda forma de vida. Alguma coisa se altera toda vez que machucamos a vida vegetal ou animal. Nós tiramos a vida para sobreviver mas devemos querer abrir mão de nossa própria vida sem ressentimentos quando chegar nossa vez. Nós somos tão importantes e nos levamos tão a sério que esquecemos que o mundo é um grande mistério que pode nos ensinar se escutarmos.

Sam Keen:
Talvez as drogas psicodélicas momentaneamente limpem o ego isolado e permitam uma fusão mítica com a natureza. A maior parte das culturas que conservam um senso de união entre o homem e a natureza também fez uso cerimonial das drogas psicodélicas. Você estava usando peiote quando falou com o coiote?

Carlos Castañeda:
Não, de maneira alguma.

Sam Keen:
Esta experiência foi mais intensa das que teve quando Don Juan lhe ministrou plantas psicotrópicas?

Carlos Castañeda:
Muito mais intensa. Todas as vezes que eu tomei plantas psicotrópicas eu sabia que havia ingerido algo e sempre podia questionar-me acerca da validade das minhas experiências. Mas quando o coiote falou comigo eu não tinha desculpas. Não podia explicar isso. Eu realmente parei o mundo e, saí completamente do meu sistema de interpretações europeu.

Sam Keen:
Em seu livro mais recente, Viagem a Ixtlan, você revê a impressão dada nos primeiros livros de que o uso de plantas psicotrópicas era o método principal usado por Don Juan no intuito de ensiná-lo sobre a feitiçaria. Como você vê agora o lugar dos psicotrópicos em seus ensinamentos?

Carlos Castañeda:
Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações. Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível muito baixo.

Sam Keen:
Don Juan usa drogas psicotrópicas regularmente para parar o mundo?

Carlos Castañeda:
Não. Ele pode agora mesmo pará-lo com a sua vontade. Ele me disse que para mim a tentativa de ver sem a ajuda das plantas seria inútil. Mas se eu me comportasse como um guerreiro e assumisse a responsabilidade não precisaria delas; elas apenas enfraqueceriam meu corpo.

Sam Keen:
Isso pode soar um pouco chocante para vários admiradores seus. Você é uma espécie de santo patrono da revolução psicodélica.

Carlos Castañeda:
Eu tenho seguidores e eles têm idéias estranhas a respeito de mim. Eu estava andando para dar uma palestra no Califórnia State, em Long Beach, outro dia e um rapaz que me conhecia me apontou para uma garota e disse .Ei, esse é o Castaneda.. Ela não acreditou nele porque tinha a idéia de que eu deveria parecer muito sobrenatural. Um amigo estava reunindo algumas das histórias que circulavam sobre mim. O consenso era que eu havia feito uma façanha mística.

Sam Keen:
Façanha mística?

Carlos Castañeda:
Sim, que eu andava de pés descalços como Jesus e não tinha calos. As pessoas acham que devo estar doidão a maior parte do tempo. Eu também cometi suicídio e morri em vários lugares diferentes. Um colega de departamento quase fez um escândalo quando eu comecei a falar sobre fenomenologia e sociedade e explorar o conceito de percepção e socialização. Eles queriam que eu falasse pausadamente, os deixasse altos e fizesse suas cabeças. Mas para mim o entendimento é importante.

A entrevista completa pode ser lida em http://www.conscien cia.org/castaned a/caspsychology. html
A entrevista completa para a revista Veja, em 1975, pode ser lida em http://www.conscien cia.org/castaned a/casvista. html



3 comentários:

Valter A. Rodrigues disse...

Nos anos 70, momento em que era necessário sairmos da linha dura da cega racionalidade sustentada pelo ideal positivista e abrirmos, de alguma maneira, nosso corpo vibrátil (ou corpo sem órgãos...) à experiência sensível, as drogas foram os agentes potencializadores dessa experiência. Nessa época líamos Castañeda, Huxley, Michaux, Baudelaire e tantos outros que se aventuraram pelas desterritorilizações que elas propiciavam com admiração quase sagrada. Tratava-se, seja nas experimentações, seja nas leituras (também experimentações), de um esforço de descolonização de si, para que pudéssemos agenciar um cuidado de si. Os que souberam lidar com as drogas (e Castañeda é um notável ponto de articulaçao criativa) e com o que elas permitiam cresceram em suas invenções e questionamentos dos modos de vida. Houve os que excederam sua própria possibilidade sensível e quebraram. Quando falamos de drogas, geralmente é deles que lembramos. O capital logo descobriu ali uma maneira de produzir mais capital (fazendo das drogas, com suas incitações ao consumo, o que são hoje: a terceira economia do mundo), produzindo suas vítimas pelo caminho. O que era uma possibilidade de vida cedeu ao imediatismo do prazer já, agora, desmantelando o árduo trabalho de construir para si um desejo, um inconsciente, um corpo produtivo...

Ler Castañeda hoje, que alegria!

Valter A. Rodrigues disse...

Veja só, Amauri, que bom encontro: ontem falamos de Maturana (que acabei de ler hoje), hoje vc disponibiliza as entrevistas de Castañeda. Desse jeito, a idéia de "mudar o mundo sem tomar o poder", do Holloway, começa a compor seus planos de consistência...

Filosofia Livre disse...

A alegria como força de transformação social... já que sabemos que somente a tristeza precisa do poder... e o discurso revolucionário que nasce da tristeza só pode ser um engodo total.