Está fora de dúvida que através dela [a atividade maquinal] uma existência sofredora é aliviada num grau considerável: a este fato chama-se atualmente, de modo algo desonesto, "a bênção do trabalho". O alívio consiste em que o interesse do sofredor é inteiramente desviado do sofrimento - em que a consciência é permanentemente tomada por um afazer seguido de outro, e em conseqüência resta pouco espaço para o sofrimento: pois ela é pequena, esta câmara da consciência humana! A atividade maquinal e o que dela é próprio - a absoluta regularidade, a obediência pontual e impensada, o modo de vida fixado uma vez por todas, o preenchimento do tempo, uma certa permissão, mesmo educação para a "impessoalidade", para o esquecimento de si, para a "incuria sui" -: de que maneira completa e sutil o sacerdote ascético soube utilizá-la na luta com a dor! Precisamente quando tinha de lidar com sofredores [...] necessitava ele de pouco mais que a pequena arte de mudar os nomes e rebatizar as coisas, para fazer com que vissem benefício e relativa felicidade em coisas até então odiadas. [...] Um meio ainda mais apreciado na luta contra a depressão é a prescrição de uma pequena alegria que seja de fácil obtenção e possa ser tornada regra. [...] A forma mais freqüente em que a alegria é assim prescrita como meio de cura é a alegria de causar alegria (ao fazer benefício, presentear, aliviar, ajudar, convencer, consolar, louvar, distinguir); no fundo, ao prescrever "amor ao próximo", o sacerdote ascético prescreve uma estimulação, embora em dosagem prudente, do impulso mais forte e mais afirmador da vida - da vontade de poder. A felicidade da "pequena superioridade", que acompanha todo ato de beneficiar, servir, ajudar, distinguir, é o mais abundante meio de consolo de que costumam servir-se os fisiologicamente obstruídos, supondo-se que estejam bem aconselhados. [...] Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse instinto e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que a organizou.
Friedrich Nietzsche, "Genealogia da Moral", terceira dissertação, 18. Trad. Paulo César de Souza.
Friedrich Nietzsche, "Genealogia da Moral", terceira dissertação, 18. Trad. Paulo César de Souza.
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